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Proc. nº 129/95 TC – 1ª Secção Rel.: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Em recurso contencioso interposto no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa por L..., com os sinais dos autos, da deliberação de 27/5/93 do Conselho de Administração do Centro de Saúde de Angra do Heroísmo, adiante melhor identificada, foi recusada, pela sentença ora impugnada, a aplicação da Resolução nº 179/91 do Governo Regional dos Açores, publicada no respectivo Jornal Oficial em 12/9/91, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica e formal. Desta sentença recorre o Ministério Público ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a) da Lei nº 28/82, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
1º
'A definição do regime geral de estruturação das carreiras da função pública e do regime de recrutamento e selecção do pessoal na Administração Pública, nomeadamente no que se refere às condições e requisitos de admissão aos concursos, reportam-se à definição das bases do regime e âmbito da função pública, inserindo-se, consequentemente na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, nos termos da alínea v) nº 1 do artigo
168º da Constituição da República Portuguesa.
2º Não é, nestes termos, possível aos Governos Regionais editarem,, através de
'resolução' e no uso de uma pretensa competência executiva própria, fundada no artigo 229º, nº 1, alínea g) da Constituição, disciplina inovatória naquela sede, aditando novos requisitos ou condições de progressão na carreira, não previstas naqueles diplomas legais.'
Contra-alegou a referida L... pugnando pela confirmação da decisão recorrida. Corridos os vistos legais cumpre decidir.
2 – Com interesse para a decisão da causa resulta dos autos o seguinte: Em 20/1/93 e 27/4/93 a ora recorrida requereu ao Conselho de Administração do Centro de Saúde de Angra do Heroísmo a abertura de concurso para acesso à categoria de primeiro-oficial, invocando, para o efeito, ser portadora dos requisitos estabelecidos no artigo 22º, nº 1, al. a) do DL nº 248/85, de 15 de Julho. O pedido veio a ser indeferido pela deliberação de 27/5/93 daquele órgão administrativo com fundamento no facto de a requerente não preencher os requisitos estabelecidos nos pontos 1 e 7 da Resolução nº 179/91 do Governo Regional dos Açores – não ter 60 horas de formação na categoria anterior. No recurso interposto desta deliberação alegou a ora recorrida a inconstitucionalidade da referida 'Resolução'. Pela sentença impugnada, foi recusada a aplicação da mesma Resolução por inconstitucionalidade orgânica e formal e, consequentemente, provido o recurso contencioso, com a anulação da deliberação então recorrida.
3 – A sentença recorrida reconheceu e deu como verificado três vícios de inconstitucionalidade na Resolução do Governo Regional dos Açores nº 179/91. Foram eles os de:
1 – Inconstitucionalidade formal por ter sido utilizada uma forma de produção normativa não consentida pela CRP (para o exercício do poder regulamentar o Governo Regional só poderia utilizar o decreto e o decreto regulamentar regional).
2 – Inconstitucionalidade formal por violação da hierarquia das fontes de direito – violação da lei geral – com a alteração dos requisitos para os concursos de acesso estabelecidos nos artigos 22º e 23º do DL nº 498/88, de 30 de Dezembro.
3 – Inconstitucionalidade orgânica por, constituindo aquela alteração uma medida restritiva do direito de acesso na carreira dos trabalhadores da função pública, estar ela excluída dos poderes da Região Autónoma, nos termos do artigo 230º alínea a) da CRP. Nas suas alegações, o Ministério Público sustenta, igualmente, a inconstitucionalidade da referida Resolução por, em contrário do disposto no artigo 234º, nº 1 da CRP, não ter sido actuado o poder conferido pelo artigo
229º, nº 1, alínea c) da CRP, mediante acto legislativo da competência da Assembleia Legislativa Regional e não existir interesse específico regional que legitime o exercício desta competência, conforme o exige o mesmo artigo 229º, nº
1, al. c). Por esta razão tornar-se-ia dispensável a resolução da questão de saber se a
'resolução' do Governo Regional seria acto formalmente idóneo para o exercício da competência regulamentar regional na área e com o conteúdo da discutida nos autos.
4 - A questão de constitucionalidade que compete a este Tribunal conhecer terá, no caso, de resolver-se num quadro normativo conformado pela CRP na versão dada pela revisão de 1989 (que, de ora em diante, será a citada sempre que outra se não especifique) e pelo DL nº 248/85. Na verdade, alegada a inconstitucionalidade orgânica da Resolução nº 179/91, há-de ser pelas normas constitucionais sobre a repartição de competências dos
órgãos de soberania e das regiões autónomas então vigentes que se deverá aferir a conformidade constitucional da referida 'resolução'. Por outro lado, muito embora a 'resolução' não mencione que diploma
'desenvolve', 'regulamente' ou 'adapte', considerando a matéria sobre que versa
– acesso às categorias oficial principal, primeiro-oficial e segundo-oficial – evidente é que ela respeita ao regime de estruturação das carreiras da função pública (no caso, a carreira de oficial administrativo) estabelecido, em termos gerais, pelo DL nº 248/85, então em vigor. Vejamos, pois. O DL nº 248/85 foi emitido pelo Governo no uso da autorização legislativa que a Assembleia lhe conferiu nos termos da Lei nº 7/85, de 4 de Junho. A lei de autorização da Assembleia da República fundou-se, entre outros, no artigo 168º nº 1 alínea u) da CRP, preceito que, na versão então vigente e resultante da revisão de 1982, outorgava àquele órgão de soberania competência exclusiva, salvo autorização ao governo, para legislar em matéria de 'bases do regime e âmbito da função pública'. Nos termos da citada Lei nº 7/85 foi concedida autorização ao governo para legislar 'em matéria de regime e estrutura das carreiras dos trabalhadores da administração pública central e local' (artigo 1º , alínea b)), autorização que visava 'designadamente':
'a) Abrir melhores perspectivas de carreira; b) Criar carreiras ajustadas à especificidade funcional e habilitacional de alguns grupos especiais; c) Alargar e reforçar os mecanismos de intercomunicabilidade entre carreiras;
d) Salvaguardar e estimular o mérito profissional; e) Clarificar as funções das carreiras integradas no grupo de pessoal técnico-profissional, identificando e autonomizando as áreas funcionais específicas; f) Enriquecer funcionalmente a carreira administrativa, tendo em vista nomeadamente a progressiva informatização desta área; g) Diversificar as tarefas da carreira de escriturário-dactilógrafo e abrir perspectivas de ingresso na carreira administrativa; h) Rever o sistema de progressão nas carreiras horizontais no sentido de estimular o mérito. ' (artigo 2º) Foi, por seu turno, ao abrigo do artigo 201º nº 1 alínea b) da CRP, também na versão de 82, que o Governo aprovou o DL nº 248/85, ou seja, no exercício de funções legislativas, com a competência de 'fazer decretos-leis em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta '. O DL nº 248/85 divide-se em três capítulos, com as seguintes epígrafes:
'Objecto, âmbito e princípios gerais', o I, 'Regime geral das carreiras', o II e
'Disposições finais e transitórias', o III. Dentro destes capítulos interessam para o caso os artigos 1º, 2º, 22º nº 1 alínea a) e 45º nº 2. O artigo 1º delimita o objecto do diploma: o estabelecimento do 'regime geral de estruturação das carreiras da função pública numa perspectiva de avaliação global das funções exercidas'. Sobre o âmbito de aplicação, determina o artigo 2º que as disposições do decreto-lei se aplicam: a) Aos serviços da administração central e aos institutos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos; b) À administração local, com as adaptações que lhe vierem a ser introduzidas por decreto regulamentar; c) Às regiões autónomas. Excluem-se do âmbito de aplicação do diploma, no ponto em que este dispõe sobre o regime de carreira, os serviços em regime de instalação. No que concerne à carreira de oficial administrativo, o recrutamento para as categorias de oficial administrativo principal, primeiro-oficial e segundo-oficial faz-se, por força do artigo 22º nº 1 alínea a), de entre, respectivamente, primeiros-oficiais, segundos-oficiais e terceiros-oficiais, com um mínimo de três anos na categoria anterior, classificados de Bom. Por último, o artigo 45º nº 2 confere às regiões autónomas, 'sem prejuízo da imediata aplicação do presente decreto-lei' o poder de 'regulamentar a competência administrativa dos órgãos das administrações regionais no respeitante à sua execução'. Com expressa invocação do disposto no artigo 45º do DL nº 248/85, a Assembleia Regional dos Açores aprovou em 6/3/86, o Decreto Legislativo Regional nº
13/86/A, publicado em DR nº 92, de 21/4/96. Entre outras disposições que para o caso não interessam, o diploma define, ao nível da administração regional autónoma, 'quais as entidades que desempenharão, bem como as formas legais que determinados actos deverão revestir, as competências administrativas atribuídas aos membros e serviços do Governo da República'. No mesmo diploma não se encontra qualquer norma que disponha sobre o recrutamento para as categorias da carreira de oficial administrativo, movendo-se inteiramente no âmbito do que o DL nº 248/85 unicamente confiava ao poder regulamentar das regiões autónomas (cit. artigo 45º).
Diz-se no preâmbulo desta 'resolução', expressamente emitida ao abrigo do disposto no artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP, ou seja o que confere às regiões autónomas o poder de 'exercer poder executivo próprio':
'O oficial administrativo é responsável pelo apoio a todas as actividades que são desenvolvidas pela Administração Pública, razão por que a eficácia da mesma Administração depende, significativamente, do sector administrativo que possui. Tem sido e continua a ser preocupação da Administração Regional Autónoma a criação de condições que permitam uma maior motivação e realização profissional deste pessoal, investindo-se, claramente, no aumento da respectiva qualificação profissional, nomeadamente, através da criação de programas de formação que correspondam às necessidades efectivas deste sector. Não obstante isto, continua a Administração a sentir que é preciso intensificar a formação, de uma forma mais diversificada e correlacionada com as exigências crescentes destes cargos, bem como mais exigente e abrangendo a totalidade dos efectivos existentes.
Para conseguir estes objectivos, torna-se necessário ligar, claramente, a formação profissional ao acesso na carreira, pelo que a sua frequência e aproveitamento em cursos de formação deve ser obrigatoriamente ponderada nos concursos de acesso da carreira administrativa da Administração Regional Autónoma.' Com esta justificação, a 'resolução' consagra todo um programa normativo aplicável ao acesso às categorias de oficial principal, primeiro-oficial e segundo-oficial, de onde se respigam, como mais significativos, os seguintes traços: a) O acesso àquelas categorias fica condicionado à frequência, durante o tempo de permanência na categoria anterior, de um mínimo de sessenta horas em acções de formação, sem avaliação final, valendo pelo dobro no cômputo de tais sessenta horas as que respeitem a cursos com avaliação final em que o participante tenha obtido aproveitamento; b) As acções de formação só serão consideradas se se enquadrarem na área administrativa, respeitando a diversos sectores expressamente enunciados ou noutras áreas também expressamente definidas; c) As acções de formação devem ser ministradas por certas entidades que a
'resolução' identifica; d) O disposto na 'resolução', aplicável aos concursos de promoção na carreira administrativa, entra em vigor a partir de 1 de Janeiro de 1993. Ora, ainda que se secundarize a expressa referência feita na Lei nº 7/85 ao artigo 168º nº 1 alínea u) da CRP, nenhuma dúvida parece legítima de que o diploma autorizado – o DL nº 248/85 – que, também expressamente, usa a autorização concedida por aquela Lei, versa matéria de 'bases do regime e âmbito da função pública'. Na verdade, pelo que se deixou enunciado sobre algumas das principais disposições do DL nº 248/85, facilmente se infere que este definiu opções politico-legislativas fundamentais em matéria de estruturação das carreiras da função pública, vertente essencial do regime da função pública. E, no que ao caso concerne, a definição de regras de acesso na carreira de oficial administrativo não deixa de se integrar no âmbito do estabelecimento de
'bases' do regime da função pública, acolhendo-se aqui o entendimento sufragado, entre outros, no Acórdão do TC nº 209/94, in DR, II Série, de 13/7/94 e jurisprudência aí citada. A questão que então se coloca é a de saber que espaço de normação é deixado, em tal matéria, aos órgãos – e a que órgãos – das regiões autónomas. Rege a este propósito o disposto no artigo 229 nº 1 alínea c) da CRP que atribui
às regiões autónomas o poder de 'desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as previstas nas alíneas f), g), n) v) e x) do nº 1 do artigo 168º' (sublinhado nosso), sendo certo que à alínea v) do nº 1 do artigo 168º, corresponde 'ipsis verbis' o que se previa na alínea u) do nº 1 do artigo 168º da CRP, na versão de 82. Este poder é, em exclusivo, atribuído a assembleia legislativa regional pelo artigo 234º nº 1 da CRP, devendo revestir a forma de decreto legislativo. Escrevem, a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira (in 'Constituição da República Portuguesa, Anotada, p. 875):
'Em relação às leis da República (leis da Assembleia da República e decretos-leis), a respectiva regulamentação (quando não excluída pela diploma legislativo em causa) bem como a sua 'adaptação' regional (quando prevista no próprio diploma) e ainda o seu desenvolvimento (quando se trate de leis de bases susceptíveis de desenvolvimento regional) só podem ser efectuados pela assembleia regional, mediante decreto legislativo e não pelo governo regional, mediante decreto regulamentar'.
Em suma, da competência exclusiva da assembleia legislativa regional, o desenvolvimento das leis de bases sobre regime e âmbito da função pública, há-de justificar-se pelo interesse específico da região, devendo naturalmente respeitar a lei desenvolvida; não havendo interesse específico da região ou desrespeitada a lei de bases em matéria reservada da Assembleia da República, o decreto legislativo regional que a pretenda 'desenvolver' enfermará de inconstitucionalidade orgânica. Traçado este regime, patente é que a Resolução nº179/91 infringe a CRP. Em primeiro lugar, por, versando matéria que é objecto de uma lei de bases sobre o regime da função pública, não competir ao governo regional, seja por que forma for, desenvolvê-la; essa competência pertence, em exclusivo, à assembleia legislativa regional. Em segundo lugar, por afrontar o disposto no artigo 22º nº 1 alínea a) do DL nº
248/85, condicionando o acesso às categorias de oficial administrativo principal, primeiro-ofical e segundo-oficial a uma regra adicional – a da frequência de cursos de formação - e, assim, com desrespeito da lei desenvolvida. Em terceiro lugar, por não se reconhecer qualquer interesse específico da Região Autónoma dos Açores na consagração daquela regra adicional. Isto porque 'a criação de condições que permitam uma maior motivação e realização profissional' do pessoal da carreira de oficial administrativo é um objectivo que pode generalizar-se a toda a função pública, não sendo ainda especificidade insular o facto de o oficial administrativo ser responsável pelo apoio de todas as actividades que são desenvolvidas pela Administração Pública e de a eficácia da mesma Administração depender significativamente do sector administrativo que possui; acresce que nos considerandos que na 'Resolução' antecedem as respectivas estatuições nada se aponta no sentido de a matéria requerer um especial tratamento na Região, por aí assumir uma particular configuração. O que se deixa dito atendeu, em especial – como parece dever ser – ao conteúdo da regulação constante da Resolução nº 179/91. Poderia, no entanto, objectar-se que o 'desenvolvimento' do DL nº 248/85 – pressuposto de toda a expendida argumentação – não foi objectivo da 'Resolução', como decorreria da expressa invocação do artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP, ao abrigo do qual aquela fora emitida pelo Governo Regional. Mas, sem razão. Atribui o artigo 229º nº 1 alínea g) da CRP às regiões autónomas o exercício de
'poder executivo próprio'. Indefinido na CRP o conteúdo material deste poder, ele aponta, porém, para o exercício da função administrativa pelo órgão superior da administração regional
– o governo regional. No caso da Região Autónoma dos Açores, o respectivo estatuto politico-administrativo atribui ao governo poderes que se integram, claramente, no âmbito da função administrativa; é p. ex. o caso do disposto nas alíneas b) a f) do artigo 56º do dito Estatuto. Sem necessidade de enunciar positivamente o complexo desses poderes, parece líquido que neles se não compreende o de 'legislar', matéria reservada à assembleia legislativa, com as limitações decorrentes do disposto nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 229º da CRP, só podendo os governos regionais produzir normas regulamentares, emitindo regulamentos de diplomas legislativos regionais (cfr. neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira in ob. cIt. P.
856). Ora, por um lado, o conteúdo normativo da Resolução nº 179/91 não traduz qualquer regulamentação de decreto legislativo regional (suposto que, no caso, a assembleia legislativa regional pudesse legislar sobre a matéria, o que, vimos já, não seria constitucionalmente admissível). Por outro, visando produzir efeitos externos e introduzir no ordenamento jurídico, com inovação, uma alteração essencial às regras de acesso em carreira de função pública, a mesma Resolução acaba, substancialmente, por assumir as características de acto legislativo, cuja emissão a CRP proíbe aos governos regionais. O respaldo que procura no artigo 229º nº 1 al. g) da CRP não faz, assim, subtrair a Resolução nº 179/91 ao juízo de inconstitucionalidade orgânica, que antes se reforça pelo acrescido fundamento da violação daquele preceito constitucional. Alcançada esta conclusão, desnecessário se torna o Tribunal averiguar se a Resolução enferma também de inconstitucionalidade formal, como se julgou na sentença recorrida.
5 - Decisão: Pelo exposto e em conclusão decide-se julgar inconstitucional por violação dos artigos 229º nºs. 1, alíneas a) e c) e 2 e 234º nº. 1 da CRP, na versão resultante da 2ª revisão (1989), a Resolução nº 179/91, de 12 Setembro, do Governo Regional dos Açores, confirmando-se a decisão impugnada. Lisboa, 2 de Março de 1999- Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa