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Proc.Nº 68/94
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A 'Sociedadade A' veio, no processo de execução para pagamento de quantia certa que moveu contra B e mulher, interpor recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 16 de Dezembro de 1993, que não considerou inconstitucional a norma do artigo 300º do Código de Processo Tributário, que reproduz o artigo 193º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, apesar de a recorrente ter suscitado tal questão durante o processo.
2. - No referido processo de execução, a sociedade exequente e ora recorrente pretendia haver dos executados a quantia de
2.265.463$10, acrescida de juros, tendo os executados confessado, por meio de escritura pública junta aos autos, serem devedores à exequente da quantia de Esc.s: 1.735.542$10, constituindo para garantia do pagamento de tal valor uma segunda hipoteca voluntária sobre duas fracções autónomas, identificadas nos autos e de que eram proprietários.
Após a citação pessoal dos executados, foi ordenada a penhora das fracções hipotecadas e, depois das citações subsequentes, foi designada data para a arrematação em hasta pública das referidas fracções.
3. - Entretanto, a Caixa Geral de Depósitos Crédito e Previdência (adiante, CGD) veio aos autos informar que as fracções penhoradas já tinham sido arrematadas no Processo de execução fiscal nº 517/87, nos autos de carta precatória nº 45/87, da 2ª Repartição de Finanças do Seixal, e adjudicadas
àquele instituto de crédito.
A sociedade exequente veio então aos autos requerer, em
9 de Maio de 1988, a suspensão da execução por 6 meses, para poder reclamar os seus direitos como credora hipotecária no processo de execução fiscal, o que foi deferido, tendo-se renovado mais vezes tal pedido de suspensão até que a exequente, em 1 de Junho de 1990, tendo visto ser liminarmente admitido o seu crédito na reclamação aberta na execução fiscal mas sem que, porém, o tivesse visto graduado, veio aos autos requerer a imediata cessação da suspensão e a designação de nova data para a venda das fracções em causa, por considerar que não tendo a CGD reclamado atempadamente, o crédito perdera a garantia real, passando o seu crédito a dever ser considerado comum.
A CGD notificada, veio referir que os bens penhorados nos autos já tinham sido vendidos, devendo manter-se a suspensão da instância.
Notificada deste requerimento, a sociedade exequente veio, de novo, requerer que fosse designado dia para proceder à venda em arrematação por hasta pública dos bens penhorados nos autos, pois, para além das razões referidas no anterior requerimento, acrescia o facto de, entretanto, ter sido proferida a sentença de graduação de créditos na execução fiscal, onde se entendeu que 'a C.G.Depósitos pelo facto de não ter reclamado o crédito na execução comum, perdeu o direito de obter o pagamento do seu crédito à custa do produto da venda dos bens aí penhorados', o que segundo a requerente corresponde
à caducidade da garantia real, ainda que se tenha entendido que não havia caso julgado material quanto à questão da perda da prioridade da C.G.Depósitos relativamente à exequente, o que implicaria a reproposição de tal questão neste processo.
A exequente, notificada pelo juiz da comarca do Seixal para esclarecer a sua pretensão, 'uma vez que o crédito em causa nestes autos já se encontra graduado na execução fiscal, onde foi reclamado', veio reiterar o seu pedido de venda judicial por arrematação em hasta pública dos bens penhorados e pelo valor por si indicado.
4. - Esta pretensão veio a ser indeferida pelo despacho de 15 de Julho de 1992, que se passa a transcrever, na parte decisória:
'Apreciando:
A exequente pretende que seja designada data para a venda em hasta pública das fracções penhoradas, alicerçando tal pretensão no artigo 819º do C. Civil que dispõe que os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados são ineficazes em relação ao exequente, pelo que ser-lhe-ia ineficaz a venda ocorrida no processo de execução fiscal nº 517/87 do 6º Juizo Tributário.
A norma do artigo 819º do C. Civil tem efectivamente por base uma ideia de direito de sequela sobre os bens penhorados por parte do exequente, a qual assegura que estes, uma vez penhorados não possam ser desviados da finalidade de garantia a que servem.
Esta ideia de sequela está implícita no artº 871º do C. P. Civil, quando esta disposição estabelece que se deverá sustar a execução em relação a bens penhorados quando se verifique que já existe uma penhora anterior noutra execução. A execução onde a penhora é posterior não poderá, assim, prosseguir quanto a esses bens, nomeadamente não se poderá proceder à sua venda nessa execução.
Contudo, a regra do artigo 871º não se verifica quando a execução posterior é uma execução fiscal, não se verificando, portanto, a sequela da penhora anterior nos casos de execuções fiscais. Na verdade, dispunha o artº 193º do C.P.C.I. e dispõe agora o artº 300º do Cód. Tributário que a penhora fiscal de bens já penhorados por outros Tribunais não dá lugar à sustação da execução.
Isto quer dizer que as execuções fiscais podem penhorar bens já objecto de penhoras anteriores e prosseguir com a respectiva execução , procedendo à sua venda, não obstante a existência de tais penhoras anteriores.
Conclui-se portanto que a sequela da penhora não funciona relativamente às vendas efectuadas nos processos de execução fiscal, sendo estas vendas oponíveis em relação aos exequentes titulares de outras penhoras anteriores.
Não é assim aplicável ao caso em apreço do disposto no artº 819º do Cód. Civil, pelo que tendo sido vendidas em processo de execução fiscal as fracções penhoradas nestes autos, estas não poderão ser vendidas na presente execução.'
5. - A sociedade exequente, notificada deste despacho, agravou para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo suscitado nas pertinentes alegações a questão da conformidade constitucional do artigo 300º do Código de Processo Tributário.
A Relação, por acórdão de 29 de Março de 1993, veio a negar provimento ao recurso, confirmando o despacho impugnado.
6. - A sociedade exequente interpôs então recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo renovado nas respectivas alegações a questão da constitucionalidade do artigo 300º do Código de Processo Tributário, nos termos que a seguir se transcrevem:
...'2. Em primeiro lugar, entendeu-se, no douto Acórdão recorrido, que o artº
300º não viola o princípio da igualdade, por ser 'um artigo claramente destinado a possibilitar ao Estado a prossecução de interesses económicos que a Constituição lhe comete' (ut Acórdão recorrido).
Sucede, porém, que a Agravante nunca arguiu a inconstitucionalidade do artº
300º no que respeita ao objectivo que serve e para o qual foi criado.
A questão suscitada pela Agravante prende-se, antes com a aplicação deste artigo, pensado precisamente para tutelar interesses da natureza pública, aos casos dos créditos comuns de que é titular a Caixa Geral de Depósitos, no exercício de uma actividade que desempenha a par com outras instituições de natureza privada e que não justifica a concessão do privilégio que o artº 300º claramente encerra.
É quanto a este aspecto que a aplicação do artº 300º produz resultados manifestamente contraditórios com o disposto na Constituição, uma vez que coloca em plano claramente mais favorável a C.G.D., relativamente a outras instituições congéneres, num domínio em que a actividade desenvolvida é idêntica.
No caso vertente, o privilégio concedido àquela instituição revela, ainda, aspectos de flagrante injustiça, dado ter como resultado premiar-se a actuação relapsa da C.G.D. que, omitindo o ónus que lhe incumbia de reclamar os seus créditos na execução comum, vem, ainda assim, a obter com preferência sobre a Agravante a satisfação daqueles, por recurso a um meio expedito que, no entender do douto Acórdão recorrido, a lei prevê e permite.
3. Por outro lado, afasta aquele Acórdão a relevância da inconstitucionalidade suscitada, argumentando que esta se reconduziu à análise do artº 300º do Cód. Proc. Tributário e este não estava em vigor quando se deu a arrematação na execução fiscal, pelo que tal questão só poderia ter sido tomada em consideração se houvesse incidido sobre o artº 193º do Cód. Proc. das Contribuições e Impostos.
Ora, por um lado o douto despacho recorrido fez aplicação daquele artigo, pelo que, ao contrariá-lo, a Agravante teria de atacar os respectivos fundamentos de direito.
Por outro lado, o referido despacho é de 15.7.92, altura em que vigorava já o novo Código, e foi nesse momento, que se tratou a questão abrangida pelo seu artº 300º, sendo, como é sabido, a lei processual de aplicação imediata, aplicação essa que o artº 2º/1 do Decreto Preambular confirma.
Sendo assim, é por referência ao artº 300º do Cód. Proc. Tributário e não ao artº 193º do Cód. Proc. das Contribuições e Impostos que a questão da inconstitucionalidade deve ser tratada, improcedendo, salvo o muito e devido respeito, a argumentação em sentido contrário, expendida no douto Acórdão recorrido.
Assim e em conclusão:
G) Além de tudo, o privilégio em termos de celeridade processual que o artº
300º confere e que se justifica pelos interesses públicos que tutela, é inconstitucional quando possibilita tal privilégio à Caixa Geral de Depósitos, no domínio de uma actividade que esta desempenha em concorrência com outras instituições de crédito privadas, por violar os artºs 13º e 81º, al. e) e f) da C.R.P..
H) A lei processual é de aplicação imediata e o mesmo dispõe o artº 2º do decreto preambular do Cód. Proc. Tributário, pelo que o artº 300º deste diploma foi aplicado pelo Meretíssimo Juiz da 1ª instância, no seu despacho de 15.7.92, por ser já o diploma em vigor e é relativamente a este preceito que a questão da inconstitucionalidade da sua aplicação ao caso concreto deve ser suscitada.'
O STJ, pelo acórdão de 16 de Novembro de 1993, decidiu negar provimento ao recurso, sendo a seguinte a respectiva fundamentação quanto
à questão de constitucionalidade:
'A recorrente pretende que a norma constante do art. 300º do Código Tributário é inconstitucional.
De referir que estamos perante norma meramente reprodutiva da constante do Cód. de Processo de Contribuição e Impostos.
Nada obsta nestes casos à apreciação da questão da constitucionalidade, como se demonstra no Parecer da Comissão Constitucional nº 29/80 in vol. XIII, pág.
254. No mesmo sentido Sandulli Legge, pág. 651, Oliveira Ascenção, O Dtº. Introdução e Teoria Geral, pág. 116 e Tribuna da Justiça, Janeiro/88. Isto por se estar perante apenas novação da fonte de Direito. Há hipóteses em que uma norma se mantém, mas fundada em título que substitui o anterior.
*
Mas haverá inconstitucionalidade?
Salvo o devido respeito, não.
O princípio da igualdade exige que se trate igualmente aquilo que é igual, mas também impõe que se trate desigualmente, o que é diferente.
Os direitos do Estado e de órgãos que nele se integram sempre tiveram um tratamento diverso dos atribuidos às entidades privadas.
Assim como se diz no aresto impugnado:
«Não se vê, porém, que o dito art. 300º viole aqueles dispositivos constitucionais, pois é um artigo claramente destinado a possibilitar ao Estado, a prossecução dos superiores interesses económicos que a constituição lhe comete e que determinam, inclusivamente, que seja da competência dos Tribunais Tributários, através do Processo de execução fiscal, a cobrança coerciva de todas as dívidas de que sejam credoras à Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Providência..».'
7. - É deste acórdão que vem interposto o recurso de constitucionalidade relativo ao artigo 300º do Código de Processo Tributário, com fundamento na violação dos artigos 13º e 81º, alíneas e) e f) da Constituição da República.
A sociedade exequente e aqui recorrente apresentou alegações, nas quais formulou a seguintes conclusões:
'Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência da declaração da inconstitucionalidade material da aplicação do artº 300/2 do C.P. Tributário à Caixa Geral de Depósitos sempre que estiver apenas em causa - como no caso sub-judice - a cobrança coerciva, de um crédito comum emergente de um financiamento concedido a particulares, no quadro de relações jurídicas exclusivamente privadas, deve determinar-se a reforma da decisão sob censura, por isso que:
1ª A atribuição à C.G.D. do foro fiscal para cobrança coerciva de créditos comuns, de natureza exclusivamente privada ou 'jurídico-civil', viola desde logo a norma constante do artº 214/3 da C.R.P. que define a competência funcional da jurisdição fiscal;
2ª A concessão à C.G.D. do dito privilégio, que é mesmo corolário do privilégio da execução prévia característico dos actos administrativos, naqueles casos em que apenas está em causa a cobrança coerciva de um crédito comum concedido pela C.G.D. a particulares, no quadro da sua actividade bancária tipicamente exercida em condições idênticas às dos demais operadores económicos existentes no mercado financeiro português, constitui por outro lado uma flagrante violação do princípio da igualdade, constante no artº 13/2 da C.R.P.;
3ª Finalmente, a concessão à C.G.D. do privilégio referido nas duas conclusões anteriores e a aplicação a ela do artº 300º do C.P. Tributário nas questões exclusivamente privadas ou jurídico-civis, constitui ainda uma clara violação da norma do artº 81 al. f) da Lei Fundamental, uma vez que é evidente a sua desconformidade com o princípio da salvaguarda duma efectiva e sã concorrência que ao Estado incumbe assegurar.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
8. - Importa, antes de mais, apurar se pode conhecer-se do objecto do recurso.
Com efeito, a sociedade recorrente identifica no requerimento de interposição do recurso, como seu único objecto, a apreciação da
'inconstitucionalidade do artº 300º do Código de Processo Tributário, que reproduz o conteúdo do artº 193º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, com fundamento na violação dos artºs 13º e 81º, al. e) e f) da Constituição da República Portuguesa', sendo tal recurso interposto ao abrigo do preceituado no artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
Os recursos interpostos ao abrigo de tal alínea, para serem admitidos devem preencher vários requisitos de admissibilidade, de entre os quais interessa salientar os seguintes:
- que a inconstitucionalidade da norma tenha sido previamente suscitada pelo recorrente durante o processo;
- que essa norma venha a ser aplicada na decisão, constituindo um dos seus fundamentos normativos.
Este Tribunal vem entendendo o primeiro dos mencionados requisitos - suscitação «durante o processo» - por forma a que ele deva ser tomado não num sentido puramente formal - tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância -, mas num sentido funcional - tal que a arguição de inconstitucionalidade deverá ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão. Deve, portanto, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal
«a quo» sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.
Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a prolação da sentença e dado que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão ou em que por força de preceito específico o poder jurisdicional não se esgote com a decisão final, é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
Quanto ao segundo requisito, importa referir que a norma cuja inconstitucionalidade for suscitada durante o processo terá de ser um dos fundamentos normativos da decisão, e aplicada, em regra, na sequência do não atendimento da arguição de inconstitucionalidade.
Acresce também, que o Tribunal Constitucional tem vindo a formular como exigência da admissibilidade dos recursos de constitucionalidade o requisito de que a decisão desta questão possa influenciar a decisão final da questão de fundo do processo.
Efectivamente, o recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental, aferindo-se a sua utilidade no concreto processo de que emerge, de tal forma que o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa.
Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso.
Sendo estes os requisitos de admissibilidade de recursos interpostos ao abrigo da alínea b) referida, importa apurar se os mesmos estão verificados no caso dos autos.
9. - Quanto ao primeiro dos mencionados requisitos, é manifesto que a sociedade recorrente suscitou em vários dos seus articulados
(v.g., alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegações de recurso para o STJ) a questão da inconstitucionalidade do artigo 300º do CPT .
Também parece claro que estão esgotados os recursos jurisdicionais que no caso cabiam e que não está em causa uma mera questão académica, mas antes e segundo a sociedade recorrente a única forma de conseguir impedir a 'frustração do fim da presente execução'.
Mas, terá a decisão recorrida aplicado a norma que o artigo 300º do CPT reproduz e que já constava do revogado artigo 193º do CPCI?
Vejamos, antes de mais, o teor das normas em causa.
O artigo 300º do Código de Processo Tributário estabelece, sob a epígrafe 'Impenhorabilidade de bens penhorados em execução fiscal', o seguinte:
'1. Penhorados quaisquer bens pelas Repartições de Finanças, não poderão os mesmos bens ser apreendidos, penhorados ou requisitados por qualquer tribunal, salvo se, em processo especial de recuperação da empresa, e de protecção dos credores, o administrador judicial requerer o levantamento da penhora e assegurar a sua substituição por uma das garantias previstas no nº 1 do artigo
282º, de forma que fiquem assegurados os interesses do exequente.
2. Salvo o disposto no artigo 164º, podem ser penhorados pelas Repartições de Finanças os bens apreendidos por qualquer tribunal, não sendo a execução, por esse motivo, sustada nem apensada.'
Pelo seu lado, o artigo 193º do CPCI estabelecia o seguinte:
'Penhorados quaisquer bens pelos Tribunais Fiscais, não poderão os mesmos bens ser apreendidos, penhorados ou requisitados por qualquer outro tribunal, salvo se, em processo especial de recuperação da empresa e de protecção dos credores, o administrador judicial requerer o levantamento da penhora e garantir a sua substituição por garantia bancária, caução, seguro-caução ou outro meio pelo qual fiquem assegurados os interesses do exequente.
§ único. Salvo o disposto no artigo 167º podem ser penhorados pelos tribunais das contribuições e impostos e pelas Repartições de Finanças os bens apreendidos por qualquer outro tribunal, não sendo a execução, por esse motivo, sustada nem apensada.'
Verificam-se entre os textos algumas diferenças, que todavia não são de molde a modificar a norma que deles se pode extrair e que se manteve essencialmente a mesma.
Vejamos então se se pode conhecer do recurso.
A decisão da primeira instância assentou essencialmente no argumento de que a pretensão da sociedade exequente e ora recorrente para requerer a designação de nova data para a arrematação dos bens penhorados partia da ideia do direito de sequela sobre os bens penhorados ínsita no artigo 819º do Código Civil, designadamente se relacionado com o preceituado no artigo 871º do Código de Processo Civil. Como, porém, se entendeu que a regra deste preceito não se verifica quando a execução posterior é uma execução fiscal, na medida em que nesta execução se podem penhorar bens já penhorados sem que a execução se suste, por força do artigo 300º do Código do Processo Tributário (anterior artigo 193º, § único do Código de Processo das Contribuições e Impostos), veio a ser indeferido o pedido de marcação da arrematação.
Na Relação de Lisboa, depois de se estabelecer a competência dos tribunais tributários para a cobrança coerciva dos créditos da CGD, em processo de execução fiscal, a decisão afastou a questão do artigo 300º do CPT, uma vez que a arrematação fiscal ocorreu em 25/2/1988, numa altura em que nem sequer estava em vigor o CPT, que data de 23/4/91, sem que a recorrente suscitasse qualquer questão relativamente ao artigo 193º do CPCI, tendo acabado por negar provimento ao recurso na sequência da interpretação do artigo 819º do Código Civil em conjugação com o nº3 do artigo 824º do mesmo código e com o processo de execução entendido no conjunto de todo o sistema jurídico.
A decisão do STJ recorrida, vem assim fundamentada:
' 3 - 'O Direito.
A agravante propugna pela ineficácia da venda realizada na execução fiscal. Isto com base no artigo 819º do C.Civil a conjugar com o artigo 871º do C.P.C..
O artigo 871º dispõe que pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, sustar-se-á a execução em que a penhora for posterior.
Vamos admitir que a hipótese se subsume no art. 819º, o que é discutível porque não houve acto de disposição ou oneração anterior à penhora.
De qualquer modo, é inaceitável o art. 871º preceituar no sentido já referido.
Lopes Cardoso ao comentar este preceito diz que a penhora não é levantada mas o exequente, se quiser obter o pagamento terá de ir reclamar o seu crédito no processo onde foi feita a primeira apreensão, para aí ser graduado com a referência da respectiva penhora. Mas logo esclarece que a disposição não se aplica nos casos de execução fiscal. Visto o disposto no art. 193º do Código de processo das Contribuições e Impostos (cfr. Manual de Acção Executiva, 3ª edição, p. 525 e nota 1).
Igual conteúdo tem a norma constante do art. 300º do Cód. Tributário.
3.1. - De referir um aspecto da questão que se afigura relevante.
A recorrente apesar do que alega requereu a suspensão da presente execução e foi reclamar o crédito no processo de execução fiscal. Ali foi proferida sentença de graduação de créditos, tendo o seu sido graduado em 2º lugar.
A. dos Reis ensina: O facto se sustar a execução determina, como consequência necessária a concorrência do exequente à outra execução que continua a seguir os seus termos.
O respectivo exequente fica impossibilitado de obter nela o pagamento do seu crédito (cfr. Processo de Execução, vol. 2º-288).
De advertir que aquele Professor referia-se à situação normal ou seja à prevista no actual art. 871º do C.P.C..
Mas, a mesma linha argumentativa é de invocar no caso excepcional das execuções fiscais.
E porquê?
O nº 1 do art. 871º só consente que se reclame numa execução o crédito objecto doutra, desde que esta esteja sustada.
Antes disso haveria até litispendência. (cfr. Lopes Cardoso obra citada pág.
526).
Mas após a reclamação na outra execução e proferida sentença de graduação de créditos, passa a existir caso julgado, que obsta a que se queira fazer valer igual direito sobre os mesmos bens que foram penhorados na execução anteriormente suspensa. Este fundamento obsta também à procedência do recurso.'
É certo que o acórdão do STJ refere-se expressamente à questão da inconstitucionalidade da norma reproduzida no artigo 300º do CPT, para a negar, mas em parte alguma da sua fundamentação se utiliza essa norma como argumento essencial para a conclusão decisória a que chegou, no sentido de confirmar o improvimento do recurso.
Efectivamente, a norma que vem questionada não constitui
- nem podia constituir - um fundamento normativo da decisão recorrida, sendo irrelevante para o juizo a formular distinguir quanto ao diploma em que vem inserida, dadas as coincidências de contexto e as mínimas diferenças literais que se verificam, como se constatou atrás.
Vejamos porquê.
10. - O artigo 300º do Código de Processo Tributário
(CPT), atrás transcrito, à semelhança da norma que no anterior diploma tinha idêntico conteúdo, integra dois comandos inteiramente diversos, ainda que visando a mesma finalidade.
O nº 1, na sua primeira parte, estabelece que, uma vez penhorados por uma repartição de finanças certos bens do executado, enquanto essa penhora se mantiver, tornam-se eles absolutamente inapreensíveis em qualquer execução que corra termos em qualquer outro tribunal não tributário. Esta inapreensibilidade desaparece apenas no caso de, em processo de recuperação de empresas e de protecção de credores, o administrador judicial requerer o levantamento da penhora assegurando a sua substituição por uma das garantias previstas no artº 282º, nº1, garantindo assim os interesses do exequente
(segunda parte do nº 1).
Como claramente decorre do texto da norma esta não foi nem podia ter sido aplicada quanto ao comando da primeira parte do nº 1, nos presentes autos: de facto, não se trata aqui de uma execução fiscal, mas sim de um processo de execução para pagamento de quantia certa, no qual os bens em causa foram penhorados em data anterior (10 de Setembro de 1986) à da penhora fiscal (2 de Fevereiro de 1988).
Assim sendo, o único segmento normativo que podia eventualmente ter sido utilizado no processo em apreço, seria o do nº 2 do artigo 300º (que reproduz o § único do anterior artigo 193º, do CPCI), do qual resulta que as repartições de finanças podem penhorar os bens apreendidos por qualquer tribunal, sem que a execução fiscal, por esse motivo, venha a ser sustada ou suspensa, salvo se se tratar de processo de recuperação de empresas e de protecção de credores.
Todavia, tal norma do CPT nunca podia ser o fundamento normativo de uma decisão proferida no processo de execução comum como a que indefere o pedido de venda de bens penhorados em primeiro lugar nessa execução mas entretanto já vendidos no processo de execução fiscal. De facto, o juiz da execução comum, ao ter conhecimento de que os bens cuja arrematação designara se encontravam já vendidos na execução fiscal apenas podia fazer o que fez: sustar a execução comum, por forma a permitir que a exequente e os credores dos executados pudessem ir reclamar os seus créditos no processo fiscal, o que aliás a sociedade recorrente fez, tendo a execução sido suspensa a seu pedido, durante vários meses. Só o facto de o seu crédito ter vindo a ser graduado em 2º lugar, atrás do crédito da CGD, na execução fiscal, por ali não ter sido atendida a perda da garantia real por parte da CGD, por falta de reclamação do crédito, a levou a pugnar pela realização da arrematação no processo de execução comum.
O nº 2 do artigo 300º do CPT (ou, indiferentemente, o §
único do artigo 193º do CPCI) tem na sua base uma concepção de quase total independência da execução fiscal que apenas cede no caso de processos de recuperação de empresas e de protecção de credores. A norma em causa não só permite que as repartições de finanças penhorem bens já apreendidos por outros tribunais (com a excepção referida) como afasta a aplicação do disposto no artigo 871º do CPCivil, ao prever que a execução fiscal, embora nela a penhora tenha sido posterior, não seja sustada. Há paralelismo entre os dois números do citado artigo 300º na medida em que com o nº 2, e com vista à satisfação do crédito, a lei tributária procura obviar aos inconvenientes resultantes de uma penhora tardia, colocando o exequente público em posição semelhante àquela de que beneficia segundo o nº 1 do mesmo artigo.
Mas, porque é assim, o momento processual adequado para a reacção da sociedade recorrente no sentido de questionar essa norma, então ainda o § único do artigo 193º do CPCI, teria sido aquele em que foi notificada da comunicação feita pela Caixa Geral de Depósitos ao senhor Juiz de que os bens tinham sido arrematados no processo de execução fiscal conforme despacho do mesmo magistrado, de 1 de Março de 1988, que mais determinou ter 'ficado sem efeito a praça' (fls 66). É irrelevante esclarecer-se agora qual o foro - comum ou fiscal - perante o qual a questão de constitucionalidade deveria ter sido suscitada. E é irrelevante porque, inserindo-se o presente recurso de constitucionalidade no processo de execução comum e só interessando as decisões nele tomadas, a recorrente, agindo com pleno acatamento do dispositivo legal, sem contestar a constitucionalidade do § único do artigo 193º, do CPCI, veio ao processo requerer 'a suspensão da presente execução pelo prazo de 6 meses, por forma a que a exequente deduza os seus direitos como credora hipotecária e penhorante no concurso de credores que há-de ter lugar na execução fiscal que fora promovida pela Caixa Geral de Depósitos...' (requerimento de fls. 70 e segs.), o que foi deferido.
A ter havido aplicação do § único do artigo 193º do CPCI, ocorreu ela, ou no momento em que foi determinado que ficara sem efeito a praça, ou no momento em que foi deferido o requerimento em que foi solicitada a suspensão da execução. Parece bem claro que nenhuma dessas decisões, entretanto passadas e transitadas em julgado, se pode confundir com aquela, sucessivamente confirmada, de que agora se recorre, tomada em 15 de Julho de 1992, que indeferiu o requerimento de designação de novo dia para a venda por arrematação em hasta pública dos bens penhorados. É que, entretanto, já o regime do artigo
193º, § único, do CPCI, tinha produzido de forma processualmente consolidada todos os seus efeitos na esfera jurídica da sociedade recorrente, a qual reclamou e viu o seu crédito graduado na execução fiscal, em termos que a recorrente já não poderia infirmar no presente processo.
Ora, uma norma com este conteúdo específico nunca poderia ser fundamento da decisão proferida na primeira instância e confirmada nas instâncias superiores: o respectivo conteúdo normativo é antitético em relação a tal decisão. Esta - a não designação de nova data para arrematação dos bens penhorados - não poderia fundar-se na norma em apreço, mas sim na que permite a realização da arrematação dos bens penhorados mesmo antes da graduação dos créditos reclamados - pois era esta a situação real da execução fiscal onde tinha sido realizada a penhora sobre os mesmos bens já penhorados na execução comum, onde se suscitou esta questão.
Aliás, a recorrente tem perfeita consciência disto mesmo ao fundar a inconstitucionalidade do artigo 300º no 'privilégio em termos de celeridade processual que o artº 300º confere e que se justifica pelos interesses públicos que tutela', norma essa que, assim, 'é inconstitucional quando possibilita tal privilégio à Caixa Geral de Depósitos, no domínio de uma actividade que esta desempenha em concorrência com outras instituições de crédito privadas', o que, no entender da recorrente (cfr. alegações para o STJ, al. G), viola os artigos 13º e 81, al. e) e f) da C.R.P..
Ora, colocar desta forma a questão de constitucionalidade não é questionar a conformidade à Lei Fundamental do artigo
300º do CPT ou do artigo 193º e seu § único, do CPCI, mas sim a da norma que atribui ao tribunais tributários competência para tramitarem as execuções da CGD por créditos hipotecários decorrentes de operações comuns a outras instituições de crédito.
Nestes termos e por todas estas razões, entende-se que o Tribunal Constitucional não deve conhecer da questão da constitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 300º do CPT, que reproduz o § único do artigo
193º do CPCI, questão que vem suscitada nos autos.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC's.
Lisboa, 20 de Março de 1996 Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa