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Proc. nº 689/97
1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – S., SA, com sede na Rua ...., no Porto, reclamou da conta de custas elaborada na acção que intentou contra C.,Ldª e outros e que correu termos no 3º Juízo Cível da Comarca do Porto, sob o nº 73-A/93.
Indeferida a reclamação, do respectivo despacho veio a recorrente a interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
O recurso não foi admitido, nos seguintes termos:
“A fls. 106 foi apresentada reclamação da conta. A fls. 112/113 foi decidida aquela reclamação. O requerente não se conformou com a decisão e interpôs recurso. O valor das custas contadas, é de 350.550$00 fls. 103 vº. Assim sendo, a referida decisão não é susceptível de recurso artº 62º do C.C.J.. Pelo exposto não admito o recurso interposto”.
Deste despacho reclamou a recorrente para o Presidente do Tribunal da Relação, apresentando, na sua reclamação, as seguintes conclusões, na parte que interessa
à decisão do presente recurso:
“ 5ª) A norma do art. 62º do C.C.J. que limita o direito de recorrer da liquidação de custas àquelas que excedem 500 contos, é inconstitucional, por violação do princípio fundamental segundo o qual os tribunais tributários não têm alçada – cfr. art. 10º do ETAF e 16º da Constituição.
6ª) Não podendo, por tal motivo, os Tribunais Judiciais indeferir a admissibilidade do recurso com fundamento nessa norma constitucional.
7ª) Impondo-se assim admitir, se pelo antecedente motivo não fosse, o pretendido recurso.
..............................................................................................................”
A reclamação foi indeferida e quanto à arguida inconstitucionalidade decidiu-se:
“Argui, como se disse, a reclamante a inconstitucionalidade do citado artº 62º invocando regras específicas dos tribunais tributários e dos criminais.
Para além da questão aqui posta não se enquadrar no âmbito daqueles tribunais,
é ao legislador ordinário que cabe definir os casos de admissibilidade do recurso.
Aliás a reclamante parece concordar com aquele princípio, considerando o que expôs no ponto 29) da sua reclamação.
Assim, inexiste a arguida inconstitucionalidade”.
É deste despacho que vem interposto o presente recurso, ao abrigo do artigo 70ª nº 1 al. b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, onde se formulam as seguintes conclusões:
“1. O art. 286º da Constituição estabelece e consagra os direitos e garantias dos administrados, isto é, os direitos fundamentais do cidadão enquanto administrado, direitos entre os quais se inclui o direito de recurso contencioso com fundamento em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos, qualquer que seja a forma que estes revistam e qualquer que seja o órgão de onde eles promanem – cfr., a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anot, 3º ed., págs. 933 e s..
2. O conjunto de direitos e garantias no citado art. 286º da Constituição constitui, do ponto de vista do princípio do Estado de direito democrático e com
vénia para os Autores citados, “uma espécie de capítulo suplementar do catálogo constitucional dos direitos, liberdades e garantias, ao lado dos de carácter pessoal, dos de participação política e dos trabalhadores”.
3. Por assim ser, tal conjunto de direitos e garantias é susceptível de aplicabilidade directa e a sua restrição tem de estar prevista na Constituição sob pena de inconstitucionalidade – cfr. aut., e loc. cit..
4. O princípio contido no art. 10º do ETAF, segundo o qual em matéria administrativa e fiscal não existem alçadas constitui um corolário da impossibilidade de o legislador ordinário restringir a recorribilidade contenciosa dos actos administrativos, qualquer que seja a sua forma ou órgão de onde promanem, por força do disposto no art. 286º da Constituição.
5. Donde se segue que o direito de irrestritamente recorrer de actos administrativos constitua aquilo que, na terminologia dos já citados Mestres se denomina, direito fundamental sem assento constitucional – cfr. ob. cit, pág.
116.
Ora,
6. A conta de custas cíveis e a decisão judicial sobre a reclamação que contra ela seja deduzida, não é um acto jurisdicional, mas, sim, um acto jurídico-administrativo de índole tributária, não obstante esta última ser de competência de um juiz.
7. Pois do que nela se trata é de regular a posição das partes em face do Estado, a propósito do pagamento de uma taxa imposta autoritariamente por lei como contrapartida de um serviço e não de resolver um conflito de pretensões entre entes privados e o Estado em que este se apresente destituído de ius imperii.
8. Tratando-se, como se trata, de um acto administrativo, a sua irrestrita recorribilidade está contemplada no art. 286º da Constituição e no art. 10º do ETAF, não podendo, por isso, ela ser restringida por lei ordinária, em razão, v.g., do seu quantitativo.
9. A norma constante do art. 62º do CCJ contém uma restrição à recorribilidade dos actos administrativos de índole tributária que o art. 286º da Constituição e o art. 10º do ETAF não consentem.
10. Tal norma é, portanto, inconstitucional, pois que viola um princípio fundamental do direito constitucional que é o Estado de direito democrático.
11. A decisão proferida pelo Exmo. Senhor Juiz-Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto, ao julgar irrecorrível, com base no disposto no art. 62º do CCJ, a decisão de Mmo. Juiz de 1ª Instância que desatendeu a reclamação deduzida pela ora Recorrente contra a conta elaborada pelo Tribunal Cível da Comarca do Porto, é ela mesma inconstitucional, à luz do disposto no art. 280º, nº 1, b) da Constituição.
12. Como tal, deverá ser revogada por este Tribunal Constitucional e substituída por outra que admita o recurso nos termos requeridos”.
Em contra-alegações, concluiu, por seu turno, o Exmº. Magistrado do Ministério Público:
1º
“A decisão judicial proferida em matéria de custas, nos termos do Código de Processo Civil e do Código das Custas Judiciais, configura-se com um acto jurisdicional, que complementa ou integra a própria sentença proferida , e não como acto administrativo, em relação ao qual seja lícito invocar o direito ao recurso contencioso, previsto no artigo 286º da Constituição da República Portuguesa.
2º
Não pode considerar-se ínsito no direito de acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da República, um irrestrito “direito ao recurso” contra quaisquer decisões desfavoráveis à parte, proferidas em processo civil, podendo o legislador ordinário, nomeadamente, condicionar tal recurso através da ponderação dos valores económicos em litígio, com a alçada do tribunal que proferiu a decisão.
3º
Não constitui limitação excessiva ou desproporcionada do “direito ao recurso” o estabelecimento, no artigo 62º do Código das Custas Judiciais, de regra que condiciona a impugnabilidade da decisão proferida em matéria de custas ao montante das custas em que a parte foi condenada, isto é, à sucumbência relativamente à parcela da decisão jurisdicional que fixa as custas devidas, em vez de atentar no valor da causa.
4º
Termos em que deverá improceder o presente recurso”.
Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre decidir.
2 – A questão de constitucionalidade que a recorrente sujeita à apreciação deste Tribunal poderá definir-se nos seguintes termos:
O artigo 62º do C.C.J., enquanto limita a recorribilidade da decisão do incidente de reclamação da conta de custas ao facto de o montante destas exceder a alçada do Tribunal, viola o disposto nos artigos 268 (por lapso manifesto a recorrente indica o artigo 286º) da C.R.P. e 10º do Estatuto dos tribunais Administrativos e Fiscais?
A tese da recorrente, que dá resposta afirmativa a questão, desenvolve-se assim:
a) A taxa de justiça, que integra, com os encargos, as custas judiciais, é uma prestação de carácter tributário;
b) O artº 268º nº 4 da C.R.P. consagra o direito ao recurso contencioso dos actos administrativos (incluindo os tributários), com fundamento em ilegalidade;
c) Esse direito é qualificável como direito fundamental fora do catálogo, a ele se aplicando o regime geral dos direitos fundamentais definido na C.R.P.;
d) Não pode, assim, a lei ordinária limitar a recorribilidade da taxa de justiça, como não poderia fazê-lo para uma qualquer outra imposição de índole tributária (taxa de saneamento, p. ex.);
e) O artigo 10º da L.P.T.A. que estabelece a ausência de alçada nos tribunais administrativos e fiscais, decorre directa e necessariamente do disposto no artigo 268º da C.R.P. e deve qualificar-se como direito fundamental com assento constitucional;
f) Também por esta razão viola tal direito a norma ínsita no artigo 62º do C.C.J..
Suposta por mera hipótese de raciocínio, a consagração no artigo 10º do ETAF de um direito fundamental, sujeito ao regime constitucional dos “direitos, liberdades e garantias”, a primeira questão que suscitaria o presente recurso era o da sua própria admissibilidade.
Com efeito, interposto o recurso ao abrigo do artigo 70º, nº 1 al. b) da Lei nº
28/82, e ponderando o disposto nas alíneas c) a f) do mesmo artigo 70º, nº 1, controvertido seria que ele pudesse fundamentar-se na violação de uma lei ordinária, sendo certo ainda que nem ocorreu recusa de aplicação de lei ordinária, nem o ETAF parece poder qualificar-se como lei com valor reforçado
(isto admitindo a “conversão” do recurso para uma daquelas alíneas).
Mas, no caso, a controvérsia quedar-se-ia no âmbito das discussões académicas, já que o tribunal entende, como a seu tempo se desenvolverá que, a norma do artigo 10º do ETAF não consagra um qualquer “direito fundamental”.
É de aceitação generalizada a admissibilidade de direitos fundamentais com assento constitucional de natureza análoga dos consagrados no Título II da Parte I da C.R.P..
Discutida na doutrina o que definiria a natureza análoga aos direitos catalogados como fundamentais (cfr. a este propósito as posições díspares de Vieira de Andrade “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa”, pág.
211 e de Gomes Canotilho e Vital Moreira “Constituição da República Portuguesa, anotada”, 3ª ed. pp. 116 e segs. e 137) pacifico parece ser, porém, o entendimento de que o direito ao recurso contencioso de actos administrativos se integra nesse tipo de direitos.
Defende-o Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p.
457 e jurisprudência do T.C. tem-no reiteradamente aceite – cfr. Acórdãos nºs.
266/87, 373/91 e 151/95 in “Acórdãos do Tribunal Constitucional” 10º vol. p. 7,
20º vol. p. 111 e 30º vol. p. 795, respectivamente.
O controle jurisdicional da função administrativa é, com efeito, uma exigência do Estado de Direito, num regime democrático, pelo que o direito que a C.R.P. confere aos interessados de impugnar judicialmente actos administrativos que lesam os seus direitos ou interesses legalmente protegidos deve qualificar-se como direito fundamental de natureza análoga “aos direitos, liberdades e garantias” e, assim, sujeito ao respectivo regime, designadamente a sua directa aplicabilidade e imediata vinculação de entidades públicas e privadas (neste sentido cit. Acórdão nº 151/95).
Trata-se, aliás, da concretização, no âmbito do contencioso dos actos administrativos, do direito, consagrado no artigo 20º nº 1 da C.R.P., de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos.
E tal concretização impunha-se em especial face a estatuições autoritárias e unilaterais da administração que directamente afectem a esfera jurídica dos cidadãos, determinando a intervenção de órgãos de justiça, dotados de imparcialidade e independência – no caso, os tribunais administrativos (e fiscais) a quem constitucionalmente compete, o julgamento de recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212º, nº 3 da C.R.P.).
Se esta garantia visa a tutela dos direitos e interesses dos cidadãos face a actos que resultam do exercício da função administrativa, em regra da competência dos órgãos da Administração Pública, ela não deixa de abarcar a da sindicabilidade contenciosa dos actos que dimanam de outros órgãos que não integram a Administração Pública mas, pontualmente, podem exercer, em domínios específicos, aquela função.
Esta realidade não foi ignorada pelo legislador do ETAF que previu a recorribilidade de actos expressivamente qualificados de “actos em matéria administrativa”, fazendo relevar – e tendo em conta a tradicional concepção do
“acto administrativo” – a natureza desses actos, materialmente inseridos na função administrativa, da competência de órgãos que não integram a Administração Pública.
São, por exemplo, os casos previstos no artigo 26º, nº 1 alíneas b) c) e d) na versão original do ETAF, e c) do mesmo artigo 26º, nº 1 e artigo 40º alínea b), na redacção dada pelo artigo 1º do DL nº 229/96, de 29 de Novembro.
Não está, assim, excluído, antes e obviamente se aceita que, juizes, para além de presidentes de supremos tribunais, e quando investidos em funções também administrativas, especialmente em matéria de organização e funcionamento dos tribunais, pratiquem neste domínio actos materialmente administrativos (cfr. artigo 50º do ETAF, na redacção dada pelo citado artigo 1º do DL nº 229/96).
A garantia de impugnação contenciosa consignada no artigo 268º, nº 4 da C.R.P. não deixa de tutelar os direitos e interesses dos cidadãos lesados por esses actos, o que se traduzirá no direito de recorrer deles para um tribunal.
Ponto é que o juiz tenha agido, não como órgão de justiça, e no âmbito de uma qualquer decisão no exercício do poder jurisdicional, mas no exercício de funções materialmente administrativas.
Não é isso, porém, o que acontece no caso da decisão sobre custas como bem assinala o Exmo. Magistrado do Ministério Público nas suas contra-alegações.
Seja a taxa de justiça uma receita tributária (como “taxa” e não como “imposto” a tem qualificado a doutrina – cfr. Teixeira Ribeiro “Noção jurídica de taxa” in RLJ 117, p. 289, Cardoso da Costa “Curso de Direito Fiscal”, p. 12 e Brás Teixeira “Princípios de Direito Fiscal”, p. 46, com o acolhimento da jurisprudência do TC - (Acórdãos nºs 461/87 e 412/89 in DR, II Série, de 15/1/88 e 15/9/89, respectivamente, 67/90 in “Acórdãos do Tribunal Constitucional” 15º vol. p. 241), certo é que a decisão que julga a reclamação da conta é uma decisão judicial, proferida no exercício no poder jurisdicional, e em que o julgador age, como titular de um órgão de justiça com independência e imparcialidade.
Em tal medida, a questão da impugnabilidade dessa decisão deslocar-se-á, “sub specie constitutionis”, para o campo do direito ao recurso jurisdicional ou de acesso, pelo menos, a dois graus de jurisdição.
Disso bem se apercebe a recorrente quando convoca em apoio da sua tese a norma constante do artigo 10º do ETAF que prescreve a ausência de alçada nos tribunais administrativos e fiscais.
Desta norma pretende a recorrente extrair um direito fundamental que vinculadamente decorreria do artigo 268º, nº 4 da C.R.P..
Ora, admitindo, por hipótese de raciocínio, que de uma norma que expressamente se limita a dispor sobre a ausência de alçadas se possa extrair a consagração de um direito, não se vê que, para além da garantia, que aquele último preceito constitucional confere, de acesso a um tribunal para impugnação de actos administrativos lesivos, implicitamente se outorgue aquela outra de acesso a sucessivos graus de jurisdição, nos tribunais administrativos e fiscais.
De resto e já em termos gerais, na interpretação do disposto no artigo 20º, nº
1 da C.R.P., o Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que a Constituição não consagra um direito geral de recurso das decisões judiciais, afora aquelas de natureza criminal condenatória e, aqui, por força do artigo
32º, nº 1 da Lei Fundamental (cfr., por todos, Acórdão nº 673/95 in DR, II Série, de 20/3/96); e no mesmo sentido aponta a maioria da doutrina (cfr. Ribeiro Mendes “Direito Processual Civil” AAFDL, vol. III pp. 124 e 125 e Vieira de Andrade “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976” pp.
332 e 333).
Por outro lado, admitida que é pelo artigo 16, nº 1 da C.R.P. a consagração de direitos fundamentais fora do texto constitucional, sempre se colocaria o complexo problema de saber quais as características que devem revestir os direitos estabelecidos em lei ordinária para serem erigidos à dignidade de direitos fundamentais.
A este propósito já o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 266/87 in
“Acórdãos do Tribunal Constitucional” 10º vol., pp. 7 e segs., adoptou um critério, que agora se reitera, nos seguintes termos:
“A subordinação de direitos de mera origem legal ao regime dos direitos, liberdades e garantias só se justifica quando se esteja perante um direito já tão radicado na consciência jurídica colectiva, como direito “fundamental” do ordenamento, que dele se possa dizer que verdadeiramente passou a integrar o
“bloco de constitucionalidade”.”
Ora, no caso, existiram alçadas nos tribunais fiscais até à entrada em vigor do ETAF, em 1 de Janeiro de 1985, por força do disposto no artigo 255º do DL nº
45005, de 27 de Abril de 1963, que só foi revogado pelo citado artigo 10º. Consagrado o direito ao recurso contencioso na Constituição de 1933 (artigo
8º, nº 21) e na versão original da Constituição de 76 (artigo 269ª, nº 2), só, pois, há pouco mais de uma década, os tribunais fiscais deixaram de ter alçada, sendo certo, pelo que se conhece de trabalhos preparatórios da anunciada reforma do contencioso administrativo, que se perfilam alguns propósitos de restabelecimento, em certa medida, das alçadas naqueles tribunais.
No contexto de uma Constituição que, em geral, não assegura o duplo grau de jurisdição, não pode, assim, depreender-se desta relativa novidade da ausência de alçadas nos tribunais fiscais, o “enraizamento” na consciência jurídica colectiva de um direito – que seria, aliás, ilimitado - do acesso sucessivo aos vários graus de jurisdição do contencioso tributário, em termos de ele se poder qualificar como direito fundamental.
Também, por esta via não enferma o artigo 62º do CCJ de inconstitucionalidade.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 9 de Março de 1999 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa