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Processo nº 140/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. J..., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão nº 2/95 - Concurso, do Plenário Geral do Tribunal de Contas, de 19 de Dezembro de 1996, publicado no Diário da República, II Série, nº 5, de 7 de Janeiro de 1997, que julgou 'improcedente o recurso interposto por J..., de interposição da decisão do Júri do Concurso Curricular para Juiz do Tribunal de Contas que o excluiu com o fundamento de que 'tendo embora exercido durante 10 anos funções de direcção de empresas apenas exerceu esta direcção ao mais alto nível durante seis meses, ao invés dos três anos exigidos na parte final da alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro'.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, invoca o recorrente que ele 'é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie é a contida na alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro', acrescentando que 'o princípio constitucional que se considera violado é o da igualdade, consignado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, bem como da liberdade de acesso à função pública em condições de igualdade, consignado no nº 2 do artigo 47º da Constituição da República Portuguesa'. Conclui o requerimento pedindo 'a admissão do presente recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da eventual inconstitucionalidade da citada alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89, e ainda as questões suscitadas no número 10 do presente requerimento' (e este nº 10 tem o seguinte teor: 'Por outro lado, não se conformando com a interpretação que contra si fez vencimento, vem, ao abrigo do disposto no número 2, alínea d) do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa, o Recorrente requer que o recurso para o Tribunal Constitucional aprecie ainda as questões suscitadas no documento superveniente e nas alegações finais, relativas ao não conhecimento (ponto VI do acórdão, págs.
8 e segs) da por si alegada violação do princípio da igualdade no acesso à função pública, com a consequência prevista no artigo 133º do CPA, resultante do facto de o Júri ter mandado aperfeiçoar algumas candidaturas, em prejuízo das demais, designadamente da sua, bem como a interpretação consagrada no ponto
8.2.1. do acórdão, que veda a miscegenação das diversas áreas de recrutamento, impedindo a aplicação combinada das diversas alíneas do artigo 36º da Lei nº
86/89').
3. Nas suas alegações, conclui assim o recorrente:
'1. A norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente no processo, consiste na parte final da alínea c) do artigo 36º da Lei 86/89, de 8 de Setembro, que exige como requisito de apresentação a concurso curricular
'pelo menos dez anos de serviço em cargos de direcção de empresas e três como membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização'.
2. No seu teor literal, tal norma admite unicamente como relevante para o cômputo do prazo adicional de três anos o título de membro de Conselhos de Administração. Fica pois excluído o exercício de qualquer outro cargo de administração de sociedades comerciais - designadamente do cargo de gerente, o que no entender do Recorrente implicaria violação do Princípio da Igualdade, consagrado no número 2 do artigo l3º da Constituição da República Portuguesa, bem como do Princípio da Liberdade e Igualdade de acesso à função pública, consagrado no número 2 do artigo 47º da CRP.
3. A correcta interpretação do Princípio da Igualdade determina a necessidade do tratamento desigual de situações também desiguais.
4. Porém, não se vislumbram razões objectivas que permitam à lei privilegiar o exercício do cargo de membro de Conselhos de Administração em detrimento de outra forma de administração de sociedades comerciais tratando-se, como no caso vertente, de um concurso curricular e em especial de uma alínea que, por natureza, admite candidatos oriundos de funções de direcção de empresas.
5. Assim, tratando-se de requisitos de admissão a concurso curricular, o exercício de funções de administração em sociedades comerciais não pode ser apreciado ou qualificado genericamente pelo legislador, privilegiando sempre o exercício de um cargo em detrimento liminar de todos os outros cargos de administração de sociedades. Tal apreciação ou qualificação só poderá ter lugar em concreto, e por isso já na fase da graduação dos candidatos.
6. Defende pois o Recorrente que a interpretação constitucional do prazo adicional de três anos previsto na citada alínea c) se deverá reportar ao exercício de funções de administração de sociedades comerciais, sem discriminação das funções de gerente face as de administrador.
7. O recorrente foi liminarmente excluído por 'não preencher os requisitos cumulativos da alínea c) do artº 36º da Lei 86/89, de 8 de Setembro, pela qual concorre, porque tendo embora exercido durante dez anos funções de direcção de empresas, apenas exerceu esta direcção, ao mais alto nível, durante seis meses, ao invés dos três anos exigidos na parte final da referida alínea'.
9.Introduzindo o conceito de 'direcção ao mais alto nível', o júri e a instância de recurso desconsideraram concretamente o exercício, pelo Recorrente, do cargo de gerente nunca sociedade por quotas por período de mais de sete anos, tendo apenas considerado como exercício de direcção ao mais alto nível o cargo de administrador de sociedade anónima, que o Recorrente exerceu pelo período de seis meses.
10. Ao adoptar o conceito de direcção ao mais alto nível, e simultaneamente excluir o candidato que exerceu a função máxima de administração de sociedades por quotas, o Júri consagra uma interpretação inconstitucional (por violação dos princípios acima citados, sem que se justifique ou fundamente tal disparidade de tratamento), alegando o uso de um poder discricionário de que não dispunha.
11. Inconformado com a deliberação de exclusão, o Recorrente interpôs recurso da decisão, nos termos previstos no artigo 37º da Lei 86/89, de 8 de Setembro, para o Plenário Geral do Tribunal de Contas, tendo alegado a inconstitucionalidade da respectiva exclusão, além do mais com as consequências de nulidade insanável previstas no artigo 133º , do Código do Procedimento Administrativo.
12. Tal recurso acabou por ser julgado improcedente. São essencialmente dois os aspectos que levaram o Plenário Geral a sufragar a decisão de não aceitação do exercício das funções de gerente de sociedade por quotas (bem como de sociedades em nome colectivo ou em comandita) para efeitos do preenchimento dos requisitos da segunda parte da alínea c) da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro: um primeiro argumento relativo à alegada impossibilidade de realização de quaisquer operações de mercados financeiros, que seriam exclusivo das sociedades anónimas, e algumas diferenças entre os poderes dos administradores e directores das sociedades anónimas e gerentes de sociedades por quotas.
13. Para o recorrente a decisão do Plenário Geral é incompreensível, quer pela escassez e fragilidade dos argumentos avançados pelo Tribunal, quer pela contradição que se encerra na própria decisão. De facto, a conclusão parte de uma premissa errónea (os mercados financeiros não são exclusivo das sociedades anónimas e as sociedades por quotas têm legalmente acesso a tais mercados para realização de todas as operações relativas a empréstimos obrigacionistas) e de uma mera potencialidade (a das sociedades anónimas acederem ao mercado bolsista, para operações de emissão de acções, OPA's e OPV'S, sendo certo que só uma pequena minoria das SA existentes utilizou tal faculdade).
14 . Quanto ao argumento dos poderes de gestão, embora existam pequenas diferenças de regime, resultante da natureza das sociedades de capitais e das sociedades de pessoas, o conteúdo jurídico funcional dos poderes da gerência e da administração não são comparáveis em abstracto, apenas com base nos respectivos regimes legais, carecendo quase sempre de uma apreciação concreta dos estatutos da sociedade para se apurar da sua verdadeira extensão .
15. Afigura-se igualmente que a interpretação do Plenário Geral encerra uma contradição insanável: optando por um conceito vago e indeterminado como o de direcção de empresas ao mais alto nível, é óbvio que todos os candidatos que tenham exercido funções de administração (lato senso) de empresas terão de ser inicialmente admitidos, para numa fase posterior se verificar a elevação das funções por si exercidas. A lógica do próprio conceito a tal obriga.
16. Outra interpretação, definindo à priori uma categoria (administradores) que preenche sempre o conceito de direcção ao mais alto nível, negando infundadamente aos restantes (gerentes) a possibilidade de, em igualdade, e sem discriminação funcional, demonstrar o preenchimento de tal conceito, é claramente inconstitucional, mais uma vez por violação dos princípios da Igualdade e Liberdade de Acesso à Função Pública.
17. No entender do Recorrente, a interpretação mais correcta da alínea c) em causa, à luz dos critérios de interpretação previstos no Código Civil e dos princípios constitucionais acima citados, não poderá deixar de reportar o prazo ali previsto ao exercício de funções de administração de sociedades comerciais, sem distinções entre as funções de administrador ou de gerente.
18. Não existindo razões que justifiquem que a lei opte por uma solução de desigualdade de tratamento entre administradores e gerentes, é certo que a alínea c) em causa encontra ferida de inconstitucionalidade. A interpretação proposta pelo recorrente supera tal situação, pois ao considerar relevante para efeito do cômputo do prazo adicional de três anos o exercício de funções de administração de sociedades comerciais, sem distinções, põe termo à actual discriminação em razão da função exercida'.
4. Da parte dos recorridos só contra-alegou o Presidente do Tribunal de Contas, sustentando que 'devia ser negado provimento ao presente recurso, por improcedente' e adiantando a seguinte conclusão:
'A norma constante da 2ª parte da alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13 da CRP, nem o denominado princípio da liberdade e igualdade de acesso à Função Pública'. Invoca-se ainda na mesma peça a questão do não conhecimento do recurso, apenas na parte que toca a uma 'Segunda Questão (subsidiária)' abordada pelo recorrente nas suas alegações, na base de que ele 'não indica qual a norma ordinária aplicada (ou 'desaplicada') e qual o artigo da Constituição violado por ela', sobre a qual respondeu o recorrente, sustentando que 'o alegado pelo recorrido carece de fundamento, pelo que deverá ser indeferido', porquanto 'a questão
'subsidiária' suscitada pelo recorrente relaciona-se precisamente com o alcance e efeitos da decisão neste caso concreto' e trata-se, no fundo, 'de expurgar o processo das consequências da inconstitucionalidade da norma, tal como interpretada no processo (questão principal), assegurando assim pleno alcance e eficácia inter partes ao julgado pelo Tribunal Constitucional (questão subsidiária)'. ('Finalmente sempre se dirá que o recorrido - Presidente do Tribunal de Contas, não poderia ignorar que a falta de indicação formal da norma desrespeitada nunca seria fundamento para requerer, como fez, o não conhecimento da questão 'subsidiária' pelo Tribunal Constitucional' - acrescenta ainda o recorrente).
5. Vistos os autos, cumpre decidir, começando naturalmente pela questão preliminar do não conhecimento do recurso, levantada na resposta do recorrido Presidente do Tribunal de Contas, mas reportada só à matéria de uma 'Segunda Questão (subsidiária)' constante das alegações do recorrente. Não assiste, porém, razão ao recorrido, pela simples razão de que tal matéria não assume os contornos de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa - caso em que seria indispensável, como diz o recorrido, a indicação do preceito infraconstitucional e da norma ou princípio constitucional violado - e antes se configura como um efeito consequencial de um eventual juízo de inconstitucionalidade, na medida em que deste decorreria a reforma do acórdão sob censura, sendo por isso que o recorrente requer que, nesse caso, 'o Tribunal reaprecie as contagens dos prazos de exercício de funções pelo Recorrente (que se encontram erradas no acórdão), à luz da documentação junta ao processo de candidatura e da Certidão da Conservatória do Registo Comercial junta pelo Recorrente no decurso do processo'. Saber se, em tal hipótese, haverá ou não lugar à dita 'reapreciação', é matéria a considerar face a esse eventual juízo de inconstitucionalidade, e deste se tratará adiante. Desatendida, assim, a referida questão preliminar levantada na resposta do recorrido Presidente do Tribunal de Contas, tem, no entanto, de dizer-se que relativamente à matéria da 'Segunda Questão (subsidiária)', que o recorrente formula na parte final das suas alegações, ela tem a ver apenas com as consequências ou efeitos a extrair do tal eventual juízo de inconstitucionalidade, o que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar e decidir, nem sequer assumindo os contornos de uma questão de ilegalidade, e antes caberá ao Tribunal de Contas recorrido, ao reformar o julgado, se for caso disso, ponderar os reflexos daí derivados quanto ao concurso curricular em causa. Assim, não há que tomar aqui conhecimento de tal matéria.
6. O acórdão recorrido, depois de identificar 'a questão suscitada no requerimento de recurso e nas alegações finais e, quanto a saber se o recorrente reunia ou não, face ao disposto no artigo 36º da Lei nº 86/89, os requisitos de admissão ao concurso curricular para Juízes do Tribunal de Contas, e, se consequentemente procedem os argumentos do recorrente quanto à alegada ilegalidade da deliberação do júri que o exclui' e depois de registar a
'experiência profissional' apresentada pelo recorrente (tendo por base 'os elementos constantes do requerimento de admissão ao concurso'), passou a analisar desenvolvidamente aquela questão, avançando na parte final com as seguintes considerações que, pelo seu interesse no presente caso, se transcrevem:
'Ora, (...), quando o legislador exigiu três anos como membro do conselho de administração ou de gestão de uma empresa, para além do exercício de 10 anos de direcção de empresas, teve em vista de forma clara e inequívoca, o exercício de funções de direcção cimeira em empresas que tenham como órgão de gestão ou conselho de administração ou conselho de gestão, ou seja, empresas públicas, instituições de crédito e companhias de seguro nacionalizadas, sociedades anónimas de capitais públicos, sociedades anónimas de economia mista, participadas ou controladas, sociedades anónimas em geral com estrutura monista
(conselho de administração) ou estrutura dualista (direcção e conselho geral) desde que o órgão de gestão seja um órgão de direcção colegial (direcção ou conselho de administração) ficando porém excluídas as funções de gestão em sociedades anónimas com administrador ou director único ou seja sociedades anónimas com capital social inferior a 20 000 contos (cfr. artigo 390º, 2 e artigo 424º do Código das Sociedades Comerciais) e, bem assim, as sociedades por quotas, em comandita ou em nome colectivo. E também já acima se viu que, atenta a natureza e estrutura financeira do capital e do património das sociedades anónimas, só estas estão em condições de assegurar através dos seus órgãos sociais a prática de um conjunto de operações financeira no mercado financeiro. Isto sem contar com as especificidades das empresas públicas e das sociedades de capitais públicos ou economia mista, participadas ou controladas objecto ou não, de privatizações. Daí que o legislador tenha privilegiado de forma especial o exercício de funções como membro do conselho de administração ou de gestão de empresas com uma estrutura financeira de capital social e patrimonial que lhes permita assegurar uma visão completa e integral da totalidade das funções de direcção cimeira de empresas ao mais alto nível, designadamente ao nível do mercado financeiro que as funções de gerente de uma sociedade por quotas em nome colectivo e em comandita não lhe permite assegurar. Isto para além das diferenças acima assinaladas de poderes jurídicos previstos na lei entre os administradores e directores das sociedades comerciais e os gerentes das sociedades por quotas. E ao valorizar de forma diferente o exercício de funções de gestão em empresas que tenham como órgão de gestão e direcção cimeira um conselho de administração, uma vez que só elas dispõem de uma estrutura financeira de capital e património que lhes permite assegurar a realização um conjunto de operações financeiras no mercado financeiro, que outras empresas com outra estrutura financeira, e outras formas societárias e outros órgãos de gestão não estão em condições de assegurar a Lei nº 86/89 não está a violar o princípio constitucional de igualdade, uma vez que as funções de gestão em causa não são materialmente iguais. E também a conduta do júri ao não aceitar a equiparação entre as funções de membro do Conselho de Administração de uma sociedade anónima e de gerente de uma sociedade por quotas, não é censurável por violação do princípio constitucional da igualdade.
(...). E, no caso 'sub judice', ao valorar-se de forma diferente na 2ª parte da alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, as funções de direcção de empresa em que o órgão de gestão ou de direcção cimeira seja um conselho de administração ou de gestão, fixando requisitos mais exigentes do que os previstos na primeira parte da a mesma alínea c) - onde se inclui no conceito de direcção de empresa, a direcção intermédia de qualquer tipo de empresa, qualquer que seja a forma jurídica que revista e sector de propriedade e de actividade económica em que esteja inserido - está-se a ponderar de forma adequada e proporcional um maior rigor de exigência - inerente ao pressuposto de que só os membros de órgão de gestão colegial de empresas legal ou estatutariamente designados por conselhos de administração ou de gestão possuírem uma visão integral e completa da função de direcção de empresas, designadamente ao nível das operações financeiras que no mercado financeiro só as empresas que possuam aqueles órgãos de gestão financeira e direcção cimeira, atenta a estrutura do respectivo capital e do património social, estão em condições de assegurar e praticar -, indispensável para o exercício de funções de Juiz do Tribunal de Contas, quando esse recrutamento recai em profissionais de direcção e gestão de empresas. Ou seja, o legislador exigiu uma efectiva experiência ao nível da direcção cimeira e gestão de empresas que pratiquem um conjunto de operações financeiras no mercado financeiro, que só as empresas que possuem conselhos de administração e de gestão estão em condições de assegurar. Aliás, mesmo na alínea b), também se exigiu que o exercício de funções na Administração Pública envolva o exercício de função dirigente, ao nível de director-geral, não se limitou ao exercício de função dirigente da administração pública em geral. Exigiu-se além disso, que essas funções se situassem ao nível de director-geral. E não se pode dizer em circunstância alguma que esse acréscimo de exigências para o exercício de funções como membro de um órgão supremo de fiscalização das despesas públicas e de julgamento das contas públicas, seja desproporcional e inadequado quando se exige relativamente aos candidatos com experiência em direcção de empresas, uma experiência específica em certas empresas, com determinadas características e dimensão. Com efeito 'parece seguro que o direito de acesso a cargos públicos não prejudica a existência de determinados requisitos estatutários para o exercício de certos cargos (idade, habilitações académicas, ocupação profissional desde que necessária à natureza do cargo'
(Prof. Doutor Gomes Canotilho e Dr. Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pág. 272). E a exigência para provimento no cargo de Juiz do Tribunal de Contas, de uma determinada ocupação profissional ao nível de funções de direcção cimeira de certas empresas que dispõem de conselhos de administração ou de gestão, atenta a sua dimensão e tipo de operações financeiras que só elas estão em condições de assegurar, não constitui qualquer discriminação constitucionalmente censurável, nem está abrangida pela proibição de arbítrio inserta no princípio de igualdade. Antes se revela adequada à natureza e ao conteúdo das funções de juiz do Tribunal de Contas.' A norma questionada inscreve-se na Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, relativa à reforma do Tribunal de Contas, e consta do seu Capítulo IV, onde se regula o estatuto dos juízes daquele Tribunal, cujo recrutamento se faz 'mediante concurso curricular' (artigo 35º, nº 1, que estabelece ainda a composição do júri), ao qual podem apresentar-se como candidatos, entre outros, mestres ou licenciados 'em Direito, Economia, Finanças ou Organização e Gestão de Empresas, de reconhecido mérito, com pelo menos dez anos de serviço em cargos de direcção de empresas e três como membro de conselhos de administração ou de gestão ou de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização' (artigo 36º, c), correspondendo à alínea e) do nº 1 do artigo 19º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto). O recorrente, com invocação de 'Grau de Mestre em Gestão de Empresas', apresentou-se ao concurso em causa, mas dele foi excluído por decisão do júri com fundamento de 'não preencher os requisitos cumulativos da alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, pela qual concorre, porque tendo embora exercido durante 10 anos funções de direcção de empresas apenas exerceu esta direcção ao mais alto nível durante seis meses, ao invés dos três anos exigidos na parte final da referida alínea', sendo que esta decisão foi mantida no acórdão recorrido, por não merecer 'qualquer censura' e estar 'em perfeita conformidade com o Direito aplicável' (e foi mantida nos exactos termos do seu inicial enunciado). Está, pois, em questão aquela norma do artigo 36º, c), da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, e a controvérsia quanto à interpretação com que essa norma foi aplicada no acórdão recorrido pode assim sintetizar-se:
- para o acórdão, 'o legislador exigiu uma efectiva experiência ao nível da direcção cimeira e gestão de empresas que pratiquem um conjunto de operações financeiras no mercado financeiro, que só as empresas que possuem conselhos de administração e de gestão estão em condições de assegurar', e, por isso, a exigência dos três anos 'teve em vista, de forma clara e inequívoca, o exercício de funções de direcção cimeira em empresas que tenham como órgão de gestão ou conselho de administração ou conselho de gestão, ou seja, empresas públicas, instituições de crédito e companhias de seguro nacionalizadas, sociedades anónimas de capitais públicos, sociedades anónimas de economia mista, participadas ou controladas, sociedades anónimas em geral com estrutura monista
(conselho de administração) ou estrutura dualista (direcção e conselho geral) desde que o órgão de gestão seja um órgão de direcção colegial (direcção ou conselho de administração) ficando porém excluídas as funções de gestão em sociedades anónimas com administrador ou director único ou seja sociedades anónimas com capital social inferior a 20 000 contos (cfr. artigo 390º, 2 e artigo 424º do Código das Sociedades Comerciais) e, bem assim, as sociedades por quotas, em comandita ou em nome colectivo' ('Daí que o legislador tenha privilegiado de forma especial o exercício de funções como membro do conselho de administração ou de gestão de empresas com uma estrutura financeira de capital social e patrimonial que lhes permita assegurar uma visão completa e integral da totalidade das funções de direcção cimeira de empresas ao mais alto nível, designadamente ao nível do mercado financeiro que as funções de gerente de uma sociedade por quotas em nome colectivo e em comandita não lhe permite assegurar'
- insiste ainda o acórdão).
- para o recorrente, e no essencial, 'a interpretação mais correcta da alínea c) em causa, à luz dos critérios de interpretação previstos no Código Civil e dos princípios constitucionais acima citados, não poderá deixar de reportar o prazo ali previsto ao exercício de funções de administração de sociedades comerciais, sem distinções entre as funções de administrador ou de gerente' (decidindo-se como se decidiu - é outra afirmação essencial do recorrente -, 'introduzindo o conceito de 'direcção ao mais alto nível', o Júri e a instância de recurso desconsideram o exercício, pelo Recorrente, do cargo de gerente numa sociedade por quotas por período de mais de sete anos, tendo apenas considerado como exercício de direcção ao mais alto nível o cargo de administrador de sociedade anónima, que o Recorrente exerceu pelo período indicado na deliberação'). Quid juris?
7. É no plano da ofensa do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, e reflectido no sub princípio da igualdade do acesso à função pública, constante do artigo 47º, nº 2, da mesma Constituição, que releva em absoluto a discussão gerada acerca do modo como aplicada ao caso do recorrente a norma questionada da segunda parte da alínea c) do artigo 36º da Lei nº 86/89. Aquele princípio da igualdade - tem-no dito o Tribunal Constitucional repetidas vezes e por diversas formas - requer que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Reclama, por isso, respeito pela diferença. ele não proíbe distinções de tratamento. Proíbe tão-só a discriminação, o arbítrio legislativo - é dizer: as soluções irracionais ou desrazoáveis, carecidas de fundamento material bastante (cfr., por exemplo, o acórdão nº 340/92, publicado no Diário da República, II Série, nº 266, de 17 de Novembro de 1992, e o recente acórdão nº
185/98, publicado no mesmo Diário, nº 72, de 26 de Março de 1998, onde se pode ler: 'Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio
(WillKürverbot)'). E, por seu turno, o princípio da igualdade no acesso à função pública não tem sentido diverso do princípio geral da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição (cfr. o citado acórdão 340/92; cfr. o Parecer nº 116/88, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, nos Pareceres, vol. I, págs. 198 e seguintes, referindo-se às restrições que pode sofrer a liberdade de escolha da profissão, na sua dimensão positiva, e que passam pelo respeito dos princípios da adequação, exigibilidade e porporcionalidade; cfr. ainda, Pareceres, vol. II, págs. 715 e seguintes). Passando ao caso sub judicio, e como a norma questionada se reporta a 'membro de conselhos de administração ou de gestão' (e também a membro 'de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização'), tudo está em saber se a exigência do acórdão recorrido, de exercício de funções de direcção de empresas 'ao mais alto nível' ou 'funções de direcção cimeira' - daí excluindo 'as funções de gestão em sociedades anónimas com administrador ou director único ou seja sociedades anónimas com capital social inferior a 20 000 contos (cfr. artigo 390º, 2 e artigo 424º do Código das Sociedades Comerciais) e, bem assim, as sociedades por quotas (...)' - é ou não de uma exigência irracional ou desrazoável (saber se o
'acréscimo de exigências', talqualmente se expressa o acórdão, é desproporcional ou inadequado quando é feito relativamente aos candidatos contemplados na alínea c) do artigo 36º, ora questionada). A leitura daquela norma pode conexionar-se estritamente com todo o regime legal que rege para a estrutura e o património das sociedades anónimas, para apurar se
'só estas estão em condições de assegurar através dos seus órgãos sociais a prática de um conjunto de operações financeira no mercado financeiro' ('Isto sem contar com as especificidades das empresas públicas e das sociedades de capitais públicos ou economia mista, participadas ou controladas objecto ou não, de privatizações' - acrescenta-se ainda no acórdão recorrido). E ela foi feita no acórdão recorrido, de forma abundante e esgotante, para todo o universo societário, e sempre na perspectiva dos vários graus de direcção de empresas e dos diferentes níveis de responsabilidade que lhes estão confiados, em termos que não interessa estar aqui a reproduzir. O que releva é a solução diferenciadora derivada do posicionamento do acórdão recorrido entre diferentes tipos de sociedades comerciais, optando-se nomeadamente, e no que aqui importa, pelas sociedades anónimas em geral - e mesmo assim com capital social superior a 20 000 contos -, 'atenta a natureza e estrutura financeira do capital e do património', e excluindo-se as sociedades por quotas, além das próprias sociedades anónimas com capital inferior àquele montante (e registe-se que no domínio da forma de sociedades comerciais vigora o princípio da tipicidade ou numerus clausus tendo as partes que adoptar no contrato de sociedade um daqueles citados tipos legalmente previstos). Tudo para apurar as tais 'funções de direcção cimeira' e adoptar um sentido interpretativo para as normas em causa, que está bem expresso neste passo do acórdão recorrido:
'Daí que o legislador tenha privilegiado de forma especial o exercício de funções como membro do conselho de administração ou de gestão de empresas com uma estrutura financeira de capital social e patrimonial que lhes permita assegurar uma visão completa e integral da totalidade das funções de direcção cimeira de empresas ao mais alto nível, designadamente ao nível do mercado financeiro que as funções de gerente de uma sociedade por quotas em nome colectivo e em comandita não lhe permite assegurar'. Só que esta solução que passa por tratar com privilégio e de forma especial determinado exercício de funções em sociedades comerciais (e assim valorizar de forma distinta esse exercício numas e noutras sociedades) revela-se uma solução irracional ou desrazoável, verdadeiramente arbitrária. Com efeito, ser 'membro de conselhos de administração ou de gestão', como consta da questionada alínea c), tem de reportar-se a todo o universo das sociedades comerciais, sem privilegiar este ou aquele tipo de sociedade, nomeadamente distinguir as sociedades de capitais e as sociedades de pessoas. Doutro modo, a entender-se privilegiado o exercício de funções de membro de
órgão colegial naquelas sociedades de capitais – e mesmo assim só com capital social superior a 20 000 contos – é aderir a uma solução arbitrária. A aplicação em concreto dessa alínea é que poderá ter que passar pela ponderação ou apreciação dos poderes jurídicos em que está investido o interessado, quando invoca, como concorrente, as funções de administração ou de gestão de uma sociedade comercial, seja, como no presente caso, uma sociedade por quotas (e esta representa um tipo intermédio entre as sociedades personalistas e as sociedades capitalistas). Quando é certo que ser administrador ou gestor de uma sociedade por quotas, com contactos intensos e subsequentemente responsabilidade em matérias de natureza financeira, tendo a ver com o mercado financeiro, significa uma experiência qualificada, diferentemente da diluição de funções e responsabilidades num órgão colegial, como é um conselho de administração. De acordo com o disposto no artigo 259º do Código das Sociedades Comerciais - e nas palavras de António Caeiro - 'os gerentes têm competência para praticar todos os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios (...) e é aos gerentes que compete, portanto, administrar ou gerir a sociedade e representá-la em face de terceiros, praticando todos os actos que se integram no gestão da empresa social', sendo opção legislativa claramente 'no sentido de proclamar, em primeira linha, a competência dos gerentes, sem prejuízo de reconhecer que estes devem respeitar as deliberações dos sócios quando existam' (As Sociedades de Pessoas no Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, 1988, pág. 78; e o mesmo Autor refere ainda o princípio 'de que os gerentes vinculam a sociedade por todos os actos que pratiquem em nome dela, quer tais actos se compreendam no objecto social, quer dele extravasem'.
É, pois, uma responsabilidade ligada a uma plenitude de orientação das actividades da sociedade que ressalta dos textos legais e que, na prática, como
é sabido, corresponde a uma efectiva direcção personalizada do volume de negócios da sociedade e dos problemas econónico-financeiros que lhes dizem respeito.
Sem esquecer que uma sociedade por quotas pode ser até administrada e representada por um ou mais gerentes e neste último caso os respectivos poderes são exercidos conjuntamente, salvo cláusula de contrato de sociedade que disponha de modo diverso, podendo dizer-se que há um conselho de gestão e por via do funcionamento de uma gerência plural (cfr. artigos 252º e 261º do Código das Sociedades Comerciais). Depois, porque se mostra irrazoável fazer distinções e impor um 'acréscimo de exigências', como faz o acórdão recorrido, quando se trata de 'membros de conselhos de administração ou de gestão', pondo de lado a previsão 'de conselhos fiscais ou de comissões de fiscalização' como consta da mesma norma, sendo que na sociedade por quotas pode funcionar, no plano da sua fiscalização, 'um conselho fiscal, que se rege pelo disposto a esse respeito para as sociedades anónimas' (nº 1 do artigo 262º do citado Código; cfr. o regime de fiscalização das sociedades, à luz do Decreto-Lei nº 257/96, de 31 de Dezembro, que também aditou o artigo 262º-A, quanto ao dever de prevenção nas sociedades por quotas). Ora, se o recorrente, por hipótese, fosse pura e simplesmente membro do conselho fiscal, preencheria a exigência legal, mas, como invocou funções de gerência, e no entendimento do acórdão recorrido, já não poderia preencher tal exigência, pois acrescentou-se-lhe nesse acórdão mais a exigência de 'funções de direcção cimeira', numa dada interpretação da norma jurídica ora questionada. Carece, pois, de fundamento material bastante a solução a que aderiu o acórdão recorrido, interpretando e aplicando aquela norma da alínea c) do artigo 36º, quer porque tratou com privilégio e de forma especial o exercício de funções de direcção em determinado tipo de sociedades comerciais, discriminando os demais tipos, que porque acabou por distinguir tais funções das de membro 'de conselhos fiscais, ou de comissões de fiscalização', quando estes conselhos podem existir e funcionar nos mesmos termos numa sociedade por quotas. Registe-se ainda que, no quadro da competência natural essencial do Tribunal de Constas - órgão vocacionado para fiscalizar a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas e para apreciar a boa gestão financeira -, cabe-lhe, designadamente, e no que aqui pode relevar, verificar as contas dos organismos, serviços ou entidades sujeitas à sua prestação, julgar a efectivação de responsabilidades financeiras de determinadas entidades e apreciar a legalidade, bem como a economia, eficácia e eficiência, segundo critérios técnicos, da gestão financeira de tais entidades (cfr. artigos 1º, nº 7º, e 5º, nº 1, d), e) e f) da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, a lei vigente de organização e processo no Tribunal de Contas). Tudo funções ou tarefas a que não é alheia o desempenho de um gerente numa sociedade por quotas, com os problemas que no dia a dia se colocam quanto ao apuramento do balanço, das vendas líquidas e outros proveitos a par do acompanhamento da normal actividade social. Pergunta-se, com relevo para o presente caso: onde reside o fundamento material bastante para tratar diferentemente um membro de conselho fiscal de uma sociedade por quotas de um membro de conselho de gerência - sendo hipótese de gerência plural - da mesma sociedade?
Não se vê um tal fundamento e, consequentemente, tanto basta para dar como violado o princípio da igualdade que decorre dos artigos 13º e 47º, nº 2, da Constituição, aplicada como foi a norma do artigo 36º, c), da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, no sentido de exigir um exercício de funções de direcção de sociedades comerciais 'ao mais alto nível' ou 'funções de direcção cimeira'.
8. Termos em que, DECIDINDO: a) Julga-se inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 47º, nº 2, da Constituição, a segunda parte da norma do artigo 36º, c), da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que aí, na candidatura a Juiz do Tribunal de Contas, em concurso curricular, não se considera o exercício durante três anos de funções de gestão em sociedades por quotas; b) Concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, para ser reformado em consonância com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 3 de Março de 1999 Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Bravo Serra (vencido, por entender que a norma sub iudicio não ofende o artigo
13º da Constituição, pois que sou da opinião de que, a meu ver, são realidades diferentes o exercício como membro de um conselho de administração ou gestão das sociedades anónimas e o exercício de funções de um gerente de uma sociedade por
(cotas que, sendo, essencialmente, um órgão executivo, não fiscalize, propriamente, o respeito pelas deliberações sociais e, responsabilidades financeiras segundo critérios de eficácia e eficiência de acordo com critérios técnicos de gestão financeira; por outro lado, não descortino, minimamente, qualquer ofensa do nº 2 do artigo 42º da Lei Fundamental) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, por não se me afigurar absolutamente desrazoável aquela que se me apresenta como uma exigência qualificativa - particularmente qualificada - para a candidatura a juiz do Tribunal de Contas).