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Proc. nº 231/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A, no processo de divórcio litigioso intentado por seu marido, interpôs recurso de agravo para o Tribunal da Relação do Porto do despacho de 21.06.93, proferido pelo Juiz Presidente do Tribunal de Círculo de Chaves durante a audiência de discussão e julgamento, que lhe indeferiu o requerimento de suspensão da instância, nos termos do artigo 276º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por àquela data se não encontrar ainda junta aos autos a carta rogatória expedida para inquirição em França das testemunhas por si indicadas.
A Relação manteve o despacho recorrido, pelo que, inconformada, a Ré recorreu de revista para o Supremo Tribunal de Justiça. Aí, por acórdão de 28 de Março de 1995, foi dado provimento ao recurso, tendo o STJ desaplicado as normas constantes dos artigos 181º, nº 3, e 647º, nº
1, do Código de Processo Civil, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do artigo 13º, nº 1, da Constituição.
Aquele aresto alicerçou assim a sua decisão:
É certo que, no nº 1 do artigo 647º, estabelece-se que, expirado o prazo marcado nas cartas, o juiz deverá designar dia para o julgamento, o que, aliás, está em consonância com a segunda parte do artigo 183º, pois dispõe que a discussão e julgamento da causa não podem ter lugar senão depois de apresentada a carta, ou depois de findo o prazo do seu cumprimento.
Tal regime constitui, no entanto, um tratamento desigual e injustificado da parte cuja prova, total ou parcialmente, deva ser produzida por carta precatória ou rogatória, em relação aquela em que a prova que ofereceu se realize no tribunal onde corra a acção.
Com efeito, e no que concerne à prova testemunhal, que é o que está agora em causa, ao possibilitar-se que a discussão e julgamento da causa se efectue, sem que esteja junta, uma carta que tenha sido expedida para inquirição das testemunhas, retirar-se-á à parte que as tenha arrolado o direito, concedido pelas alíneas a) a e) do artigo 629º, de substituir as que tenham falecido, as que tenham mudado de residência, depois de oferecidas, as que não tenham sido notificadas devendo tê-lo sido, ou deixado de comparecer por outro impedimento legítimo e não seja possível inquiri-las dentro de 30 dias e as que tenham faltado sem motivo justificado, e não tenham sido encontradas.
Além disso, se quando falte à audiência uma pessoa que tenha sido convocada e de que não se prescinda, é permitido, pela alínea a) do nº 1 do artigo 651º, o adiamento da audiência, não se compreende que esta possa realizar-se sem que estejam juntas cartas que tenham sido expedidas para inquirição de testemunhas, ou outras diligências probatórias.
Assim, e dado o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, imposto pelo nº 1 do artigo 13º da Constituição da República, o qual comporta não só a igualdade jurídico-material que obriga as autoridades que aplicam a Lei a proceder do mesmo modo, mas também a igualdade jurídico-formal que obriga o legislador a regular de forma igual o que é essencialmente igual - vide Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa anotada, edição de 1980, a pag. 68 - não pode deixar de concluir-se que o disposto nos segmentos dos artigos 183º e 647º nº 1 a que se fez referência, é inconstitucional, na medida em que permite a realização da audiência de discussão e julgamento sem que estejam juntas cartas que tenham sido expedidas para produção de prova, nomeadamente para inquirição de testemunhas.
2. Desta decisão, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório, nos termos do artigo 70º, nº 1, al. a) da Lei nº
28/82, para o Tribunal Constitucional , tendo concluído as suas alegações pedindo a confirmação do juízo de inconstitucionalidade do regime que resulta da conjugação das normas constantes dos artigos 181º, nº 3, e 647º, nº 1, do Código de Processo Civil, enquanto condiciona a prorrogação judicial do prazo para cumprimento da carta expedida para produção de prova à existência de comunicação oficial de que a mesma não pode ser cumprida no prazo inicialmente fixado, apresentada antes de esta findar, e enquanto impõe ao juiz a designação de data para realização do julgamento logo que tal prazo se mostre excedido, ainda que ao requerente não seja imputável a demora no cumprimento, por tal restrição ser excessiva e desproporcionada, importando violação do direito constitucional de acesso aos tribunais, e ainda por ofender o princípio da igualdade.
3. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. Os preceitos normativos em causa, ambos do Código de Processo Civil, como se referiu, dispõem pela forma seguinte:
Artigo 181º
1. [...]
2. [...]
3. Quando, antes de findar o prazo designado se mostre, por certidão ou comunicação oficial, que a carta não pode ser cumprida dentro dele, conceder-se-á prorrogação. O termo do prazo não obsta a que a carta seja tomada em consideração, se ainda não houver decisão sobre a matéria de facto.
4. [...]
5. [...]
Artigo 647º
1. Efectuadas as diligências de produção de prova que não possam deixar de ter lugar antes da audiência final ou expirado o prazo marcado nas cartas, o juiz designará dia para essa audiência.
Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, na decisão recorrida, e entende o Ministério Público, que o regime resultante destas disposições constitui restrição injustificada ao exercício do direito de produção de prova pela parte que requeira tal produção por meio de carta rogatória ou precatória, e constitui um tratamento desigual, e injustificadamente desigual, dessa parte.
É que, na verdade, no âmbito da produção de prova testemunhal, adopta a legislação processual - segundo um certo entendimento jurisprudencial - dois regimes completamente diferentes, consoante essa prova se deva produzir em sede de audiência de julgamento ou mediante a expedição de carta precatória ou rogatória. Assim, enquanto no primeiro caso se permite substituir testemunhas que tenham falecido ou estejam doentes, que não tenham sido notificadas, devendo tê-lo sido, ou que não seja possível ouvir no prazo de trinta dias, bem como as que tenham mudado de residência, ou, ainda, que não possam comparecer por outro motivo legítimo (artigo 629º do Código de Processo Civil), e se permite, igualmente, o adiamento da audiência quando não esteja presente testemunha de cuja inquirição se não prescinda (artigo 651º, nº
1, al. a), do mesmo código), já no segundo caso, para além de se não prever qualquer destas possibilidades, se prevê ainda que se realize a audiência de discussão e julgamento sem que esteja junta aos autos a carta expedida para inquirição de testemunhas, o que, eventualmente, pode retirar à parte que a tenha requerido qualquer possibilidade de efectuar a sua prova.
Constituirá tal regime uma ofensa ao princípio da igualdade ou uma restrição ilegítima ao direito constitucional de acesso aos tribunais, consignados nos artigos 13º, nº 1, e 20º da Constituição?
5. Corolários necessários do princípio da igualdade, quando conjugado com o direito fundamental de acesso aos tribunais, são os princípios do contraditório e da igualdade de armas, os quais assumem, no direito processual civil, particular relevância, se não mesmo a sua máxima expressão e sentido.
Na verdade, só com a plena consagração desses princípios processuais - que se não bastam com um conteúdo meramente formal, mas antes reclamam a verdadeira possibilidade de as partes disporem, em completa paridade, dos mesmos meios processuais, designadamente de produção de prova, gozando assim de iguais possibilidades de reconhecimento das respectivas pretensões - se pode alcançar e realizar de forma efectiva quer o direito de acesso aos tribunais, quer uma verdadeira igualdade entre as partes.
Ainda que não expressamente consignados no texto constitucional, estes princípios são pacificamente entendidos como eminentemente constitucionais, não só porque decorrem do conteúdo do direito de acesso aos tribunais e do princípio da igualdade aplicado à jurisdição, como ainda porque, no fundo, são corolário do próprio princípio do Estado de direito democrático.
Necessariamente, assim, verificando-se violação dos princípios da igualdade de armas ou do contraditório, estaremos perante uma inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade e do direito de acesso aos tribunais, ou direito à tutela judicial efectiva, expressão do princípio do Estado de direito democrático.
6. No caso concreto, está-se, indubitavelmente, perante dois regimes diversos e desiguais, não se tratando de uma mera desigualdade formal, mas sim de conteúdo: ambos os regimes regulam a produção de prova testemunhal, sendo um dirigido a esta produção em audiência de julgamento, e outro à sua produção por meio de carta expedida a outra autoridade, tão-só porque não seria possível, ou representaria um sacrifício insuportável para a parte, providenciar a deslocação das testemunhas até ao local da situação do tribunal - como no caso de residirem no estrangeiro, ou mesmo nas regiões autónomas.
Ora, não aparece como justificada a consagração de regimes diferentes - no aspecto que aqui nos interessa - para o mesmo tipo de prova, consoante as partes possam fazer inquirir as suas testemunhas perante o tribunal da causa, ou tenham que requerer a sua inquirição por meio de carta (nomeadamente, porque seria de todo irrazoável exigir a deslocação de testemunhas de um país estrangeiro ou até mesmo de regiõess afastadas, dentro do país), e apenas por tal motivo; e, muito menos, quando de tal diferença de regimes possa resultar, em certas situações, como aconteceu in casu, a privação por uma das partes da produção da única prova que poderia apresentar.
7. Apenas o princípio da celeridade processual, como corolário do direito a uma justiça pronta, poderia justificar a adopção de tal regime, ou seja, da realização da audiência de discussão e julgamento sem que esteja junta aos autos a carta requerida, e desde que se mostre decorrido ou ultrapassado o prazo determinado para o seu cumprimento.
Ora, facilmente se reconhece que este princípio se não pode sobrepor ou dispor de maior grandeza do que os princípios da verdade material - e da igualdade processual ou igualdade de armas, que indiscutivelmente o servem. Mal estaríamos se se sacrificasse assim a descoberta da verdade - que só se pode almejar através de uma verdadeira igualdade no acesso à justiça e aos meios de prova - a princípios meramente formais (o que não é, aliás, o caso da celeridade processual) ou de segunda grandeza.
8. Note-se, ainda, que as demoras no cumprimento de tais cartas raramente, ou mesmo nunca, serão imputáveis à própria parte.
Essas demoras, com efeito, são geralmente atinentes ao próprio funcionamento do tribunal rogado ou deprecado, ou ainda a vicissitudes dos correios ou dos serviços diplomáticos.
Ora, também mal se compreenderá que, fixando o juiz da causa um prazo para o cumprimento da carta, e não sendo esta cumprida dentro do mesmo por razões de ordem meramente burocrática, seja a parte que a requereu penalizada, apenas por a entidade rogada ou deprecada a não cumprir atempadamente (quiçá, por não ter possibilidades ou meios para o efeito). E penalizada em termos de não ter possibilidades de produzir qualquer prova, ou de apenas poder produzir parte dela, caso se realize a audiência de julgamento, em cumprimento do disposto no artigo 647º, nº 1, do Código de Processo Civil.
E se é certo que o nº 3 do artigo 181º do mesmo diploma legal permite a prorrogação do prazo, só o permite, contudo, nos estritos termos de, quando 'antes de findar o prazo designado se mostre, por certidão ou comunicação oficial, que a carta não pode ser cumprida dentro dele', disposição esta manifestamente insuficiente e totalmente fora do controlo ou disposição da parte, ou mesmo do próprio julgador, que, afinal, não dispõe de qualquer iniciativa para apurar do destino ou andamento do procedimento requerido.
9. Como já foi amplamente referido por este Tribunal, o princípio da igualdade obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não se impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação, a arbitrariedade, a irrazoabilidade, ou seja, aquele princípio proíbe as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Como emanação desta igualdade, decorre que as partes em processo cível devem encontrar-se em perfeita igualdade de condições, ou seja, perante idênticas condições e possibilidades de obtenção da justiça. Quer isto dizer que a igualdade dos cidadãos importa, no âmbito jurisdicional, quer a igualdade de acesso aos tribunais, quer também a igualdade perante os tribunais, o que é dizer-se, no decorrer do processo - igualdade de armas ou igualdade processual.
Deve, pois, o processo civil garantir às partes iguais probabilidades de êxito, não privilegiando uma em detrimento da outra e não criando diferenciações injustificadas de tratamento.
Ora, a apontada diferenciação de regimes, ainda que a justificar-se em nome de uma eventual celeridade processual, sempre teria que ceder o passo à igualdade das partes, como emanação do princípio constitucional da igualdade e do direito à tutela judicial efectiva, indispensáveis à realização da verdade material.
Não sendo isso o que acontece, forçoso é concluir pela sua inconstitucionalidade. Aliás, a injustiça decorrente das normas em causa foi já reconhecida pelo próprio legislador, que, nas recentes alterações ao Código de Processo Civil - ainda não vigentes - aprovadas pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, remodelou o nº 3 do artigo 181º e eliminou o actual nº 1 do artigo 647º.
III - DECISÃO
9. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais - por violação do artigo 20º, nº 1, combinado com o artigo 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa - as normas que resultam da conjugação dos artigos 181º, nº 3, e 647º, nº 1, do Código de Processo Civil, enquanto condicionam a prorrogação judicial do prazo para cumprimento da carta expedida para produção de prova à existência de comunicação oficial de que a mesma não pode ser cumprida no prazo inicialmente fixado, apresentada antes de esta findar, e impõem ao juiz a designação de data para realização do julgamento logo que tal prazo se mostre excedido, ainda que ao requerente não seja imputável a demora no cumprimento;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 20 de Março de 1996 Luis Nunes de Almeida Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa