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Proc. nº 845/93
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – A subsecção do Tribunal de Contas, por decisão de 2 de Fevereiro de 1993, recusou o visto aos contratos de trabalho celebrados, ao abrigo do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, entre o Instituto Nacional de Investigação das Pescas e A.., AD... e M...
2 – Inconformado com esta decisão o Secretário de Estado Adjunto das Pescas reclamou para a 1ª Secção do referido Tribunal de Contas, que, por aresto de 7 de Outubro de 1993, decidiu, por maioria, julgar improcedente a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a recusa de vistos aos contratos supra referidos. Sustentou aquele Tribunal esta decisão na consideração de que o Decreto-Lei nº
302/91, de 16 de Agosto, era inaplicável aos autos, por ser organicamente inconstitucional, o que fundamentou nos termos que de seguida se transcrevem:
'Prosseguindo na análise da questão em apreço avançaremos, desde já, com a colocação do problema fundamental, que é o de saber se é possível a celebração destes contratos de trabalho subordinado, com violação da disciplina contida nos Decretos-Lei nºs 184/89 e 427/89, respectivamente de 2/6 e de 7/12.
É que, pelo menos, dois princípios estabelecidos nos citados diplomas são postos em crise pelo procedimento em análise. Referimo-nos, concretamente, à indeterminação do prazo de duração destes contratos e à inobservância dos princípios de publicidade e selecção ali consagrados. A legitimação de tais procedimentos derivará do regime estatuído pelo Decreto-Lei nº 302/91, de 16/8, que, no seu artigo 1º, dispõe que: «mediante despacho do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação, e com vista a assegurar a operacionalidade da frota de navios de investigação pesqueira do Instituto Nacional de Investigação das Pescas, pode ser autorizada a celebração de contratos de trabalho a bordo com os inscritos marítimos necessários à sua tripulação, nos termos dos Decretos-Lei nºs 45968 e 45969, ambos de 15 de Outubro de 1964, e do Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março». Para não irmos mais longe, o art. 2º deste último diploma legal consagra, para além dos contratos de trabalho com prazo certo, os contratos de trabalho sem prazo, quando celebrados por tempo indeterminado, bem como ainda os contratos de trabalho com prazo incerto. Por seu turno o art. 9º dispõe que o recrutamento é efectuado por escolha ou por escala, regulamentando-se, seguidamente, as respectivas formas procedimentais. Daí que, nos casos agora em apreço, nem se tenha determinado qualquer limite aos prazos das contratações, nem se tenha procedido à publicitação dos lugares, nem a qualquer processo de selecção.
*** *** *** O Decreto-Lei nº 184/89 é publicado nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo
201º da Constituição, ou seja, no uso de competência do Governo para fazer decretos-lei em matéria de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta. Em tal reserva relativa se incluem as bases do regime da função pública, como se estatui no artigo 168º, nº1, alínea n), da mesma Constituição. No caso do diploma acima invocado, a autorização foi concedida pelo artigo 15º da Lei nº 114/88, de 30/12, que, na sua alínea c), alude, além do mais, ao estabelecimento das formas do exercício transitório das funções.
*** *** *** Embora o objectivo nuclear do Decreto-Lei nº 184/89 seja o da reforma do sistema retributivo, este diploma, como se escreve no seu preâmbulo, aponta para uma
«reforma gradativa e selectiva da administração (...) traduzida em melhoria do serviço prestado...». Em consequência, nos termos do artigo 1º, é sua finalidade estabelecer princípios gerais em matéria de emprego público, remuneração e gestão de pessoal da função pública. Na prossecução de tais objectivos, o subsequente artigo 9º versa, especificamente, sobre contratos de trabalho a prazo certo que, como se dispõe no preceito anterior, constituem com os contratos administrativos de provimento, as duas únicas formas de contratação admitidas em sede de relação jurídica de emprego na Administração – Cfr. ainda o seu art. 5º. Do nº 2 do referido artigo 9º ressalta, quer a absoluta limitação dos seus prazos de duração, quer a necessidade de que as renovações admitidas sejam expressamente formuladas. E o desenvolvimento desse princípio, através, primeiro da remissão para a lei geral sobre contratos de trabalho a termo certo e depois pela estatuição do prazo máximo dum ano, contém-se no nº 3 do art. 14º do Decreto-Lei nº 427/89 e no seu art. 20º (com a redacção do Decreto-Lei nº 497/91, de 17/10). E no nº 3 do mesmo artigo 9º procede-se à enumeração dos mesmo princípios básicos desta forma de contratação, a saber, designadamente, a publicidade da oferta de emprego, a selecção de candidatos e a fundamentação das decisões. Todo este regime veio depois a ser concretizado pelos artigos 14º e 18º a 21º do Decreto-Lei nº 427/89, os quais, na medida em que se limitam a desenvolver os princípios antes referidos, contidos no Decreto-Lei nº 184/89, assumem a mesma força jurídica que aos preceitos atrás analisados foi assacada. Para além de nunca poder esquecer-se, também, que o sempre referido artigo 9º , no seu nº 1, imputa a estes contratos carácter de excepcionalidade e daí que, igualmente, o art. 18º do Decreto-Lei nº 427/89 venha estabelecer por forma taxativa os casos possíveis da sua celebração, nenhum deles correspondendo à previsão dos diplomas em que se fundamentam os contratos em apreço. Excluída fica sempre, de forma absoluta, a possibilidade de quaisquer contratos
– que não sejam os administrativos de provimento – destinados a satisfazer necessidades tendencialmente permanentes, como é o caso da figura que vem agora reactivar-se, com total infracção do quadro estabelecido nos Decretos-Lei nºs
184/89 e 427/89 e sem credencial de Lei da Assembleia da República, face ao disposto no artigo 168º, nº1, al. V) da Constituição.
*** *** *** Nos casos vertentes, quer o princípio da necessária limitação dos prazos de duração dos contratos em referência, quer os princípios de transparência nos processos de recrutamento e de igualdade de oportunidades no acesso a tais contratações, quer o princípio da fixação das situações em que tal contratação é admitida, princípios esses consagrados e garantidos nos termos atrás expostos, não podiam, consequentemente, ser contrariados por um diploma como o Decreto-Lei nº 302/91, publicado nos termos do artigo 201º, nº1, alínea a) da Constituição, ou seja, em matérias não reservadas à Assembleia da República. Aliás, o artigo 43º, nº1, do Decreto-Lei nº 427/89, estabelece um princípio de prevalência cuja razão de ser é evidente: impedir a situação de previsível caos a que a Administração se veria em breve reduzida, se a disciplina das relações jurídicas de emprego pudessem ser alteradas em conformidade com as situações ou os interesses específicos de cada departamento. Essa seria também a situação que necessariamente decorreria quando a disciplina existente pudesse ser alterada por diplomas emanados sem autorização do órgão que a estabeleceu ou autorizou o seu estabelecimento, a Assembleia da República. Situação essa claramente violadora do novo diploma fundamental.'
3 – É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º e do nº 3 do artigo 72º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso de constitucionalidade, baseado na recusa de aplicação pela decisão recorrida do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade orgânica.
4 - Já neste Tribunal fora produzidas alegações pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, que concluiu nos seguintes termos:
'1º - A definição dos princípios gerais da relação de emprego – envolvendo a tipificação das diferentes formas de vínculo laboral admissível, incluindo as que, tendo natureza contratual, se regem pelo direito privado, bem como o estabelecimento da regra da transitoriedade e excepcionalidade dos vínculos emergentes de contratos de trabalho e a subordinação da preparação e formação destes às regras básicas da publicidade e transparência – respeita às «bases do regime e âmbito da função pública», nos termos da alínea v) do nº 1 do artigo
168º da Constituição.
2º - Não é, deste modo, lícito ao Governo, em diploma emitido no exercício da sua competência legislativa própria, derrogar tais princípios básicos, ainda que em termos sectoriais, legitimando a possibilidade de certo serviço administrativo, com base em razões de conveniência ou oportunidade, celebrar contratos subordinados ao regime do contrato individual de trabalho, por tempo indeterminado e para satisfazer necessidades tendencialmente permanentes da Administração.
3º - O regime instituído pelo Decreto-Lei nº 302/91 está, pois, viciado de inconstitucionalidade orgânica, pelo que deverá confirmar-se inteiramente a decisão recorrida'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
5 – Considerando que 'para a eficácia da gestão da frota de navios do Instituto Nacional de Investigação das Pescas torna-se necessário dotar os mesmos de tripulações competentes e especializadas, para cujo recrutamento não são suficientes os regimes laborais em vigor na função pública, que se não coadunam com a especificidade do trabalho a bordo', veio o Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, 'criar os instrumentos legais adequados à excepcionalidade deste tipo de soluções e que permitem àquele Instituto garantir o pleno aproveitamento daqueles importantes meios de investigação' (as passagens sublinhadas são retiradas do preâmbulo do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto). Com aquele objectivo, dispõe o Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto:
Decreto-Lei nº 302/91 De 16 de Agosto Artigo 1º
1 - Mediante despacho do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação, e com vista a assegurar a operacionalidade da frota de navios de investigação pesqueira do Instituto Nacional de Investigação das Pescas, pode ser autorizada a celebração de contratos de trabalho a bordo com os inscritos marítimos necessários à sua tripulação, nos termos dos Decretos-Lei nºs 45 968 e 45 969, ambos de 15 de Outubro de 1964, e do Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março.
2 – O despacho referido no número anterior especificará o número, as categorias profissionais, o vencimento a receber pelo pessoal assim contratado e a existência de cobertura orçamental para o suporte dos correspondentes encargos. Artigo 2º Os contratos de trabalho celebrados nos termos do presente diploma não conferem ao particular outorgante qualquer vínculo à administração pública, nomeadamente a qualidade de agente administrativo. Artigo 3º O Instituto Nacional de Investigação das Pescas deve manter permanentemente actualizado um mapa do pessoal contratado nestas condições.
No entender da decisão recorrida o supra referido diploma está ferido de inconstitucionalidade orgânica, por violação da alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição (na redacção da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho), na medida em que tratando de matéria respeitante às 'bases do regime e âmbito da função pública' não foi objecto da necessária autorização legislativa.
6 - A resposta à questão de constitucionalidade assim colocada passa, desde logo, pela exacta definição do que deva entender-se, para efeitos da alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição (na redacção da Lei Constitucional nº
1/89), por 'bases do regime e âmbito da função pública'. A questão do sentido e alcance daquele preceito da Constituição não é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Ainda em face do primitivo texto da Constituição - a matéria constava então da alínea m) do artigo 167º, que atribuía à Assembleia da República a competência para legislar sobre o 'regime e âmbito da função pública' - a Comissão Constitucional teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão. Sustentou então aquela Comissão que na reserva de competência da Assembleia da República caberia apenas a definição do «estatuto geral da função pública», aquilo que é
«comum e geral a todos os funcionários e agentes», ai se compreendendo, designadamente, «a definição do sistema de categorias, de organização de carreiras, de condições de acesso e recrutamento, do complexo de direitos e deveres funcionais que valem, em princípio, para todo e qualquer funcionário público e que, por isso mesmo, favorecem o enquadramento da função pública como um todo, dentro das funções do Estado»; ao Governo competiria, para esta jurisprudência, a «concretização» desse estatuto geral, ou seja, «quer o desenvolvimento de tais princípios, quer a sua aplicação e adaptação aos sectores que exijam um regime particular específico ou até excepcional' (cfr. Pareceres nºs 22/79 e 12/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 9º, p. 48, e 19º, p. 119, respectivamente). Com a revisão constitucional de 1982 a matéria transitou para o artigo 168º, nº1, alínea u), que dispunha ser da competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre 'as bases do regime e âmbito da função pública', e daí, sem alterações de redacção, para a alínea v) do mesmo preceito na sequência da revisão constitucional de 1989. Já após a revisão de 1982 também o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar, e por diversas vezes, sobre o sentido e alcance daquele preceito constitucional, basicamente para reforçar o entendimento que vinha sendo perfilhado pela Comissão Constitucional (cfr., por todos, os acórdãos nºs
142/85, 154/86, 103/87, 340/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., pp. 81 e ss., 7º vol., pp. 185 e ss., 9º vol., pp. 83 e ss, respectivamente; e, mais recentemente, os acórdãos nºs 36/96 e 523/97, Diário da República, II Série, de 3 de Maio de 1996 e de 21 de Outubro de 1997, respectivamente). No Acórdão nº 142/85 (já citado) ponderou o Tribunal Constitucional:
'Ora, se as coisas já se concebiam deste modo com referência ao texto constitucional anterior à revisão, com maior razão se impõe o entendimento de que a reserva estabelecida depois pelo actual artigo 168º, nº1, alínea u)
(presentemente alínea v)), abrange unicamente o estatuto geral da função pública e o delineamento geral do seu âmbito, mas não a particularização e concretização desse estatuto e o traçado em pormenor do respectivo âmbito de aplicação no concernente a quaisquer sectores concretizados e individualizados da administração pública. Mais: essa reserva não se reporta sequer a um tratamento normativo desenvolvido da matéria em causa, mas tão-só à definição dos seus princípios fundamentais.
É isso o que textual e indiscutivelmente resulta do referido preceito constitucional e se revela, a todas as luzes, do confronto dele com a precedente disposição do artigo 167º, alínea m). Na verdade, em face só do teor literal desta, ainda se poderia duvidar do rigor da orientação interpretativa a seu respeito fixada pela Comissão Constitucional, pelo menos em alguma ou algumas da versões de que se revestiu; mas, depois que o legislador da revisão constitucional – certamente determinado por considerações de fundo idênticas às que estiveram na base da «jurisprudência» daquela Comissão -, veio expressamente limitar a reserva da Assembleia «às bases» do regime e âmbito da função pública, não pode deixar de ter-se por absolutamente líquido que a extensão de tal reserva é unicamente a que ficou apontada, sendo inclusivamente menor do que lhe era atribuída na versão originária da Constituição. Temos assim que o que em exclusivo cabe à Assembleia da República (...) é a definição das grandes linhas que hão-de inspirar a regulamentação legal da função pública e demarcar o âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. Na imediata dependência de um debate e de uma decisão parlamentar (é esse, bem se sabe, o sentido da reserva constitucional) encontra-se apenas, e compreensivelmente, o estabelecimento do quadro de princípios básicos fundamentais daquela regulamentação, dos seus princípios reitores ou orientadores – princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo (consoante o exigir a especificidade das situações a contemplar), e princípios que constituirão justamente o parâmetro e o limite desse desenvolvimento, concretização e particularização'.
Procurando sintetizar o sentido desta jurisprudência disse-se, mais tarde, no acórdão nº 340/92:
'É hoje em dia pacífico e uniforme o entendimento de que em exclusivo cabe à Assembleia da República - sem prejuízo de delegação no Governo dessa competência
- a definição das grandes linhas que hão-de inspirar a regulamentação legal da função pública e demarcar o âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. No âmbito desta reserva encontra-se apenas o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulamentação, cabendo depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar esses princípios que constituirão, justamente, o parâmetro e o limite desse desenvolvimento'.
E, no mesmo sentido, conclui o acórdão nº 36/96:
'Na esteira desta jurisprudência, que por inteiro se perfilha, poder-se-á dizer, em síntese final, que a reserva legislativa a que se reporta a alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição remete para uma lei quadro da função pública, na qual se incluirá apenas o que tenha a natureza de regulamentação de princípio, por constituir, ou co-envolver, uma redefinição de princípios jurídicos da respectiva matéria'.
É na sequência da jurisprudência assim firmada, que mantém inteira validade, que agora há-de decidir-se se o Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, está ou não ferido de inconstitucionalidade orgânica.
7 – A jurisprudência antes citada aponta para a existência de uma lei quadro da função pública na qual se contenham os princípios básicos fundamentais daquela regulamentação (da função pública). Essa lei quadro – no sentido de um único diploma legislativo que, de um modo global, enunciasse todos os princípios básicos fundamentais do regime da função pública –, com a qual toda a regulamentação governamental se deveria conformar, não existia ao tempo do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, como não existe ainda hoje. Porém, como se ponderou no Acórdão nº 285/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., p. 234) a constatação de que não existe uma lei quadro ou lei de bases, no sentido antes exposto, 'não implica necessariamente que não existam consagrados em legislação avulsa princípios básicos fundamentais da regulamentação do regime da função pública e, existindo, pode deles extrair-se a existência de verdadeiras bases no sentido constitucional'. Na falta de uma lei de bases que preencha o conteúdo da reserva legislativa da Assembleia da República, continua o Acórdão nº 285/92, 'pode o Governo editar normas que não contendam com os princípios básicos fundamentais que regem a matéria, ou seja, não poderá o Governo, a pretexto da inexistência de tal normação básica, editar normas que «viessem substituir, modificar ou derrogar as bases efectivamente existentes».
8 - Em face do exposto o que importa agora apurar, para decidir se o Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, é ou não organicamente inconstitucional, é saber se tal diploma «substitui, modifica ou derroga alguma base constitucional – no sentido antes exposto – existente». E colocada a questão nestes termos, como deve sê-lo, a resposta é inequivocamente positiva, como passaremos a demonstrar. Ao tempo do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, estavam já em vigor os Decretos-Lei nºs 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Setembro, relativos ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública, diplomas que procuraram estabelecer um quadro de princípios básicos fundamentais daquela regulamentação. O Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, foi editado ao abrigo das alíneas a), b) e c) do artigo 15º da Lei nº 114/88, de 30 de Dezembro (lei de autorização legislativa), com o objectivo declarado, nos termos da própria lei de autorização legislativa, de 'definir os princípios gerais da relação de emprego público simplificando e tipificando os diversos tipos de vínculo, identificando as situações que devam ser objecto de nomeação ou vinculação precária...'
(sublinhado nosso). Logo no seu artigo 1º, o Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, ao identificar o respectivo objecto, refere que 'o presente Decreto-Lei estabelece princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão de pessoal da função pública', ideia que é depois concretizada no Capítulos II (Princípios gerais do emprego), III (Princípios gerais sobre remuneração) e IV (Princípios gerais sobre gestão). O segundo daqueles diplomas procura, nos seus próprios termos, 'desenvolver e regulamentar os princípios a que obedece a relação jurídica de emprego na administração pública', fixados pelo Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho. Em suma, no que respeita ao regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na função pública, os princípios fundamentais – bases constitucionais, no sentido antes exposto – constam dos Decretos-Lei nºs
184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Setembro (no sentido de que os diplomas supra referidos se apresentam como verdadeiras leis quadro nessa matéria, expressamente, o Acórdão nº 36/96, já citado), sendo certo que eles incluem no seu âmbito os institutos públicos. Ora, como se sustenta na decisão recorrida - posição que é igualmente sufragada pelo Exmo Procurador Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal - alguns dos princípios estabelecidos nos citados diplomas, que, inequivocamente, devem ser havidos como bases no sentido antes exposto, são derrogados, ainda que sectorialmente, pelo Decreto-lei nº 302/91, de 16 de Agosto. O artigo 5º do Decreto-lei nº 184/89, de 2 de Junho, dispõe, acerca das formas possíveis de constituição da relação jurídica de emprego na Administração, que
'A relação jurídica de emprego na Administração constitui-se com base em nomeação ou em contrato'. Por seu lado, o nº 2 do artigo 7º do mesmo diploma, dispõe que as formas de contrato de pessoal admitidas são o contrato administrativo de provimento
(artigo 8º) e o contrato de trabalho a termo certo (artigo 9º). O regime de ambos veio depois a veio a ser concretizado pelos artigos 15º a 17º
(quanto aos contratos administrativos de provimento) e 18º a 21º (quanto aos contratos a termo certo) do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Setembro. Ora, é manifesto que da remissão levada a cabo pelo nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, para os Decretos-Lei nºs 45 968 e 45
969, ambos de 15 de Outubro de 1964, e Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março, resulta a violação, em vários aspectos, da disciplina contida nos Decretos-Lei nºs 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Setembro. Para demonstrar que é assim basta confrontar – como, bem, faz decisão recorrida
- o disposto no artigo 2º Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março – para que remete o nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 302/91 – com o regime que resulta dos preceitos 5º, 7º e 9º do nº 184/89, de 2 de Junho, ou com o regime que resulta dos artigo 14º a 21º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Setembro. A admissibilidade de celebração, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março, de contratos de trabalho sem prazo ou de contratos de trabalho com prazo incerto, viola claramente o princípio da tipicidade das formas de contrato de pessoal admitidas pelos artigo 7º, nº 2, e 9º do Decreto-lei nº
184/89, de 2 de Junho, e 14º e 18º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Setembro. No mesmo sentido, é clara a divergência entre o regime do artigo 9º do mesmo Decreto-Lei nº 74/73, de 1 de Março, e as regras de publicidade e transparência do procedimento administrativo conducente à celebração dos contratos com Administração Pública que resultam do nº 3 do artigo 9º do Decreto-Lei nº
184/89, de 2 de Junho, e dos artigos 18º e seguintes do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Setembro. Aliás, fácil seria intuir que era assim, uma vez que o próprio preâmbulo do Decreto-Lei nº 302/91 assume isso mesmo quando afirma que 'para a eficácia da gestão da frota de navios do Instituto Nacional de Investigação das Pescas torna-se necessário dotar os mesmos de tripulações competentes e especializadas, para cujo recrutamento não são suficientes os regimes laborais em vigor na função pública, que se não coadunam com a especificidade do trabalho a bordo'.
9 - Finalmente importa referir que a conclusão a que se chegou não é em nada prejudicada pela circunstância de se referir no artigo 2º do Decreto-Lei nº
302/91, de 16 de Agosto, que 'os contratos de trabalho celebrados nos termos do presente diploma não conferem ao particular outorgante qualquer vínculo à administração pública, nomeadamente a qualidade de agente administrativo'. É que
- como, bem, sublinha o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações - não procede a interpretação do quadro normativo delineado pelos Decretos-Lei nºs
184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Setembro, que limite o seu campo de aplicação aos contratos subordinados a um específico regime de direito administrativo, de que decorra a investidura na qualidade de agente administrativo, permitindo-se, livremente, a celebração de contratos submetidos ao regime do contrato individual de trabalho sempre que a administração entenda que as tarefas a desempenhar o justificam. Tal entendimento, que nada legitima, esquece que foi intenção manifesta do legislador - expressa, designadamente, na alínea c) do artigo 15º da Lei nº 114/88, de 30 de Dezembro (já citada), bem como no artigo 43º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Setembro, ao estabelecer que 'a partir da data da entrada em vigor do presente diploma é vedada aos serviços e organismos referidos no artigo 2º a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diferente das previstas no presente diploma' - tipificar exaustivamente as formas permitidas de constituição da relação jurídica de emprego com a Administração Pública.
10 - Por tudo o exposto, é de considerar organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea v) da Constituição (na redacção da Lei Constitucional nº 1/89), o disposto no Decreto-Lei nº 302/91, de
16 de Agosto.
III – Decisão Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, julgando-se organicamente inconstitucionais as normas do Decreto-Lei nº 302/91, de 16 de Agosto, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea v) da Constituição (na redacção da Lei Constitucional nº 1/89). Lisboa, 3 de Março de 1999 José de Sousa e Brito Bravo Serra Guilherme da Fonseca Messias Bento Luís Nunes de Almeida