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Proc. nº 138/95 ACÓRDÃO Nº 507/96
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A veio arguir, por requerimento dirigido ao Tribunal de Instrução Criminal de Almada, a nulidade de um mandado de busca e do acto de apreensão de documentos levado a cabo em 1993 no seu escritório sito na Rua .... Depois, interpôs recurso da decisão que ordenou a busca e apreensão, antes de proferida decisão sobre a arguição de nulidade. Este último recurso não foi admitido pelo juiz do Tribunal Judicial do Seixal. No mesmo despacho, foi indeferida a arguição de nulidade, sendo certo que a busca fora ordenada no inquérito instaurado por crime de fraude fiscal previsto no art. 23º do Regime Jurídico aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro.
2. Desta parte do despacho interpôs o reclamante recurso para o Tribunal de Relação de Lisboa, tendo na respectiva motivação suscitado, além de outras, a questão de inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, por este diploma ter sido publicado em data posterior ao prazo constante da respectiva lei de autorização legislativa (Lei nº 89/89, de 11 de Setembro), sucedendo que a própria promulgação pelo Presidente da República do decreto-lei autorizado ocorrera após o decurso do prazo de caducidade estabelecido na lei autorizadora. Não poderia, na tese do recorrente, ser repristinado o Decreto-Lei nº 619/76, por este diploma sofrer de inconstitucionalidade também.
Ainda nas mesmas alegações, o recorrente considerou que o art. 5º do revogado Decreto-Lei nº 619/79 e o art. 11º, nº 4, do Decreto-Lei nº 20-A/90 sofriam de inconstitucionalidade material, por violarem o princípio da igualdade, na vertente de não discriminação em função da situação económica. Também seria inconstitucional a norma de direito transitório constante do art.
5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 20-A/90, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (a fls. 22 a 27 dos presentes autos, certidão dos autos principais).
Através de acórdão proferido em 25 de Janeiro de 1995, a Relação de Lisboa negou provimento a este recurso. Depois de delimitar o objecto do recurso, a Relação de Lisboa entendeu que tinha de conhecer da questão de inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 20-A/90, visto este diploma ter aprovado a norma incriminadora invocada para determinar a busca ao escritório do recorrente. Mas afastou do objecto do recurso as outras questões de inconstitucionalidade referidas, por as considerar de natureza 'meramente académica', já que nenhuma das normas alegadamente inconstitucionais fora
'invocada na decisão recorrida, nem no despacho que ordenou a busca, nem sequer constam do mandado de busca em causa' (a fls. 61 vº). Relativamente à questão de inconstitucionalidade orgânica, a Relação considerou que não tinha razão o recorrente, visto a aprovação do diploma autorizado pelo Conselho de Ministros ter ocorrido no prazo constante da lei autorizadora (este prazo era de 90 dias, a lei autorizadora havia sido publicada em 11 de Setembro de 1989 e o diploma autorizado havia sido aprovado em Conselho de Ministros em 28 de Setembro de
1989, embora a promulgação só tivesse ocorrido em 12 de Janeiro do ano seguinte). Considerando os momentos relevantes quanto ao iter legislativo do diploma autorizado, afirmou-se neste acórdão:
'Prevalece, porém, a tese da não exigência da publicação dentro dos limites temporais, pois a publicação é um acto estranho ao exercício da autorização legislativa e é um requisito de eficácia e não de existência [desde a primeira revisão constitucional] [...].
Assim, o diploma ficaria perfeito com a simples aprovação pelo Governo ou, num excesso de rigor, no momento de recepção pelo Presidente da República para efeitos de promulgação [...].
In casu, como já vimos o diploma foi aprovado no Conselho de Ministros de 28 de Setembro de 1989, ou seja, dentro do prazo (de 90 dias) dado pelo art. 6º da Lei de Autorização nº 89/89, de 11/09.
Daí que concluamos que o D. L. nº 20-A/90 não padece de inconstitucionalidade orgânica' (a fls. 62 dos autos).
Notificado deste acórdão, dele veio o recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional, indicando como objecto de recurso 'a inconstitucionalidade orgânica do dec-lei nº 20-A/90, os princípios da inviolabilidade do domicílio e da intimidade pessoal estabelecido no art. 26º C.R.P., o dec-lei nº 619/79 era inconstitucional' (a fls. 72 dos autos). Através de despacho de fls. 76, o recurso de constitucionalidade foi admitido, mas tão-somente quanto à questão da 'inconstitucionalidade orgânica do D.L. nº
20/A/90,de 15/01, que o Acórdão desta Relação de Lisboa (3ª Secção), de
25/01/95 (de fls. 56 e segs.) indeferiu (e que é insusceptível de «recurso ordinário»)'.
Notificado deste despacho, o recorrente não teve qualquer reacção.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações o recorrente e o recorrido Ministério Público.
O recorrente formulou quarenta e uma conclusões, discutindo outras questões de constitucionalidade que não cabiam no objecto do recurso, tal como fora delimitado pelo despacho de admissão.
Transcrevem-se as conclusões que se referem à única questão de constitucionalidade que integra o objecto do recurso:
'15º. Os mandados de busca e apreensão foram ilegais por inconstitucionalidade do dec-lei nº 20/A/90;
16º. O poder legisferante em matéria de definição de crimes, penas e medidas de segurança é da exclusiva reserva legislativa relativa da Assembleia da República;
17º. (...)
18º. O argumento técnico-juridico fundamental para o juízo de constitucionalidade orgânica assenta numa correcta compreensão do art. 122º da C.R.P. na versão anterior a 1982;
19º. O juizo de constitucionalidade orgânica radica numa pré-compreensão normativa do processo legislativo - como procedimento integrando actos com uma relevância jurídica a se cuja validade se afere pela lei vigente no momento da sua prática;
20º. Essa pré-compreensão normativa do processo legislativo assenta na interpretação teleológica e restritiva do art. 122º C.R.P. (na versão anterior a
1982), no sentido de a publicação não corresponder a um elemento constitutivo do acto normativo, mas a um mero elemento de eficácia desse acto;
21º. O DL 20/A/90 enferma de inconstitucionalidade orgânica visto ter sido promulgado depois de esgotado o prazo de utilização fixado na Lei de Autorização legislativa (Lei nº 89/89);
22º. O momento relevante para aferir a utilização tempestiva de uma autorização legislativa corresponde à data de promulgação do diploma pelo Presidente da República;
23º. Esta conclusão resulta da caracterização jurídica da promulgação como acto essencial para completar o processo constitutivo do acto. A consequência fixada no art. 140º C.R.P. para a promulgação-inexistência juridica do acto - comprova-o e converte a promulgação, na formulação de MARCELO REBELO DE SOUSA, num acto necessário para a identificabilidade minima do acto, sem o qual o acto não tem existência juridica;
24º. São ainda elementos relevantes para a conclusão nº 22º. a proibição no nosso ordenamento constitucional da figura do veto de bolso e a inexistência de um controle público da data de aprovação dos diplomas pelo Conselho de Ministros;
25º. No nosso ordenamento constitucional não é admissível a ratificação-sanação de Decretos-Leis organicamente inconstitucionais, mesmo tratando-se de ratificação expressa;
26º. A inconstitucionalidade do DL 20/A/90 é pois insanável; (...)' (a fls.
100 a 102 dos autos)
O Ministério Público, por seu turno, apresentou as seguintes conclusões:
'1º. O momento decisivo do procedimento legislativo para aferir da tempestividade do uso de certa autorização legislativa é o da respectiva aprovação em Conselho de Ministros.
2º. Termos em que deverá improceder o presente recurso, confirmando o juizo de não inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'. (a fls. 112 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
Importa, por isso, conhecer do objecto do presente recurso.
III
4. Como se deixou já dito, constitui objecto do recurso de constitucionalidade apenas a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 da Janeiro, por alegada violação do disposto nos arts. 168º, nº 1, alínea b), e nº 2, da Constituição.
De facto, e não obstante o recorrente ter suscitado outras questões de inconstitucionalidade normativa no requerimento de interposição do recurso, a verdade é que o mesmo não reagiu contra o despacho de admissão do recurso, o qual fixou a única questão de constitucionalidade que integrava o objecto do recurso então admitido. Atento o disposto nos arts.
75º-A, nº 1, e 76º, nºs 2, 3 e 4, da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente deveria ter reclamado para o Tribunal Constitucional quanto às normas que foram afastadas do objecto do recurso, sob pena de se fixar esse objecto, independentemente de a decisão de admissão do recurso não vincular o Tribunal Constitucional.
Não o tendo feito, não pode agora ampliar nas alegações o objecto do recurso, só podendo restringi-lo (art. 684º, nº 3, do Código de Processo Civil, norma aplicável ao processo constitucional, em fiscalização concreta de constitucionalidade, por força de remissão do art. 69º da Lei do Tribunal Constitucional).
5. A Lei nº 89/89, de 11 de Setembro, concedeu ao Governo 'autorização legislativa para aprovar o regime jurídico das infracções fiscais, aplicável a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais prestações tributárias, independentemente de quem for o credor tributário, bem como aos benefícios fiscais' (art. 1º). De harmonia com o art.
6º desta lei, a autorização legislativa conferida caducava se não fosse utilizada dentro do prazo de 90 dias, excepto na parte que respeitava ao artigo
5º, a qual caducava no prazo de 180 dias.
Tratando-se, no caso sub judicio, da incriminação constante do art. 23º do Regime Juridico aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, o prazo de caducidade da autorização era de 90 dias (cfr. art. 2º, nº 2, e 5º da Lei nº 89/89).
Ora, verifica-se que da parte final do Decreto-Lei nº 20-A/90 consta que o mesmo foi aprovado em Conselho de Ministros em 28 de Setembro de 1989, tendo sido promulgado em 12 de Janeiro de 1990 e referendado em 15 do mesmo mês e ano.
A autorização legislativa constante da Lei nº
89/89 tornou-se eficaz a partir do próprio dia da publicação ou, para quem entenda que se aplica às leis de autorização legislativa o prazo de vacatio legis de cinco dias, a partir de 16 de Setembro. O prazo de noventa dias terminou, pois, em 9 de Dezembro de 1989 ou em 14 do mesmo mês e ano.
6. Importa, por isso, averiguar qual o momento relevante do iter legislativo do diploma autorizado, para se saber se o mesmo ocorreu antes ou depois de findo o prazo de caducidade constante do art.
6º da Lei nº 89/89.
O Tribunal Constitucional tem entendido, em jurisprudência constante, que o momento relevante é o da aprovação do diploma autorizado em Conselho de Ministros, sendo irrelevante a circunstância de a promulgação, referenda e subsequente publicação do diploma ocorrerem após a caducidade da autorização legislativa (por todos, vejam-se os acórdãos nºs
150/92 e 265/93, provenientes da segunda e da primeira secções do Tribunal Constitucional, publicados no Diário da República, II Série, nº 172, de 28 de Julho de 1992, e nº 186, de 10 de Agosto de 1983, respectivamente).
Essa jurisprudência pacífica é agora mais uma vez reiterada, remetendo-se para a fundamentação dos indicados acórdãos (no caso nem sequer se suscita questão idêntica à apreciada pelo acórdão nº 574/95, ainda inédito, dada a relativa proximidade entre a data do termo da autorização legislativa e a data da promulgação).
7. Por estas razões, há-de ser julgado improcedente o presente recurso.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 21 de Março de 1996
Ass) Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Luis Nunes de Almeida