Imprimir acórdão
Processo nº 586/95
2ª secção Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A firma A deduziu no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga oposição à execução que contra ela foi instaurada para cobrança da quantia de 5.234.272$00, em dívida ao INSTITUTO REGULADOR E ORIENTADOR DOS MERCADOS AGRÍCOLAS (IROMA), proveniente da taxa da peste suína e da taxa de comercialização, relativas aos meses de Janeiro, Fevereiro, Março e Abril, de 1993.
Invocou a ilegalidade da dívida, 'por inconstitucionalidade orgânica e formal dos diplomas em que se baseia'.
O Juiz, por decisão de 11 de Maio de 1995, julgou procedente a oposição, tendo, para tanto, recusado aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ao artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro.
2. É desta decisão (de 11 de Maio de 1995) que vem o presente recurso, interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro.
Neste Tribunal, apenas alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, tendo concluído as suas alegações do modo que segue:
1º - A norma constante do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, ao prescrever que as taxas de comercialização e outras imposições parafiscais a favor dos organismos de coordenação económica extintos passam a ser cobradas e a constituir receita do IROMA - e que aparece inserida no capítulo referente às
'disposições finais e transitórias' - surge como meramente consequencial de uma alteração da orgânica administrativa, operada por aquele diploma legal e traduzida na extinção de determinados institutos públicos e na criação de outro, que sucede nas funções, competências e relações jurídicas de que aqueles eram titulares.
2º - Tal norma situa-se, consequentemente, fora do âmbito da reserva de lei referente à 'criação de impostos e ao sistema fiscal', decorrente do preceituado nos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa, nada obstando a que fosse editada pelo Governo, no exercício da sua competência legislativa própria.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, no que se refere à inconstitucionalidade orgânica da norma nela desaplicada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, é (ou não) inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso:
Apenas a norma que se contém no artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, constitui objecto do recurso.
Só ela foi, de facto, desaplicada pela decisão recorrida, com fundamento na sua inconstitucionalidade - recte, por aí se haver entendido que, tendo sido editada pelo Governo sem credencial parlamentar, viola o artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, uma vez que - disse-se - 'a cobrança de taxas e a afectação do seu produto a certa entidade são aspectos do sistema fiscal', constituindo, por isso, matéria 'da exclusiva competência da Assembleia da República'.
De outro lado, como o recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e não ao abrigo da alínea i) do nº 1 do mesmo artigo 70º, suposto que esta alínea cubra os casos de desaplicação de lei interna, por violação de direito comunitário derivado, não pode tal norma - como bem sublinha o Ministério Público - ser aqui ajuizada procedendo ao seu confronto com o artigo 33º da 6ª Directiva do Conselho das Comunidades Europeias, de 17 de Maio de 1977, a fim de se decidir se ela é ou não compatível com essa Directiva.
5. O regime legal das taxas de comercialização e outras imposições a favor do IROMA:
5.1. No propósito de 'prosseguir por todos os meios na luta contra a grave epizootia conhecida por peste suína africana', por isso ser
'do maior interesse para a economia nacional' (cf. preâmbulo do Decreto-Lei nº
44.158, de 17 de Janeiro de 1962), o Governo criou, 'com carácter temporário, a taxa de $30 por quilograma de carne de porco abatida e importada para consumo no território metropolitano'.
O produto das taxas cobradas - cobrança que era feita pelas repartições de finanças, sendo o pagamento voluntário, e pelos tribunais das execuções fiscais, havendo lugar a cobrança coerciva: cf. artigos 2º e 4º do citado Decreto-Lei - era 'escriturado em conta de depósito em operações de tesouraria, transitando para receita do Estado, em rubrica adequada, na medida das necessidades, para cobertura dos encargos com a luta contra a peste suína atípica vírus L (peste suína africana), incluindo indemnizações pelo abate e destruição de animais' - prescreve o artigo 5º do mesmo diploma legal.
Os encargos da luta contra a peste suína são os que decorrem do pagamento de indemnização aos proprietários dos suínos vitimados pela peste suína africana (cf. o Decreto-Lei nº 39.209, de 14 de Maio de 1953, artigo 8º, Decreto-Lei nº 41.178, de 8 de Julho de 1957, Decreto-Lei nº 354/78, de 23 de Novembro, e, bem assim, os artigos 6º e 7º deste Decreto-Lei nº 44.158) e das despesas com o pessoal, o material, os serviços e outros encargos (cf. o artigo 6º acabado de citar).
Essa luta compreende, na verdade, 'a execução de medidas profilácticas e de polícia sanitária'; 'a investigação e a produção de meios de luta e prevenção'; e 'a educação sanitária, incluindo a assistência técnica e a vulgarização' (cf. o artigo 6º já citado).
A Junta Nacional dos Produtos Pecuários devia fornecer
à Direcção-Geral dos Serviços Pecuários, no mês seguinte ao do abate ou importação, relação das importações ou abates. Dessa relação constavam os nomes das entidades a cargo de quem haviam sido feitas as importações e os abates, o número de animais e de quilogramas de carne abatida ou importada e os demais elementos indispensáveis para o cálculo da taxa e identificação do responsável pelo seu pagamento (cf. artigo 3º do citado Decreto-Lei nº 44.158).
A Direcção-Geral dos Serviços Pecuários remetia, mensalmente, às repartições de finanças dos concelhos da residência dos proprietários ou importadores de carne suína as respectivas guias, com vista ao pagamento voluntário das taxas devidas (cf. artigo 2º do mesmo diploma legal).
Se as guias não fossem pagas no prazo de 30 dias, procedia-se à cobrança judicial das taxas (cf. artigos 2º e 4º do citado Decreto-Lei nº 44.158).
A referida taxa de $30 por quilograma de carne de porco abatida ou importada foi aumentada para 2$00 por quilograma, pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 19/79, de 10 de Fevereiro. E isso - lê-se no preâmbulo - 'a fim de poder fazer face ao aumento de encargos com a crescente acção sanitária a desenvolver pelos serviços oficiais, decorrentes da peste suína africana'.
5.2. Com a publicação do Decreto-Lei nº 354/78, de 23 de Novembro, a cobrança desta taxa (a taxa da peste suína, criada pelo Decreto-Lei nº 44.158, de 7 de Janeiro de 1962) passou a ficar a cargo da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, que devia depositar o produto arrecadado à ordem do Fundo de Abastecimento, o qual seria destinado unicamente ao pagamento de indemnizações devidas pelos abates sanitários e às despesas de liquidação e cobrança das mesmas taxas. [O Fundo de Abastecimento foi extinto pelo Decreto-Lei nº 95/86, de 13 de Maio, tendo-lhe sucedido o Instituto Nacional de Garantia Agrícola
(INGA): cf. artigos 1º e 2º do citado Decreto-Lei nº 95/86 e, bem assim, o Decreto-Lei nº 96/86, de 13 de Maio].
5.3. Mais recentemente, o Decreto-Lei nº 250/88, de 16 de Julho - depois de registar no preâmbulo que, em Portugal, 'ainda ocorre a epizootia da peste suína, quer africana, quer clássica', impondo-se, por isso,
'com vista à erradicação do morbo da peste suína clássica', proceder ao
'alargamento do âmbito do disposto no artigo 8º do Decreto-Lei nº 39.209, e de aplicação da receita gerada pela cobrança da taxa criada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 44.158, de 17 de Janeiro de 1962', pagando 'uma indemnização aos criadores, à semelhança, aliás, do que acontece com a peste suína africana' - dispõe no artigo 1º que o presente diploma se destina 'a estabelecer, no território do continente, a disciplina de execução material e financeira dos planos de erradicação da peste suína africana e da peste suína clássica'.
No artigo 6º deste Decreto-Lei nº 250/88, prescreve-se que 'as receitas e despesas relativas à luta contra a peste suína africana' - que, até 31 de Dezembro de 1987, 'eram de responsabilidade do INGA' [Instituto Nacional de Garantia Agrícola, criado pelo Decreto-Lei nº 95/86, de 13 de Maio, e cujo estatuto consta do Decreto-Lei nº 282/88, de 12 de Agosto] - 'são transferidas, a partir daquela data, para o IFADAP' (Instituto Financeiro de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas, cujo estatuto consta do Decreto-Lei nº 414/93, de 23 de Dezembro).
No artigo 7º, nº 1, alínea a), do mesmo Decreto-Lei nº
250/88, cometeu-se ao IROMA (criado pelo Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro)
'a cobrança da taxa criada pelo Decreto-Lei nº 44.158, de 17 de Janeiro de
1962', acrescentando-se no artigo 8º, nº 1, que, 'no caso de importação de carne de porco, os agentes económicos importadores são obrigados a liquidar ao IROMA as taxas devidas respeitantes à importação efectivada'.
No artigo 12º, nº 1, deste Decreto-Lei nº 250/88, dispõe-se que as verbas a gastar em cada 'plano específico de erradicação' (cf. artigo 9º, nºs 1 e 2) são, entre outras, as 'provenientes da cobrança da taxa prevista no Decreto-Lei nº 44.158, de 17 de Janeiro de 1962', acrescentando-se no nº 3 que o produto da cobrança de tal taxa é depositado na Caixa Geral de Depósitos à ordem do IFADAP e destina-se 'à cobertura dos encargos com a luta contra as pestes suínas africana e clássica, incluindo as despesas com a liquidação e cobrança da taxa, pagamento das indemnizações devidas pelo abate e destruição dos animais, atacados ou suspeitos, bem como a suportar os encargos financeiros derivados do eventual desfasamento entre as receitas geradas e as despesas efectuadas'.
Até 31 de Dezembro de 1987, 'as receitas e despesas relativas à luta contra a peste suína africana' eram da responsabilidade do INGA, mas, a partir dessa data, foram transferidas para o IFADAP (cf. artigo 6º deste Decreto-Lei nº 250/88).
No artigo 17º, aditou-se um § 3º ao artigo único do Decreto-Lei nº 41.178, de 8 de Julho de 1957, aí se preceituando que 'o disposto no parágrafo anterior abrange igualmente os abates efectuados para combate à epizootia de peste suína clássica'.
5.4. Entretanto, tinha sido publicado o Decreto-Lei nº
343/86, de 9 de Outubro, ao abrigo da autorização legislativa concedida pelo artigo 72º da Lei nº 9/86, de 30 de Abril, que, no seu artigo 1º, veio dispor que 'sobre as carnes e miudezas verdes ou congeladas e ovos de origem nacional ou importados que se destinam ao consumo público, quer em natureza, quer após transformação, incidirão taxas a cobrar pela Junta Nacional de Produtos Pecuários'.
Estas 'taxas' (chamadas taxas de comercialização) eram cobradas já desde 1972, tendo sido instituídas pelo Despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Economia, de 23 de Novembro de 1972, constituindo receitas da Junta Nacional de Produtos Pecuários, sendo, posteriormente, actualizadas pela Portaria nº 192-G/78, de 7 de Abril, e, mais recentemente, pelo Decreto-Lei nº 182/82, de 15 de Maio.
No artigo 2º, estatui-se que a taxa a cobrar sobre as carnes e miudezas de bovino, suíno e equídeos é de 3$00 por quilograma, sendo de
1$50 por quilograma a devida por carnes e miudezas de aves, e de 1$20 a devida por cada dúzia de ovos [cf. as alíneas 1), 2) e 3), respectivamente].
A taxa referida na alínea 1) desse artigo 2º (3$00 por cada quilograma de carne de bovino, suíno ou equídeo) é paga pelos proprietários dos animais ao seu apresentante ou ao importador, consoante se trate de carnes ou miudezas provenientes de abates realizados pelo próprio, por terceiros ou importadas (cf. artigo 3º, nº 1).
5.5. Já se referiu que o IROMA (Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas) foi criado pelo Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro.
O IROMA sucedeu à Junta Nacional dos Produtos Pecuários
(JNPP), tal como a outros organismos públicos que foram igualmente extintos, assumindo 'as obrigações e os direitos adquiridos emergentes de contrato, de acto jurídico ou de lei constituídos na esfera jurídica' da referida Junta (cf. artigos 12º, nºs 1 e 2). Com uma excepção: 'os débitos e créditos financeiros existentes à data da publicação deste diploma legal' 'serão liquidados pelo INSTITUTO NACIONAL DE GARANTIA AGRÍCOLA (INGA), que, para esse efeito, possuirá uma estrutura específica transitória' (cf. nº 3 do mesmo artigo 12º).
6. A questão de constitucionalidade:
No artigo 13º deste Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro - que é a única norma que aqui está sub iudicio - prescreve-se: As taxas de comercialização e outras imposições parafiscais a favor dos organismos extintos e que não contrariem o disposto no Acto de Adesão de Portugal à CEE passarão a ser cobradas e a constituir receitas do IROMA.
No que aqui importa, o preceito acabado de transcrever, conjugado com a legislação pertinente, prescreve:
(a). As taxas de comercialização (criadas, em 1972, como receitas da Junta Nacional de Produtos Pecuários, cujo montante foi actualizado, por último, pelo Decreto-Lei nº 343/86, de 9 de Outubro) passam a ser cobradas e a constituir receitas do IROMA, em virtude de a referida Junta ter sido extinta;
(b). A taxa da peste suína (criada pelo Decreto-Lei nº
44.158, de 17 de Janeiro de 1962, como receita do Estado, a fim de ser aplicada no pagamento dos 'encargos com a luta contra a peste suína africana', que, inicialmente, era cobrada pelas repartições de finanças e, mais tarde, pela Junta Nacional de Produtos Pecuários) passou também, como consequência da extinção da dita Junta, a ser cobrada pelo IROMA, que, depois, a coloca à ordem do IFADAP, com vista a cobrir os encargos da referida 'luta contra as pestes suínas africana e clássica, incluindo [...] pagamento das indemnizações devidas pelo abate e destruição de animais atacados ou suspeitos'.
Como se vê, o mencionado artigo 13º não criou qualquer tributo, não lhe determinou a incidência, nem a taxa, nem dispôs inovatoriamente sobre o destino do produto de nenhuma daquelas taxas. Do que tão-só se tratou foi de cometer a um organismo da Administração (no caso, ao IROMA) o encargo de cobrar receitas que antes eram cobradas por outro organismo, entretanto extinto (no caso, a Junta Nacional de Produtos Pecuários). E isto, porque o IROMA sucedeu à dita Junta, para ela se transferindo 'todas as competências legais ou administrativamente atribuídas' à mesma (cf artigo 3º, nº
3, do Decreto-Lei nº 15/87) e, bem assim, 'as obrigações e os direitos adquiridos emergentes de contrato, de acto jurídico ou de lei, constituídos na
[respectiva] esfera jurídica' [cf. artigo 12º, nº 1, alínea a), e nº 2, do mesmo Decreto-Lei nº 15/87]. Tratou-se, pois, tão-somente de um rearrumar de competências no interior da Administração, que se mostrou necessário por ter ocorrido a extinção de certas estruturas administrativas: no caso, atribuiram-se ao IROMA competências da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, que foi extinta.
Seja, pois, qual for a natureza da taxa da peste suína e a da taxa de comercialização (imposto ou taxa) - questão que aqui não interessa decidir - a norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, não viola o artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, que prescreve que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a 'criação de impostos e sistema fiscal'.
De facto, o Governo apenas carecia de autorização parlamentar para a definição e articulação do sistema fiscal em geral e, bem assim, para a criação de cada um dos impostos, incluindo o seu regime no que concerne à incidência, à taxa, aos benefícios fiscais e às garantias dos contribuintes.
O artigo 13º mencionado não versa, porém, sobre nenhuma destas matérias.
7. Conclusão: A norma do artigo 13º do Decreto-Lei nº
15/87, de 9 de Janeiro, não é, assim, inconstitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida que deve ser reformada em conformidade com o aqui decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 7 de Março de 1996 Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa