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Proc.Nº 291/94
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. – “A , Lda' veio propor pelo Tribunal da Comarca de Lisboa uma acção de embargos de terceiro contra B, por dependência da acção de despejo requerida por este último e que veio a ser decretado na referida acção de despejo.
O processo de embargos pretende obstar ao prosseguimento da execução, determinada nos autos principais, do mandado de despejo relativo ao arrendamento resolvido naquela acção.
Após a resposta do embargado, na qual defendeu a improcedência dos embargos e a pronta e completa execução do mandado de despejo, foi proferido um despacho julgando improcedentes os embargos de terceiro.
A sociedade embargante interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa. Apresentadas as alegações e contra-alegações, o relator entendeu exarar um 'despacho' no sentido da inadimissibilidade do recurso, que fundamentou da forma seguinte:
...'A, Ldª, deduziu, em 11/05/92, embargos de terceiro, a que deu o valor de
189.720$00, para se opor à execução do despejo decretado por Acórdão desta Relação de 12/11/91, proferido em acção que contra ela própria havia sido instaurado por B.
Inconformada com a decisão que julgou improcedentes tais embargos, dela apelou a embargante.
Em nosso entender, porém, o recurso é inadmissível.
De harmonia com o preceituado no nº 1 do Artº 678º do C.P.Civil, 'só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre, desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse Tribunal'.
À data da dedução dos embargos, que como se sabe, constituem uma causa nova, com valor próprio, a alçada do Tribunal de Comarca era, e ainda é, de 500.000$00
- Artº 20º da Lei 38/87 de 23/12.
Logo, como no caso o valor dos embargos é de 189.720$00, inferior à alçada do Tribunal de Comarca, o recurso interposto é inadmissível.
Poder-se-ia pensar na aplicabilidade à hipótese, sub judice, do Artº 57º da RAU (que corresponde ao Artº 980º do CPCivil, entretanto revogado) que prescreve:
'A acção de despejo admite sempre recurso para a Relação, independentemente do valor da causa.'
Todavia esse Artº 57º é, aqui, inaplicável.
E isto porque os embargos de terceiro não são, como é óbvio, uma acção de despejo. Por outro lado, na vigência do Artº 980º do CPCivil (de aplicação mais ampla) já se entendia que tal preceito tinha carácter excepcional, não se aplicando, por isso, à fase executiva do despejo (neste sentido, cfr. designadamente, o Acórdão da R. de Coimbra de 11/10/83, CJ VIII/4/54 e Acórdão da R. do Porto de 5/4/84, BMJ 339/466, e de 15/11/84, BMJ 341/470).
Posição que, face ao actual Artº 57º do RAU, continua a ter plena validade e que, por isso, adoptamos.
Pelo exposto, não podendo conhecer-se do recurso dada a sua inadmissibilidade, apresentem-se os autos à conferência.'
Este 'despacho' veio a ser integralmente confirmado pelo acórdão da Relação, de 4 de Novembro de 1993, que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto.
2. - Notificada desta decisão, a sociedade embargante veio arguir a nulidade do acórdão, com fundamento no disposto nas alíneas b),c) e d) do nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil (CPC), designadamente, por o acórdão se basear na aplicação da norma do nº1 do artigo 678º do CPC, que
é inconstitucional por negar a todos, inclusive ao terceiro ofendido pelo despejo, o acesso ao direito e ao poder jurisdicional, suprimindo o duplo grau de jurisdição e também por o acórdão, ao assumir o despacho do relator, ter assentado no entendimento da não aplicação ao processo de embargos do disposto no artigo 57º do RAU, entendimento esse que é também inconstitucional por violar o princípio da igualdade das partes e o princípio do direito de acesso aos tribunais (artigos 13º e 20º da Constituição).
Não tendo havido resposta pelo embargado à arguição de nulidades, foi proferido em 3 de Março de 1994, pela Relação de Lisboa um acórdão que decidiu julgar improcedente a arguição de nulidades.
É deste acórdão que vem levantado o presente recurso de constitucionalidade, sendo o seguinte o teor do respectivo requerimento:
'A, Lda., nos autos à margem identificados, não se conformando com o aliás douto acórdão de fls. , datado de 03.03.1994, vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional em virtude de este aliás douto aresto ter aplicado a norma do nº 1 do artigo 678º do Código de Processo Civil não obstante a sua inconstitucionalidade (em que se insiste) ter sido suscitada por arguição apresentada nos autos em 19.11.1993 (alínea b) do nº 1 do artigo 70º e nº 1 do artigo 75º A, ambos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro).'
3. - Recebido o recurso neste Tribunal, apenas a sociedade recorrente produziu alegações, tendo formulado as seguinte conclusões:
'I. Decidir-se que os embargos de terceiro instaurados contra o mandato de despejo não são parte integralmente conjuntural de um acção de despejo (ou melhor não são meio de defesa dentro do todo conjuntural de uma acção de despejo) é atentatório da igualdade das partes desse despejo.
Efectivamente,
II. Mercê de tal decisão o autor da acção, exequente e promotor do mandato desse mesmo despejo actua unilateralmente, sem a possibilidade de um terceiro injustamente alcançado por esse mandato (no caso, o embargante recorrente) se poder defender de tal diligência inerente à acção.
Em consequência,
III. Semelhante entendimento decisório atenta contra o princípio da igualdade das partes - processual em função do artigo 3º do Código de Processo Civil, e com dignidade constitucional face ao nº1 do artigo 13º da Constituição da República.
Por outro lado,
IV. Considerar inadmissível o recurso interposto em 08.06.1993 por força da exclusiva e absoluta literalidade do nº 1 do artigo 678º do Código de Processo Civil, é também enveredar-se pela inconstitucionalidade.
V. Tal nº 1 do artigo 678º é. à força dessa literalidade, inconstitucional na medida em que atenta contra o nº 1 do artigo 20º da mesma Constituição pois se nega que a todos (incluindo o terceiro ofendido pelo despejo) seja assegurado o acesso ao direito e ao poder jurisdicional 'para defesa dos seus direitos e dos seus interesses legítimos'.
VI. Acresce que o nº 3 do artigo 3º da Constituição da República considera inválidos todos os actos dos órgãos do Estado que inobservem a sua conformidade com ela.
V. Donde e em resumo, o aliás douto acórdão ora arguido representa o cometimento de duas invalidades por inconstitucionalidade:
a) Baseou-se no nº1 do artigo 678º do Código de Processo Civil sem a sua restrição (ao espírito) imposta pelo nº 1 do artigo 57º do RAU e pela unidade do sistema jurídico tal como resulta do nº 1 do artigo 9º do Código Civil.
b) E do entendimento assim perfilhado pelo aliás douto acórdão ora arguido a esse artigo 57º do RAU resulta, inequivocamente, a violação dos também já referidos princípios constitucionais do acesso ao direito e ao poder jurisdicional, bem como o desrespeito da igualdade das partes (nº1 do artigo 20º e nº1 do artigo 13º da Constituição).
VI. No nº 19 da sua arguição de fls. , a recorrente - dado que se desrespeitou a Constituição gerando a nulidade da decisão face às alíneas b),c) e d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil - impugnou-a em tempo próprio, como cometimento de invalidades por inconstitucionalidade.
VII. Daí a viabilidade do presente recurso para fiscalização concreta da constitucionalidade.'
Depois de alinhadas as conclusões que acabam de se transcrever, a sociedade embargante concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
'MARGINÁLIA:
15. Facto, entretanto, é que ela recorrente não insiste na inobservância do 2º (ou duplo) grau de jurisdição. Deste modo restringe o âmbito da sua interposição - demarcando-se todavia desse entendimento, que, pelo menos do ponto de vista doutrinal o signatário rejeita como atentatório de uma desejada melhoria civilizacional da Justiça. Face v.g. ao Código de Processo Civil vigente no Brasil (o de 1973), até cumpre oficiosamente ao juiz determinar a subida dos autos ao Tribunal Superior em certos casos e, se este o não fizer, poderá o presidente deste avocá-los (artigo 475º, cf. professor e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Doutor HUMBERTO THEODORO JUNIOR, 'Curso de direito processual civil', volume I, 2ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1990, nº 517, pp. 584-585).
O signatário faz esta declaração ex vi do artigo 78º do Estatuto da Ordem dos Advogados.'
O embargado e ora recorrido não apresentou alegações.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - A embargante e ora recorrente, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância que julgou improcedentes os embargos, decidiu interpor recurso para a relação. Nas alegações que então apresentou, a recorrente não suscitou qualquer questão de constitucionalidade.
Na Relação, o 'despacho' do relator no sentido do não conhecimento do recurso foi confirmado pelo colectivo. As razões invocadas para a não admissibilidade do recurso, foram duas: o artigo 678º, nº 1, do CPC só admite recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, pelo que, sendo a alçada do tribunal de Esc.s: 500.000$00 e o valor da acção de apenas 189.720$00, o recurso interposto não podia ser admitido; por outro lado, a decisão considerou inaplicável aos embargos de terceiro o disposto no artigo 57º do RAU (Regime do Arrendamento Urbano - aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), que, nas acções de despejo, admite sempre recurso até à Relação, se o valor da acção for inferior ao da respectiva alçada.
Foi ao arguir a nulidade desta decisão da Relação que a recorrente suscitou pela primeira vez as questões de constitucionalidade que se referenciam:
- o entendimento de que o artigo 57º do RAU não é aplicável às acções de embargos de terceiro ao mandato de despejo, viola, segundo a recorrente, não só o princípio da igualdade de armas como também o direito de acesso aos tribunais e à justiça;
- o artigo 678º, nº 1, do CPC, ao impedir a interposição de recurso em processos cujo valor não é superior à alçada do tribunal de que se recorre, é inconstitucional por violar o direito de acesso aos tribunais e à justiça.
Estas questões de constitucionalidade, apesar de ter de se considerar que já estava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal para sobre elas se pronunciar, vieram a ser afastadas pelo acórdão da Relação que julgou improcedentes as nulidades suscitadas.
No seguimento desta decisão, a sociedade recorrente veio então apresentar o requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade que se transcreveu acima. Deste requerimento resulta que o recurso é interposto ao abrigo do preceituado da alínea b), do nº 1 do artigo
70º da LTC, pretendendo a recorrente que se aprecie a inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 678º do CPC, aplicada pela decisão recorrida.
O âmbito de tal tipo de recurso é delimitado pelas questões invocadas no requerimento de interposição do recurso, não podendo a recorrente alargar o seu objecto nas alegações a oferecer, embora possa restringir esse âmbito.
Assim, de acordo com o requerimento inicial apresentado, o objecto do recurso é a apreciação do nº 1 do artigo 678º do CPC, isto é, da apreciação da conformidade constitucional da norma que só admite recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre.
5. - A primeira questão que se suscita é a de saber se pode conhecer-se do recurso assim delimitado.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 280º, nº 1, alínea b) e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Os recursos interpostos ao abrigo da referida alínea b) apenas são admissíveis se, juntamente com outros requisitos, estiverem cumpridos os dois a seguir identificados:
- que a inconstitucionalidade da norma tenha sido previamente suscitada pelo recorrente durante o processo;
- que essa norma terá de vir a ser aplicada na decisão, constituindo um dos seus fundamentos normativos.
Este Tribunal vem entendendo o primeiro dos mencionados requisitos - suscitação «durante o processo» - por forma a que ele deva ser tomado não num sentido puramente formal -tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância -, mas num sentido funcional - tal que a arguição de inconstitucionalidade deverá ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão. Deve, portanto, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal
«a quo» sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.
Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a prolação da sentença e dado que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual para suscitar tal questão antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, se entende dever salvaguardar o direito ao recurso, visto só circunstâncias anómalas ou de imprevisível ou insólita ocorrência justificarem essa via, por não ser razoável exigir o ónus de considerar antecipadamente as várias hipóteses de antecipação normativa. Pode ainda suceder que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se esgote com a decisão final, e, então, será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
Quanto ao segundo requisito, importa referir que a norma cuja inconstitucionalidade for suscitada durante o processo terá de ser fundamento da decisão, aplicada, em regra, na sequência do não atendimento da arguição de inconstitucionalidade.
6. - No caso dos autos, a ora recorrente - 'A, Lda' - foi a autora da acção judicial de embargos de terceiro, que moveu contra o recorrido, dando-lhe o valor processual de Esc.s: 189.720$00, sendo tal acção instaurada na dependência do facto de, na acção principal (cujo valor serviu para o valor dos embargos), ter sido ordenada a passagem de mandado de despejo.
Tendo a embargante atribuido tal valor aos embargos - valor esse que não foi impugnado - não podia deixar de ser manifesto para a embargante que a norma do nº 1 do artigo 678º do Código de Processo Civil obstava ao recurso para a Relação, uma vez que a acção não tinha um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, pelo que defendendo a inconstitucionalidade de tal norma, deveria a recorrente ter suscitado tal questão logo nas alegações de recurso para aquele tribunal.
Mas não foi assim que procedeu, conforme decorre do que ficou anteriormente exposto.
Com efeito, a recorrente embargante apenas veio arguir a inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 678º do Código de Processo Civil em arguição de nulidades do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação. Ora desde sempre e em jurisprudência uniforme (cfr. o acórdão nº 352/94 deste Tribunal, in DR II Série, de 6 de Setembro de 1994, para citar apenas uma decisão recente), o Tribunal Constitucional vem entendendo que aquele incidente não é o suporte processual adequado para a suscitação da questão da constitucionalidade de norma anteriormente aplicada na decisão que logo de seguida se impugna com fundamento em nulidade da mesma, precisamente porque o recorrente teve, no caso em apreço, oportunidade para, em momento anterior ao da decisão impugnada, obter do Tribunal da causa, no exercício pleno dos seus poderes de jurisdição, uma decisão sobre essa mesma questão de constitucionalidade.
Atendendo à circunstância de que nem sequer nas alegações de recurso para a Relação a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 678º do Código de Processo Civil, mais não resta do que aplicar a orientação aludida.
III - DECISÃO:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC's.
Lisboa, 20 de Março de 1996 Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa