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Proc. nº 1092/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa, G... apresentou queixa crime contra J..., invocando ter este preenchido, assinado e entregue ao denunciante um cheque, com data de 10 de Julho de 1993, sobre o Banco F..., S.A., do valor de 9 757 130$00, que veio a ser devolvido por falta de provisão. Segundo declaração do denunciante a quantia titulada pelo cheque destinava-se ao pagamento de um empréstimo por ele concedido a J....
O Ministério Público deduziu acusação contra J..., imputando--lhe a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, então previsto e punível pelo artigo
11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, conjugado com o artigo 314º, alínea c), do Código Penal de 1982. Proferido despacho a receber a acusação, G... veio requerer a intervenção no processo como assistente e deduzir pedido de indemnização cível, pedindo a condenação do arguido no pagamento das importâncias de 9 757 130$00 e de 100
000$00 (correspondentes, respectivamente, ao valor do cheque e ao valor do prejuízo sofrido com a falta de provisão), acrescidas de juros moratórios calculados à taxa legal.
O arguido apenas contestou o pedido cível.
2. Por sentença de 10 de Outubro de 1997, o Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa condenou J... pela prática, como autor material de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de vinte meses de prisão – suspendendo a sua execução pelo período de três anos. Quanto ao pedido cível, condenou o arguido a pagar ao ofendido a importância de 9 757 130$00, acrescida de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal.
G... interpôs recurso da decisão, invocando erro de interpretação e aplicação dos artigos 50º e 51º do Código Penal, por não concordar com a suspensão da execução da pena de prisão ou, no mínimo, com a suspensão nos termos em que foi decretada, isto é, sem que ao arguido tenha sido imposto o cumprimento de um dos deveres previstos no artigo 51º do Código Penal.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 3 de Fevereiro de
1998, decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo assistente, por falta de legitimidade deste, invocando o disposto nos artigos 69º, nº 2, alínea c), e 401º, nº 1, alínea b), e nº 2, do Código de Processo Penal.
G... pretendeu então interpor recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações, formulou as seguintes conclusões:
'1. O Mmº Juiz do Tribunal de 1ª Instância pronunciou-se especificamente e, de acordo com os respectivos normativos, sobre o pressuposto da legitimidade do assistente para recorrer.
2. A referida apreciação e decisão fez caso julgado formal quanto à legitimidade do assistente face ao recurso interposto, entendida esta como a qualidade que lhe permite exercer adequada e atempadamente os direitos processuais inerentes.
3. Com base na ofensa de caso julgado formado pela apreciação da legitimidade, deverá ser admitida a intervenção do assistente para interpor e ver conhecido o recurso para o Tribunal de 2ª Instância.
4. A posição do assistente no âmbito dos presentes autos foi gravemente afectada pela pena aplicada e respectiva suspensão, sem sujeição aos deveres consignados no Artº 51º do Código Penal.
5. Dado que o arguido não possui qualquer património susceptível de penhora
(porque alienado ao longo do recurso dos autos) a pena de prisão efectiva ou a sua suspensão condicionada ao pagamento do cheque traduzir-se-ia no único meio do assistente ver ressarcidos os prejuízos sofridos com a conduta daquele, em consequência da prática do crime objecto dos autos.
6. A decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, os Artºs
672º do C.P.C. ex vi Artº 4º do C.P.P. e Artº 69º do mesmo legal.'
O Desembargador Relator não recebeu o recurso, por o mesmo não ser admissível, face ao disposto nos artigos 11º, nºs 2 e 3, 400º, nº 1, alínea d), e 432º, alínea a), do Código de Processo Penal.
Deduzida reclamação por G..., foi a mesma deferida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com base no artigo 687º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicado por força do artigo 4º do Código de Processo Penal.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 23 de Setembro de 1998, decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo assistente, com os seguintes fundamentos:
'A primeira questão posta pelo recorrente nas suas conclusões é a da existência de caso julgado formal: o despacho proferido em 1ª instância a admitir o recurso impede que o Tribunal Superior aprecie de novo a mesma questão, dando-lhe uma solução diferente. Não tem razão, porém, o recorrente. Dispõe o art. 417º, nº 2, al. a) do C.P.P. que no «exame preliminar o relator verifica: a) Se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso». E se houver, levará o processo à conferência que decidirá – art. 417º nº 3 al. a) e 419º nº
3. E uma das questões que pode obstar ao conhecimento do recurso é, precisamente, o não ser a decisão recorrível [...]. Perante o assim disposto, nada impede que o Tribunal Superior decida de maneira diferente da que foi defendida pelo Tribunal hierarquicamente inferior. Se é a própria lei que admite tal facto, nunca o primeiro despacho poderá levar à existência de caso julgado formal. Ainda que não fosse esta a interpretação a dar ao art. 417º nº 2 al. a), sempre a mesma solução era de admitir em face do disposto no nº 4 do art. 687º do C.P. Civil, aplicável em processo penal por força do art. 4º do C.P.P.. Segundo aquele nº 4 'a decisão que admite o recurso, fixa a sua espécie ou determina o efeito que lhe compete não vincula o Tribunal Superior, [...]'.
É pois, inteiramente legitima a decisão proferida ao não admitir o recurso para o S.T.J., uma vez que não há ofensa de caso julgado. Mas também é legítima por outra circunstância. Segundo o nº 1, al. d) do art. 400º do C.P.P. não é admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões proferidas em primeira instância. Ora o acórdão recorrido foi proferido em recurso interposto de decisão proferida em 1ª instância, como vimos acima. Logo, do acórdão da Relação proferido já não é admissível recurso para o S.T.J.. E o mesmo princípio resulta das normas consagradas nos nºs 2 e 3 do art. 11º e al. a) do art. 432º, do mesmo diploma legal. Perante isto, fica prejudicada a análise sobre se o assistente tinha ou não legitimidade para recorrer.'
5. G... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para a apreciação da
'inconstitucionalidade do artigo 69º do Código de Processo Penal, face à previsão do nº 1 do artigo 20º da C.R.P.'.
O Conselheiro Relator não admitiu o recurso, por não ter sido invocada durante o processo a inconstitucionalidade do artigo 69º do Código de Processo Penal.
Inconformado, G... reclamou para o Tribunal Constitucional do despacho que não admitiu o recurso.
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
6. O fundamento invocado para a rejeição do recurso foi a não invocação durante o processo da inconstitucionalidade da norma que o recorrente pretende que este Tribunal aprecie – a norma do artigo 69º do Código de Processo Penal.
Tendo o recorrente indicado como fundamento do recurso a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para que o Tribunal Constitucional dele pudesse conhecer seria necessário que:
· o recorrente tivesse suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma ou normas que pretende que o Tribunal aprecie;
· essas normas tivessem sido aplicadas na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão. Além disso, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada de forma clara e perceptível, isto é, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir.
No caso dos autos, o recorrente não suscitou de modo processualmente adequado qualquer questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, tal como se afirma no despacho reclamado, 'dizer que foi violada, por erro de interpretação e aplicação o artigo 69º do C.P.P. [...] não é o mesmo que invocar a sua inconstitucionalidade'.
Acresce que a norma do artigo 69º do Código de Processo Penal não constituiu o fundamento da decisão do Supremo Tribunal de Justiça. O acórdão de 23 de Setembro de 1998, que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo assistente, fundamentou-se no artigo 400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, bem como nos preceitos constantes dos artigos 11º, nºs 2 e 3, e
432º, alínea a), do mesmo Código. Por outras palavras, o fundamento para a não admissão do recurso foi a irrecorribilidade da decisão e não a ilegitimidade do recorrente.
7. Conclui-se assim que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – o tipo de recurso que o ora reclamante pretendia interpor.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 9 de Março de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa