Imprimir acórdão
Proc. nº 550/94
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A e outros requereram, ao abrigo do disposto no artigo 15º e seguintes do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29.12., e por incidente no processo principal, a concessão do benefício de apoio judiciário nos autos de processo arbitral com o número 10/22-A, do ano de 1988, instalado no Supremo Tribunal de Justiça, para resolver o litígio entre B e aqueles.
Por decisão do Tribunal Arbitral indicado, datada de 18 de Dezembro de 1992, viram tal pretensão indeferida, tendo da mesma interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Esta instância confirmou a decisão recorrida, e condenou os recorrentes em custas, no montante de 3.591.650$00.
Do respectivo acórdão, e sobre a parte da condenação em custas, interpuseram os mesmos recorrentes recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando, nomeadamente, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8º, alínea v) do Código das Custas Judiciais, por violação do artigo 20º da Constituição.
Tendo esta instância superior negado provimento ao seu recurso, e inconformados com essa decisão, os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alegada violação do artigo 20º da CRP pela norma constante do artigo 8º, alínea v) do Código das Custas Judiciais, a qual foi utilizada para determinar o valor do incidente de pedido de apoio judiciário.
2. Neste Tribunal, formularam os recorrentes as seguintes conclusões:
UM : É inconstitucional o artº. 8º.v) do C.C.J. por violação do artº.20º da Constituição, uma vez que o cálculo das custas do incidente de apoio judiciário pelo valor da causa inibe os Réus demandados por centenas de milhares de contos, de requererem esse incidente, atendendo à brutal cominação de um eventual decaimento, pondo assim em causa o seu direito de acesso à justiça.
DOIS : Sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, previsto no artº.20º. da Constituição, o incidente ao apoio judiciário corresponde a um interesse imaterial, sendo o seu valor o previsto no artº.312º. do C.P.C..
O Ministério Público apresentou alegações, tendo concluído pela constitucionalidade da norma em causa, pelos fundamentos seguintes:
[...] o objecto do procedimento de apoio judiciário não é declarar, em termos genéricos, invocáveis em qualquer acção, a existência de um direito fundamental no confronto do Estado, como corolário da verificação de uma situação de insuficiência económica do requerente, mas tão somente decidir se, no âmbito de uma causa certa e determinada lhe deve ser ou não deferido tal benefício, ponderada a natureza e o valor dos interesses nela debatidos e o montante provável da 'taxa de justiça' devida.
A decisão a proferir no procedimento de apoio judiciário aparece, pois, necessáriamente coligada a uma específica acção, com determinado objecto e valor, surgindo, deste modo, como estritamente funcional e instrumental relativamente à causa principal em que se insere.
Não constitui, por outro lado, qualquer violação do direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais a circunstância de a lei de custas mandar tributar o incidente de apoio judiciário quando se venha a verificar - por decisão definitivamente proferida na ordem dos tribunais judiciais - que o mesmo carecia, afinal, de fundamento sério, por o requerente dispor de capacidade económica suficiente para suportar os custos da acção.
Neste caso, a tributação é simples decorrência do princípio geral, afirmado pelo artigo 446º do Código de processo Civil, segundo o qual deve suportar as custas da acção, recurso, incidente ou procedimento cautelar a parte que a eles houver dado causa: paga as custas correspondentes a certa actividade processual quem injustifica- damente a originou.
3. Corridos os vistos legais, cumpre, pois, decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. A questão colocada pelos recorrentes
é, afinal, a de saber se a norma constante da alínea v) do artigo 8º do Código das Custas Judiciais constitui uma verdadeira restrição desproporcionada ao direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, consignado no artigo
20º da Lei Fundamental. Consideram os recorrentes, em sustento da sua tese, que o direito de acesso à justiça e aos tribunais é um verdadeiro direito imaterial, e que, como tal , a determinação do valor dos incidentes ou processos de apoio judiciário - meio privilegiado de realizar aquele direito pelos que não têm possibilidades económicas de custearem o acesso aos tribunais
- se deve fazer pelas regras atinentes à fixação do valor dos processos que têm por objecto esse tipo de direitos, ou seja, pelo artigo 312º do Código de Processo Civil.
Não tem este Tribunal que apurar da natureza material ou imaterial do direito de acesso à justiça e aos tribunais, nem tão-pouco pronunciar-se sobre a bondade ou justeza da opção feita pelo legislador, ao estabelecer que o valor dos incidentes de apoio judiciário é «o da acção a que respeitam». Cabe-lhe aqui, tão somente, e no que à matéria de constitucionalidade concerne, verificar se a norma constante do artigo 8º, alínea v) do Código das Custas Judiciais, ao determinar que, nos processos de apoio judiciário, o valor atendível para efeitos de custas é o da acção a que respeitam, constitui afrontamento ou restrição inaceitável do direito de acesso aos tribunais.
Dispõe a norma em apreço:
1. Os valores atendíveis para efeito de custas são, com ressalva do disposto no art. 11º, os que resultam da aplicação das leis de processo para o processado a contar, se não forem diferentes dos referidos nas alíneas seguintes:
[...]
v) Nos processos de assistência judiciária - o da acção a que respeitam;
E pode-se ler no acórdão do S.T.J., ora recorrido:
Temos, assim, um direito geral à protecção jurídica, onde se enquadram conexamente os direitos:
a) de acesso ao direito
b) de acesso aos tribunais
c) à informação e consulta jurídicas
d) ao patrocínio judiciário
Os comentadores Prof.s Canotilho e Vital Moreira ensinam que 'o direito ao acesso ao direito não é apenas instrumento de defesa dos direitos e interesses legítimos. É também elemento integrante da igualdade e do próprio princípio democrático, pois este não pode deixar de exigir também a democratização do direito'
E com aplauso uniforme da nossa doutrina.
Trata-se duma igualdade jurídico-material vista sob dois prismas : obrigação do legislador de regular de forma igual o que é essencialmente igual e a obrigação das autoridades que aplicam a lei de proceder do mesmo modo.
Não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, aqui estará o traço saliente da ideia de democratização da justiça.
[...]
O direito de acesso ao direito terá como finalidade teleológica atribuir aos cidadãos o direito fundamental de exigir do Estado a reformulação do direito substantivo, no sentido de o cidadão poder conhecer os seus direitos e a forma de, melhor, mais eficaz e em tempo útil, exercitá-lo. Mas mais.
Existe também como vertente primordial o direito de exigir do Estado a dotação de um sistema que consiga abarcar as diárias situações fácticas, que venham intervir, negativamente, na pessoa e património do cidadão.
5. O direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º da Constituição implica «assegurar os meios de assistência judiciária e defesa oficiosa, possibilitadores de uma defesa não claudicante dos direitos fundamentais'. (J.J. Gomes Canotilho, em Manual de Direito Constitucional, Almedina, 3ª edição, pág. 514).
Nesta conformidade, tem este Tribunal entendido de forma generalizada que serão ofensivas dos preceitos constitucionais, nomeadamente do artigo 20º da C.R.P., as normas que neguem ao interessado economicamente carenciado o acesso aos mecanismos de assistência e apoio judiciário, em determinadas circunstâncias processuais. (Cf., por exemplo, os Acórdãos nº 450/89, publicado no Diário da República, nº 24, II Série, de
29.01.90, nº 99/90, publicado no Diário da República nº 204, II Série, de 4.9.90 e nº 400/91, publicado no Diário da República nº 263, I Série-A, de 15.11.91, entre outros). Mas, pelo contrário, tem considerado constitucionalmente admissíveis os meros condicionalismos ou formalidades que rodeiam ou regulamentam os procedimentos de apoio judiciário. (Cfr. o Acórdão nº 395/89, publicado no Diário da República nº 212, II Série, de 14.9.89).
O artigo 20º da Constituição não impõe a gratuitidade do acesso aos tribunais, só impedindo que ele seja contrariado pela insuficiência de meios económicos dos interessados, como foi salientado no Acórdão nº 409/94 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 5.9.94).
O instituto do apoio judiciário não é, pois, um instrumento generalizado, ou pressuposto primário de acesso ao direito:
é, antes, um remédio, uma solução a utilizar, de forma excepcional, apenas pelos cidadãos economicamente carenciados ou desfavorecidos, e não de forma indiscriminada pela globalidade dos cidadãos. Isto implica, necessariamente, que também o sistema das custas judiciais tenha que ser um sistema proporcional e justo, que não torne insuportável ou inacessível para a generalidade das pessoas o acesso aos tribunais.
Estando os processos judiciais sujeitos a custas, e constituindo os incidentes de apoio judiciário um procedimento judicial, encontram-se, também eles, sujeitos a essas mesmas custas, do pagamento das quais sempre ficará isento o requerente quando lhe seja concedido o apoio; já em caso de sucumbência do seu pedido, deverá o interessado suportar as custas do incidente a que deu origem, como dispõe a regra geral do artigo
446º do Código de Processo Civil.
E a norma em questão nos presentes autos adopta como critério para tal tributação o valor da acção principal, aquela em que se fazem valer ou defender os direitos ou interesses em litígio, e para a prossecução da qual se pede a concessão desse apoio; o que é reflexo da própria instrumentalidade daquele procedimento ou incidente face a esta acção.
Diga-se, desde já, que não se denota aqui qualquer afrontamento ao artigo 20º da Lei Fundamental, já que o critério aqui utilizado não reveste qualquer desproporcionalidade ou arbitrariedade nem se vê como possa obstruir ou impedir o acesso aos tribunais. Efectivamente, se o valor da acção for muito elevado, mais elevadas serão as respectivas custas judiciais, mas em acções de valor inferior, então as respectivas custas serão menores, atento o princípio da proporcionalidade adoptado no artigo 16º do Código das Custas Judiciais, ao passo que, a seguir-se a orientação propugnada pelos recorrentes - isto é, se se tributasse o procedimento de apoio judiciário pelo critério da 'imaterialidade' deste direito, que é dizer, pela regra do artigo
312º do Código de Processo Civil, - nas acções de valor inferior a
2.000.000$00, os requerentes de apoio judiciário, caso lhes não fosse concedido o respectivo benefício, ver-se-iam compelidos a pagar um montante de custas muito superior ao da acção principal - o que conduziria a resultados absurdos e inaceitáveis.
Falece, assim, de todo, a argumentação dos recorrentes, até porque a norma impugnada mais não traduz do que a regra ou princípio geral de determinação do valor dos incidentes processuais, consignado no artigo 313º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Não decorre, pois, desta norma, qualquer desproporcionada restrição do direito de acesso aos tribunais.
É bem verdade que se pode afirmar que, nalguns casos, quando estão em causa acções de muito elevado valor - como acontece no caso sub judicio - o montante das custas do incidente de apoio juciário se apresenta, pelo menos aparentemente, como excessivo. Contudo, tal não se deve à norma em apreciação, em si mesma considerada - que se pode mesmo considerar como relativamente neutra para esse efeito -, mas antes às normas que fixam a taxa de justiça nos incidentes - artigos 43º e 42º do CCJ, que não prevêem um quantitativo máximo de tributação para o incidente de apoio judiciário -, as quais não foram objecto de qualquer impugnação no presente recurso de constitucionalidade.
II - DECISÃO
6. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 20 de Março de 1996 Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa