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Proc.Nº 614/92
PLENÁRIO
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam em sessão plenária do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - O Provedor de Justiça veio requerer ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nº 2, alínea d), da Constituição e 51º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no acórdão 2/92, de 13 de Maio de 1992, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 2 de Junho de 1992.
Fundamenta o pedido em exposição circunstanciada e articulada que termina apresentando conclusões do seguinte teor:
'Nestes termos deve ser declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no acórdão 2/92, de 13 de Maio, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado em Diário da República, 1ª Série, de 2 de Julho de 1992, por:
1- Constituir um restrição ao direito de acesso aos Tribunais (Artº 20º, nº 1) violadora da irretroactividade das leis restritivas de direitos liberdades e garantias (art.18º, nº 3) e da proporcionalidade exigida às restrições a direitos, liberdades e garantias em nome de outros interesses (artº 18º, nº 2);
2- Constituir uma restrição ao direito ao patrocínio judiciário (artº
20º, nº 2) violadora da irretroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (artº 18º, nº 3) e do conteúdo essencial quanto à sua extensão e alcançe (artº 18º, nº 3);
3- Ferir o princípio da certeza e confiança dos cidadãos na ordem jurídica, retirado como corolário do princípio geral do Estado de Direito (artº
2º);
4- Atentar ou permitir que se atente contra a presunção de inocência do arguido (artº 32º, nº 2), ainda antes de este se constituir como tal e contra o princípio da plenitude das garantias de defesa em processo criminal (artº 32º, nº 1), na medida em que nesta ultimação esvazia algumas pré-processualmente;
5- Potenciar graves lesões ao direito à segurança do ofendido (artº 27º, nº 1), o que não deixa de o pressionar no sentido de evitar o acesso à jurisdição;
6- Dispor contra os direitos ao bom nome, à reputação e à reserva de intimidade da vida privada e familiar (artº 26º, nº 1) pela densificação exigida
à procuração e pelo facto de não ficar protegida 'ab initio' pelo segredo de justiça;
7- Violar o princípio da separação de poderes (artº 114º, nº 1), ingressando no exercício da função legislativa ao modificar o conteúdo e sentido de uma norma contida em acto legislativo;
8- Modificar, com eficácia externa, preceitos legais contra o disposto no artº 115º, nº 5. Se a lei não pode criar actos de outra natureza modificativos dos seus preceitos, parece evidente, que o acórdão em referência também não o poderá fazer.'
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, devidamente notificado para, querendo, responder nos termos do disposto nos artigos 54º e
55º da Lei do Tribunal Constitucional, não fez juntar aos autos qualquer resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
QUESTÃO PRÉVIA
2. - O acórdão nº 2/92 do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ) foi proferido em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 347º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, e nele se estabelece,
'com carácter obrigatório para os tribunais judiciais', a seguinte jurisprudência:
Os poderes especiais a que se refere o nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal são poderes especiais especificados, e não simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos.'
Refere a entidade peticionante que anteriormente a este acórdão era correntemente admitida - tanto para os crimes semi-públicos (artigo
49º do CPP) como também para os crimes particulares (artigo 50º, nº 3, do CPP) - a queixa apresentada por mandatário judicial munido de procuração forense em termos substancialmente idênticos aos do artigo 37º, nº 2, do Código de Processo Civil. Na sequência da definição do objecto do pedido o Provedor de Justiça apresenta os respectivos fundamentos com indicação das razões por que entende ter o comando contido naquele acórdão violado a Lei Fundamental.
Antes porém, e antecipando possíveis objecções ao conhecimento da pretensão apresentada, sustenta que a jurisprudência obrigatória alcançada nos termos dos citados artigos do Código de Processo Penal se consubstanciava em normas susceptíveis de serem submetidas a fiscalização da constitucionalidade.
Sem embargo de se reconhecer ser essa uma questão de indiscutível interesse dogmático, é de natureza diferente a questão prévia que no presente caso, antes de mais, tem de ser suscitada, pois tem precedência lógica sobre aquela e prejudica uma eventual apreciação dos termos em que a mesma deveria ser encarada.
Com efeito, em 24 de Novembro de 1992, foi publicado o Decreto-Lei nº 267/92 que, no seu artigo único determina que 'as procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência por parte do ou dos mandantes, dos necessários poderes para o acto '(nº1) e que (nº 2) 'as procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos , qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes'.
Na sequência deste diploma, que afectava o decidido pelo acórdão nº 2/92, veio o Supremo Tribunal de Justiça a proferir nova decisão cuja repercussão sobre a subsistência de interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido deverá ser ponderada.
Trata-se da decisão contida no acórdão nº 4/94, Processo nº 45 888, de 27 de Setembro de 1994, publicada no Diário da República I Série-A, de 4 de Novembro de 1994, também ela proferida, ao abrigo dos artigos
437º e seguintes do CPP, em recurso extraordinário para a fixação de jurisprudência. Estabeleceu essa decisão, 'com carácter obrigatório para os tribunais judiciais', a seguinte jurisprudência:
'Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 267/92, de 28 de Novembro, caducou a jurisprudência fixada pelo Acórdão obrigatório nº 2/92, de 13 de Maio de 1992, deste Supremo Tribunal de Justiça, por aquele diploma ter revogado implicitamente o nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal, motivo por que não existe qualquer necessidade de ratificação de queixa apresentada por mandatário judicial, munido de simples procuração forense, dentro do prazo fixado pelo nº 1 do artigo 112º do Código Penal' (itálicos reproduzidos do original).
A edição da decisão transcrita gera uma situação em tudo idêntica àquela que se regista quando vem solicitada a este Tribunal a declaração da inconstitucionalidade de normas já revogadas.
Na verdade, atendendo aos próprios termos da decisão, a exigência feita de o mandatário judicial se apresentar munido de procuração forense com poderes especiais especificados perdeu base legal desde a entrada em vigor do decreto-lei de 28 de Novembro de 1992. Assim sendo, a doutrina do acórdão nº 2/92 terá tido aplicação apenas no período que mediou desde o respectivo início de vigência até à entrada em vigor do referido Decreto-Lei nº
267/92 - entre Julho e Dezembro daquele ano de 1992.
Notar-se-á que a referência que se faz no acórdão nº
4/94, do Supremo Tribunal de Justiça, ao facto de não existir qualquer necessidade de ratificação da queixa, não se reveste de autonomia preceptiva em face da afirmação de que 'caducou a jurisprudência fixada pelo acórdão obrigatório nº 2/92'. É este o inciso que corresponde ao sentido substancial do acórdão nº 4/94. A não exigibilidade de ratificação da queixa não é mais do que uma consequência imediata da eliminação da necessidade de procuração com poderes especiais especificados que, no entender do STJ, resultava do nº 3 do artigo 49º do CPP. Tal conclusão é aliás confirmada explicitamente pelo acórdão nº 4/94 de onde se transcreve a passagem que refere (itálicos no original):
'Não restam, pois, quaisquer dúvidas de que o Decreto-Lei nº 267/92, de 28 de Novembro, esvaziou completamente de conteúdo, como já foi dito, a exigência constante do Acórdão obrigatório de 13 de Maio de 1992 deste Supremo Tribunal, de que na apresentação de procuração forense para queixa-crime deveriam constar poderes especiais especificados conferidos ao mandatário, o que necessariamente conduz a que desse facto se tenham de extrair as respectivas consequências que seguidamente se enumeram:
a) A partir do início da vigência do referido decreto-lei, de 28 de Novembro, a jurisprudência fixada pelo aludido acórdão obrigatório deixou de poder ser invocada por, através das disposições do primeiro, se ter operado uma revogação implícita do comando do segmento da norma contida no nº 3 do artigo
49º do Código de Processo Penal;
b) Relativamente a situações anteriores à entrada em vigor do diploma, o conhecimento da verdadeira motivação do legislador conduz à necessidade de não aplicação da doutrina do mencionado acórdão obrigatório, mas aqui por aplicação do princípio consignado no artigo 12º do Código Civil sobre a aplicação das leis civis no tempo;
c) A revogação implícita do preceito do nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal implica, por seu lado, que, presentemente, se deva entender que, para a apresentação de uma queixa-crime por intermédio de mandatário advogado, bastará uma simples procuração forense, sem necessidade de outorga de poderes especiais, contrariamente ao que ficou afirmado no Acórdão obrigatório de 13 de Maio de 1992, cuja doutrina caducou em virtude de uma específica alteração da lei.
XI - O problema da ratificação da queixa feita por mandatário sem poderes especiais:
Em resultado de tudo o que ficou explanado, perde o objecto a parte substancial do problema que foi invocado para fundamentar a apontada oposição de acórdãos - «o de se saber se, apresentada uma queixa por mandatário sem poderes especiais especificados, se tornava ou não necessária, nos crimes de natureza semi-pública ou de natureza particular, a ratificação da mesma, feita pelo lesado, dentro do prazo de seis meses a contar da data dos factos delituosos», uma vez que se deve entender ser desnecessária toda e qualquer ratificação de uma queixa válida e tempestivamente apresentada pelo mandatário com simples procuração forense.
Não deixará de acentuar-se, finalmente, que a problemática da apresentação de queixas-crime por mandatário (dotado ou não de poderes especiais) se tem colocado exclusivamente no campo do procedimento criminal, por crimes de emissão de cheques sem provisão ou de burla, ainda que, em teoria, ela se possa colocar relativamente a qualquer tipo de crimes, sendo certo que, relativamente aos crimes de emissão de cheques sem provisão poder-se-á sempre e enquanto não for fixada jurisprudência obrigatória suscitar a questão de se saber se, como já tem sido decidido por alguns tribunais de 2ª instância, tais ilícitos criminais não passaram a revestir natureza pública depois da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, por força de uma certa equiparação desses crimes ao ilícito de burla, já que, no caso afirmativo, a discussão sobre a eventual e atempada ratificação de queixa nem sequer teria o mínimo sentido.'
No seguimento do raciocínio empreendido, vem o STJ a dizer o seguinte:
'Em resultado de tudo o que ficou explanado, perde o objecto a parte substancial do problema que foi invocado para fundamentar a apontada oposição de acórdãos - «o de saber se, apresentada uma queixa por mandatário sem poderes especiais especificados, se tornava ou não necessária, nos crimes de natureza semipública ou de natureza particular, a ratificação da mesma, feita pelo lesado, dentro do prazo de seis meses a contar da data dos factos delituosos», uma vez que se deve entender ser desnecessária toda e qualquer ratificação de uma queixa válida e tempestivamente apresentada pelo mandatário com simples procuração forense.'
Existe, pois, na parte relevante para a apreciação da questão colocada a este Tribunal, total sobreposição entre o objecto do pedido e o objecto de acórdão posterior, editado com sentido contrário do Acórdão nº
2/92.
3. - Embora a eliminação da norma objecto do pedido não constitua, em regra, por si só, obstáculo à declaração de inconstitucionalidade dados os efeitos ex tunc desta, o Tribunal Constitucional tem entendido que situações do género daquela que se descreve, justificam o não conhecimento do pedido, por se dever entender que uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral virá a ficar desprovida de conteúdo útil.
No caso presente, porventura por maioria de razão, estaremos perante uma dessas situações.
Na verdade, e avultando desde logo que, por se tratar de matéria de direito adjectivo, o preceito contido no acórdão esgota a sua aplicação no âmbito das matérias sobre as quais incide a actividade jurisdicional e que, de acordo com a qualificação da situação em causa, a nova jurisprudência se tornou imediatamente aplicável também a processos pendentes, as decisões jurisdicionais que tiverem sido proferidas em aplicação da orientação anterior ou já terão transitado ou eventualmente estarão pendentes de recurso.
Na primeira hipótese, uma declaração de inconstitucionalidade terá de respeitar a respectiva força de caso julgado, dado que tal regime resulta imperativamente do nº 3 do artigo 282º da Constituição, o qual abre excepção apenas com vista a um tratamento mais favorável do arguido - o que, manifestamente, não é o caso presente. Na segunda hipótese, e para os improváveis casos subsistentes, as vias processuais recursórias assegurarão a adequada tutela dos direitos alegadamente lesados, uma vez que do facto de a procuração não conter poderes especiais especificados, não pode já extrair-se a consequência jurídica da ilegitimidade do Ministério Público fundada em falta de queixa: a tanto se opõe, de facto, o Decreto-Lei 267/92 de 24 de Novembro, e o Acórdão nº 4/94 cuja doutrina é, como se referiu, imediatamente aplicável aos processos pendentes; e, em todo o caso, sempre restará aos interessados o recurso de constitucionalidade.
Assim sendo, na situação em apreço, não se verifica a subsistência de qualquer interesse de conteúdo prático apreciável ou com relevo bastante, susceptível de justificar o conhecimento do objecto do pedido. O comando impugnado deixou de ter aplicação e, por isso, mesmo a admitir-se, numa mera hipótese remota, que pudessem ocorrer em processos pendentes, alguns dos seus efeitos, sempre seria manifestamente excessivo e desproporcionado fazer prosseguir o presente processo com vista à eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Nesta conformidade, em aplicação de uma orientação corrente da sua jurisprudência (cfr. acórdãos nºs 587/93, 397/93 e 175/93, in, respectivamente, DR II S, de 24 de Dezembro de 1993, DR II S, de 14 de Setembro de 1993 e DR II S, de 29 de Abril de 1993, entre outros), entende-se que não se deve tomar conhecimento do pedido formulado.
III - DECISÃO:
Nos termos que ficam expostos, decide-se não tomar conhecimento do pedido.
Lisboa,13 de Março de 1996 Vitor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Luis Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Diniz Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa