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Procº nº 429/97
1ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
(Consº MOTA PINTO) I
1. Nos presentes autos, vindos do 4º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa e nos quais figuram, como recorrente, o Ministério Público e, como recorrida, A..., S.A., proferiu este Tribunal, por intermédio da sua 1ª Secção e em 15 de Dezembro de 1998, o Acórdão nº 696/98, no qual se negou provimento ao recurso interposto por aquela entidade, e isto após se ter julgado
'inconstitucional a norma do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro
... por violação do princípio da igualdade, na medida em que não permite o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão da questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária'.
Desse Acórdão e ao abrigo do artº 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interpôs o Representante do Ministério Público em funções neste Tribunal recurso para o plenário, já que - disse - a decisão nele ínsita estava
'em colisão com o entendimento recentemente adoptado pela 2ª Secção, no acórdão nº 638/98'.
2. Admitido o recurso, produziu alegação unicamente aquele Representante, que concluiu do seguinte jeito:-
'1º
O conflito jurisprudencial, decorrente da prolação dos acórdãos nºs
124/98 e 638/98, deverá ser solucionado com a prevalência da orientação adoptada no primeiro daqueles arestos, o que conduz à inconstitucionalidade da norma do §
único do artigo 15º do Decreto nº 37021, na redacção do Decreto Regulamentar nº
1/86, na parte em que exclui absolutamente o direito ao recurso, independentemente do valor da causa e da natureza (de conteúdo puramente jurídico) da controvérsia entre as partes.
2º
Termos em que deverá confirmar-se o douto acórdão proferido nos presentes autos.'
Apresentado memorando pelo primitivo Relator, não logrou o mesmo vencimento, razão pela qual se operou mudança no relato.
Porque nada obsta ao conhecimento do vertente recurso, cumpre tomar decisão.
II
1. No Acórdão ora sob censura (o Acórdão nº 696/98), foi a norma em apreço, como se viu, julgada inconstitucional, por violação do artigo 13º da Lei Fundamental, 'na medida em que não permite o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão da questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária'. Porém, no Acórdão nº 638/98, tirado pela 2ª Secção em 4 de Novembro de 1998 no Procº nº 860/96, tal norma não foi alvo de qualquer juízo de desconformidade com o Diploma Básico.
Desenha-se, desta arte, uma situação de ocorrência de decisões divergentes quanto à questão de inconstitucionalidade tocantemente a um mesmo normativo.
1.1. No primeiro daqueles arestos, remetendo-se, em parte, para a corte argumentativa que se continha no Acórdão nº 124/98 (que se encontra publicado na 2ª Série do Diário da República de 30 de Abril de 1998), disse-se, no que ora releva, para fundamentar o juízo de incompatibilidade com a Constituição da norma sub iudicio que nele foi levado a efeito:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ Escreveu-se neste Acórdão n.º 124/98, para fundamentar tal juízo da inconstitucionalidade:
‘Ora, no caso sub judicio – e diferentemente do que ocorreu no caso sobre o qual foi tirado o citado acórdão n.º 270/95 – verificam-se duas circunstâncias especialmente atendíveis:
- por um lado, está suscitada uma questão de natureza jurídica que excede a mera reapreciação de uma decisão resultante de um juízo de discricionariedade técnica da comissão de avaliação sobre o valor de mercado da renda para certa fracção destinada ao exercício de profissão liberal;
- por outro lado, o valor da anuidade da renda fixada (é este o valor normal a que se atende nas acções de despejo – cfr. art. 307º, n.º 1, do Código de Processo Civil) excede a alçada dos Tribunais da Relação. Por força da conjugação destas duas circunstâncias, entende-se que viola o princípio da igualdade a solução constante da norma desaplicada, por força da qual não poderá haver recurso, em caso algum, de decisão proferida pela primeira instância, independentemente do valor do processo, quando esteja em causa a própria legalidade da realização da avaliação. De facto, estando em causa uma pura questão de direito (litigiosa) entre as partes, poderia a mesma ser objecto de uma acção de simples apreciação (art. 4º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil), em que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição dependia exclusivamente do valor da causa (art. 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Ora, in casu, tendo sido suscitada a questão de saber se é legal a própria avaliação extraordinária – num recurso em acção cujo valor ultrapassa a alçada da Relação – a circunstância de estar sempre vedado o acesso aos tribunais da Relação e, eventualmente, ao Supremo Tribunal de Justiça constitui uma discriminação infundada das partes do recurso. Como se escreveu no acórdão n.º 68/85 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
5º vol., págs. 541 e segs.) e se se repetiu no acórdão n.º 359/86 (in Acórdãos,
8º vol., págs. 605 e seguintes):
«[...] se se concebe que nem todas as decisões tenham de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ‘o que a lei já não poderá fazer é admitir o recurso em toda uma categoria de casos e depois excluí-lo apenas em relação a um sector dessa categoria, sem que nenhuma justificação objectiva se verifique para tal discriminação’.» Há, assim, que concluir que a mera utilização de um certo processo especial – pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo de discricionariedade técnica atinente à actualização de rendas prevista na lei
– não constitui justificação objectiva para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para a apreciação de questão de saber se, in casu, podia haver avaliação extraordinária
......................................................................................................................................................................................................................................................'
E, após se dar notícia do julgamento efectuado no Acórdão nº 638/98,
à guisa de rebate da argumentação nele utilizada, discreteou-se assim:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ Todavia, como se afirma na declaração de voto aposta ao citado Acórdão, ainda que se concedesse que, vendo melhor as coisas, seja questionável a possibilidade de, em hipóteses como a dos autos, lançar mão, em alternativa, de uma acção de simples apreciação, só cabendo no caso o processo especial do Decreto-Lei n.º
37021 (na redacção do Decreto Regulamentar n.º 1/86), sempre restaria que, então, seria este processo que ficaria aberto à discussão e decisão de uma
‘comum’ questão de direito – ou seja, de uma questão não atinente ao mérito da avaliação da renda (para a qual aquele processo foi seguramente pensado e configurado, pelo menos em primeira linha), mas à própria admissibilidade legal da avaliação. E, perante a identidade de natureza (puramente jurídica) da questão controvertida - relativamente ao objecto de outros processos, com valor idêntico ao do caso dos autos e que admitem reapreciação em via de recurso -, não se afigura ao Tribunal que a simples previsão de uma forma especial de processo possa fornecer a justificação para o estabelecimento da impossibilidade de recurso da decisão judicial, nesse processo especial. Isto, porque a questão
é, justamente, a de saber se a mera utilização de um processo especial - pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo técnico atinente à actualização de rendas prevista na lei – constitui, só por si, justificação objectiva bastante, à luz do princípio da igualdade, para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para reapreciação de questão, jurídica, de saber se, no caso, podia haver avaliação extraordinária. O Tribunal entende que se deve responder negativamente a esta questão, não se divisando na mera remissão para a previsão legal de um processo especial fundamento material bastante para a diferenciação em causa.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
1.2.. No Acórdão nº 638/98, no que, para o vertente aresto, interessa, foi apelada a fundamentação que, por comodidade, se transcreve:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
A primeira questão a resolver é, então, a de determinar se a Constituição consagra, e em que extensão, tal princípio do duplo grau de jurisdição; só em caso afirmativo é que haverá, então, que apurar se a norma constante do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, tal como aplicada na decisão recorrida, importa ou não violação do mesmo.
7. O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista
(designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo
32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º.
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, pág.
505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa,
1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos» (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol.
17, pág. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados Acórdãos nº 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos nº
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), nº 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e nº 450/89, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.
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9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre, necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do processo penal).
Definido assim o conteúdo do princípio do duplo grau de jurisdição, e não revertendo a matéria em causa ao âmbito do processo penal, não se vê que a norma do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, ao determinar a irrecorribilidade da decisão final do recurso interposto para o tribunal da 1ª instância da decisão da comissão fiscal de avaliação, em matéria de avaliação de rendas, viole de qualquer forma aquela garantia do acesso aos tribunais.
Tanto mais que o recorrente tinha ao seu dipor a via de recurso judicial - logo, de acesso a uma instância judicial -, ou seja, de controle por uma entidade judicial da decisão da comissão fiscal, e que utilizou. Aqui, o tribunal funciona, na verdade, já como uma via de recurso, de reapreciação da decisão da comissão de avaliação, caso as partes não se conformem com a mesma.
E tanto basta para que se encontre satisfeita aquela imposição constitucional.
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E, ao discorrer sobre a perspectiva de quem defende que em matéria de direitos, liberdades e garantias, sempre se imporia o asseguramento de um duplo grau de jurisdição, disse-se nesse mesmo aresto:-
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É bem verdade que ao direito de propriedade se há-de reconhecer, numa certa dimensão, uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que lhe há-de ser aplicável, nos termos do artigo 17º da CRP, o regime para aqueles previsto, apesar de se não encontrar enunciado no título II da Parte I.
Só que essa dimensão, a merecer tratamento idêntico ao que está definido para os direitos, liberdades e garantias, é a que corresponde ao direito de ninguém ser privado da sua propriedade, designadamente garantindo-se que a expropriação só poderá ocorrer com base na lei e mediante o pagamento de uma justa indemnização (nº 2 do artigo 62º).
Ora, desde logo, a matéria em causa, a que se reporta a norma questionada, refere-se a um aspecto particular, o da alteração do valor das rendas, insusceptível de afectar esse núcleo essencial do direito de propriedade.
A este propósito, afirmou-se no citado Acórdão nº 270/95:
Está em causa um processo de tipo particular, basicamente de natureza administrativa (processo de avaliação fiscal extraordinária), envolvendo matéria de natureza essencialmente técnica (avaliação de prédios urbanos para efeitos fiscais e de definição do valor da renda dos arrendamentos não habitacionais), que ocorre nas reparti-ções de finanças (cf. artigos 5º e 10º do Decreto nº
37021) e que culmina com uma decisão do chefe da repartição de finanças ou do presidente da comissão de avaliação ou com uma deliberação dessa comissão (cf. artigo 14º do Decreto nº 37021). Só em fase posterior (e eventual) vem a ter lugar uma intervenção judicial, no caso de qualquer dos interessados não se conformar com a decisão daquela entidade, e mediante a interposição de um
«recurso» para o tribunal da comarca (cf. artigos 14º e 15º do Decreto nº
37021). Ou seja, o tribunal de 1ª instância funciona já como uma instância de recurso. O que sugere que o legislador, devido ao carácter técnico dos critérios das avaliações vinculativos para a entidade administrativa a quem compete a decisão, ao instituir a possibilidade de recurso para um tribunal judicial, pretendeu assegurar uma garantia de defesa de direitos idêntica materialmente à garantia de um «duplo grau de jurisdição» relativamente a matérias em que a primeira decisão é estritamente jurídica.
Deste modo, surge como inadequada e excessiva a exigência de um segundo recurso para uma outra instância judicial. Diga-se ainda que não se vislumbram situações legais de tratamento processual diferente relativamente a interesses idênticos aos que estão envolvidos nos processos de avaliação fiscal extraordinária.
É esse raciocínio que, em geral, aqui se prossegue. Nem está verdadeiramente em causa o direito de propriedade, na dimensão em que é análogo aos direitos, liberdades e garantias, nem a Lei Fundamental impõe, nessa matéria, a exigência de um duplo grau de jurisdição.
Não se verifica, assim, qualquer violação do direito de acesso aos tribunais, na vertente do duplo grau de jurisdição.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Equacionou-se, por último, no Acórdão cujas amplas transcrições se têm vindo de fazer, uma «contra-argumentação» relativa às razões que levaram a que no Acórdão nº 124/98 (e que são acolhidas no Acórdão ora impugnado) se concluísse por um juízo de inconstitucionalidade, para o que se invocou:-
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12. Contudo, desde logo, afigura-se altamente duvidoso o argumento extraído da comparação, em matéria de graus de jurisdição, com o que aconteceria se, no caso vertente, tivesse sido intentada acção de simples apreciação. Com efeito, a possibilidade de se intentar um tal tipo de acção, no caso dos autos,
é mais que questionável, por não ser facilmente descortinável a existência de interesse em agir nessa mesma acção (cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lex, Lisboa, 1995, pág. 115).
Mas, para além disso, a verdade é que o caso em apreço é distinto daquele que foi objecto do Acórdão nº 68/85. Neste citado aresto, o Tribunal foi confrontado com um diverso regime de recursos de decisões de idêntica natureza - as atinentes a questões de legalidade dos estatutos das associações -, sendo certo que só se vedava o recurso para o STJ quando a questão respeitasse a estatutos de associações sindicais (e não já quando respeitasse aos estatutos de quaisquer outras associações, designadamente associações patronais). No presente caso, pelo contrário, estabelece-se uma regra especial para os recursos de decisões proferidas num processo também ele especial, sem que se proceda a qualquer discriminação em função de qualidades particulares dos eventuais recorrentes ou recorridos.
Ora, não tendo valor constitucional a regra geral segundo a qual o acesso aos sucessivos graus de jurisdição depende do valor da causa, só se poderia concluir pela inconstitucionalidade da norma impugnada se a diferenciação nela estabelecida se mostrasse arbitrária e desprovida de qualquer fundamento material bastante.
Não é, porém, isso o que acontece. Na verdade, é a própria natureza especial do processo em causa que justifica o estabelecimento de uma regra igualmente especial em matéria de recursos.
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2. Entende o Tribunal que deve ser mantida a decisão constante do Acórdão nº 638/98, visto que se mostram pertinentes as razões que para tanto se carrearam.
E, em abono deste entendimento, não se mostrará dispicienda a citação do passo do discurso empregue na declaração de voto aposta pelo Consº Artur Maurício ao Acórdão ora em crise, na qual se pode ler:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Aquela margem de discricionariedade [a ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos que deve ser reconhecida ao legislador ordinário em processo civil] tem, porém, como limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade (artigo 13º da CRP).
A consideração deste limite há-de fazer-se com uma cuidada ponderação dos interesses em jogo – nem sempre de primeira evidência – sem o que a regra da livre conformação do legislador ordinário se pode converter em excepção.
A tese que fez vencimento no presente acórdão, aferindo a constitucionalidade da norma do artigo 15º § único do Dec. nº 37021, na redacção do Dec. Regulamentar nº 1/86, com o princípio da igualdade, ultrapassa, a meu ver, a fronteira em que deverá conter-se a análise comparativa dos regimes dos recursos.
Na verdade, justificada a solução de um só grau de jurisdição atendendo à finalidade típica do processo de avaliação fiscal extraordinária de rendas ‘isola-se’, uma questão de direito nele discutida, para se concluir que, podendo haver recurso de acordo com o valor da causa, da decisão que a resolvesse, não há fundamento material bastante para que o legislador a não preveja naquele processo especial.
Ora, sem embargo de, com determinados fundamentos, concretamente especificados na lei de processo civil, a admissibilidade do recurso se desprender do valor da causa e das alçadas dos tribunais (nºs 5 e 6 do artigo
678º do CPC), entendo que, em regra, a limitação dos recursos feita pelo legislador ordinário deve ser analisada em função da finalidade típica do processo em causa. É em função dessa finalidade que o legislador, ponderando a natureza e importância dos interesses envolvidos e a necessidade de preservar a própria operacionalidade da organização judiciária, estabeleceu, no uso da liberdade que se lhe reconhece, o regime dos recursos e, concretamente, se é admissível um duplo ou até triplo grau de jurisdição. A resolução de todas as outras questões – prévias, incidentais ou acessórias – está, em princípio, subordinada ao regime de recorribilidade da que corresponde
à finalidade típica do recurso.
Ora, se, no caso, se poderia justificar, ponderados aqueles referidos factores, a irrecorribilidade do julgado que decidisse o valor da renda em função da avaliação, justificada está, igualmente, a irrecorribilidade da decisão com o fundamento invocado.
Por outro lado, entendo que a questão não deve ser resolvida sem ter em conta outros tipos de processos em que o interessado possa ver reconhecido o mesmo direito, ou seja, no caso, o de não ser actualizada extraordinariamente a renda que paga.
Na verdade, se houver outro tipo de processo – e, no caso, parece viável, uma acção declarativa de simples apreciação – em que o interessado possa impugnar as decisões que vierem a ser proferidas sobre o seu pedido, de acordo com o valor da causa, essa não será razão para concluir que, no processo especial de avaliação, tal direito de impugnação lhe seja, também, conferido.
Não exigindo a Constituição que o legislador ordinário estruture o processo civil de molde a oferecer aos interessados uma multiplicidade de meios processuais para a mesma tutela que o direito invocado requer, a existência daquele outro tipo de processo é, até, uma razão acrescida para que se não julgue inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma em causa'.
Efectivamente, se é figurável que o interessado possa lançar mão de um meio processual (e de cuja proferenda decisão, de harmonia com as normas processuais gerais regentes da admissibilidade do recurso, é permitida a impugnação), por intermédio do qual pode obter o reconhecimento de que a avaliação extraordinária, no caso, não é devida, então não se mostra desrazoável ou arbitrário que, perante uma situação em que, a ser deduzida essa pretensão no processo especial disciplinado no Decreto nº 37021 - que, atentas as sua natureza e finalidade típicas, deve ser célere e visa especialmente a obtenção de uma decisão jurisdicional por via de um recurso interposto de uma decisão tomada por uma comissão de avaliação e segundo critérios de natureza essencialmente técnica - se vede o recurso da decisão tomada quanto a essa particular pretensão.
Não se lobriga, deste modo, que a norma sub specie, ao consagrar uma diferenciação de tratamento quanto à admissibilidade de recurso, tenha adoptado uma solução jurídica desprovida de fundamento material bastante para que aquela diferenciação a possa inquinar de uma desigualdade repreensível do ponto de vista constitucional.
3. Em face do exposto, o Tribunal - não julgando inconstitucional a norma constante do § único do artigo 15º do Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, na redacção do Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, na parte em que não permite o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão da questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária - concede provimento ao recurso e, em consequência, determina a revogação do despacho proferido em 17 de Abril de 1997 pelo Juiz do 4º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, a fim de o mesmo ser reformado em consonância com o ora decidido quanto à questão de constitucionalidade. Lisboa, 6 de Abril de 1999 Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto ( vencido, nos termos e com os fundamentos do Acórdão nº
696/98, recorrido) Maria Helena Brito (vencida, nos termos e com os fundamentos do acórdão recorrido nº 696/98). Vítor Nunes de Almeida (vencido pelos fundamentos do acórdão recorrido nº
696/98). Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos e pelos fundamentos constantes do acórdão nº 696/98) Maria Fernanda Palma (vencida pelas razões que, no essencial, justificaram a minha assinatura do Acórdão nº 696/98 José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 638/98).