Imprimir acórdão
Processo n.º 600/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, A., LLC. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional.
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
1. A., LLC., Reclamante na presente reclamação nos termos do artigo 688°, n° 1 do CPC, notificada do despacho de fls. 376/384, que confirmou a não admissão do recurso, vem a fls. 402/407 interpor recurso desse despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70°, n° 1, alínea b) da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro (LTC), formulando esta pretensão nos seguintes termos:
“[…]
12. [Na] reclamação, suscitou [a Reclamante] a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 606° do CC, 26° e 680° do CPC e 40, n° 1, alíneas d), e) e f) do CIRE e 78°, 501° e 503° do CSC, de modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação de Coimbra, em termos de estar obrigado a dela conhecer, tudo nos termos do artigo 72°, n° 2 da LTC.
13. O despacho de [fls. 376/384], ora recorrido, veio aplicar algumas daquelas normas com o sentido normativo ‘que a Recorrente havia reputado de inconstitucional.
14. Designadamente interpretou o artigo 680°, n° 2 do CPC, no sentido de não ser terceiro directa ou efectivamente prejudicado por uma sentença de insolvência ilegal, um credor de um credor da sociedade declarada insolvente;
15. Interpretou as normas contidas no artigo 606° do CC no sentido de não poder ser invocada para legitimar o direito ao recurso, dado não ser admissível a sub-rogação para a prática de actos processuais, como o recurso por um terceiro credor de uma das partes;
16. e no sentido de o direito ao recurso, exercido no âmbito do exercício de um direito de crédito, como meio de conservação da garantia patrimonial do devedor, não ser um direito de conteúdo patrimonial, na acepção do artigo 606° do CC.
17. Interpretou também os artigos 26° do CPC e 40°, n° 1 do CIRE, como não conferindo legitimidade para o recurso, dado não ser admissível a interposição do recurso pelo sub-rogante.
18. Interpretou ainda os artigos 501° e 503° do CSC no sentido de estas normas não resultar a diminuição do património geral da sociedade-mãe em caso de declaração de insolvência, prévia e separada, das sociedades-filhas que integram o património da sociedade-mãe.
[…]
21. Ora, as normas referidas violam o artigo 20° da CRP, por terem como consequência impedirem a interposição de recurso e por isso deixarem sem tutela judicial o direito de crédito dos credores de uma sociedade cujo património era unicamente constituído pelo património das sociedades-filhas e que ficou sem qualquer património em virtude da declaração ilegal de insolvência dessas sociedades-filhas, num caso em que a sociedade-mãe não exerça o seu direito de crédito e restantes direitos de conteúdo patrimonial sobre as sociedades-filhas através da interposição de recurso da sentença de insolvência ilegal, como meio necessário e primeiro à efectivação dos seus direitos.
22. As mesmas normas, por implicarem a subtracção, sem possibilidade de impugnação judicial, de toda a garantia patrimonial de um crédito, tornando-o insusceptível de ser satisfeito, e abrindo essa possibilidade sem que ao credor seja concedido algum tipo de compensação, violam o direito de propriedade privada consagrado no artigo 62° da CRP.
23. Tais normas, por implicarem a exclusão do concurso a um determinado património de credores que tinham direito a essa património, permitindo a sua afectação exclusiva a outros determinados credores, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13° da CRP.
[…]
[transcrição de fls. 404/406]
2. Apreciando a pretensão da Reclamante de interpor um recurso de constitucionalidade reportada ao despacho de fls. 376/384, sublinhar-se-á a ausência de qualquer referência normativa que possamos considerar legitimadora desse recurso, face à forma como a Constituição estrutura o acesso à jurisdição constitucional. Com efeito, o que a Reclamante pretende é, tão-só e indesfarçavelmente, a discussão directa da decisão desta Relação – dos diversos critérios interpretativos empregues no percurso decisório o despacho de fls. 376/384 –, num evidente exercício de um (impossível) “recurso de amparo” ou de “queixa constitucional”, esquecendo que tal possibilidade não está, pura e simplesmente, prevista no nosso ordenamento constitucional, que se estrutura em torno de um “controlo normativo” (v. artigo 280º da Constituição).
É certo que a nossa jurisprudência constitucional admite que este controlo possa reportar-se, na fiscalização concreta, a determinada interpretação normativa, no sentido em que a norma objecto possa ser tomada, “[…] não com o sentido genérico e objectivo, plasmado no preceito (ou fonte) que a contém, mas em função do modo como foi perspectivada e aplicada à dirimição de certo caso concreto pelo julgador”. Todavia, a consideração do imprescindível referencial normativo do recurso, concretamente no caso do recurso da alínea b) do n° 1 do artigo 70° da LTC, não permite que se transforme o próprio acto subsuntivo realizado pela decisão recorrida, no verdadeiro objecto do recurso, através do mero artificio retórico de indicar como objecto do mesmo um conjunto de disposições aplicadas (todas as disposições aplicadas) por essa decisão, referindo-se constituir objecto o recurso essas normas “nessa interpretação”, “na interpretação sufragada na decisão” ou, para usarmos a expressão aqui empregue pela Reclamante, “[a]quelas normas com o sentido normativo que a Recorrente havia reputado de inconstitucional” (item 13. a fls. 404). Com efeito, “suscitações” deste tipo, mais não representam que formas de tornear a inexistência no nosso ordenamento de um “recurso de amparo”, obtendo o mesmo efeito: a discussão da própria decisão recorrida por referência a normas ou princípios constitucionais.
O desvalor deste tipo de “suscitações” tem sido encarado na nossa jurisprudência constitucional, através da recusa de que assim esteja integrado o imprescindível referencial normativo da fiscalização. A título de exemplo, entre muitos possíveis, citaremos o Acórdão n° 530/2005 (Rui Moura Ramos, sublinhando estar aí em causa uma suscitação do tipo da aqui empregue pela Reclamante:
“[…]
A “norma” enunciada desta forma, apresenta uma tal sobreposição com o acto de aplicação (com as diversas opções que se tomam nesse acto de aplicação) que a ideia de isolamento de uma dimensão interpretativa especifica – enquanto expressão, ainda, do carácter normativo da fiscalização – perderia sentido, diluindo-se pura e simplesmente na apreciação do próprio acto de subsunção legal, na sua complexidade.
[…]”
É neste sentido que Carlos Lopes do Rego refere que:
“[…]
[O] recurso de constitucionalidade reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador, exclusivamente imputável à latitude própria da conformação interna de decisão judicial – por ser evidente que as competências e os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional não envolvem seguramente o controlo das operações subsuntivas realizadas pelo julgador.
[…]”
2.1. Revertendo ao caso concreto, parece-nos evidente a completa confusão entre uma suposta aplicação de normas numa determinada interpretação e a simples resolução do caso concreto, através da determinação, face à conjugação de diversos factos e de diversas normas, se a Reclamante dispunha de legitimidade para recorrer de uma sentença declarando a insolvência de uma sociedade da qual a Reclamante não era credora, com base na invocação, por referência ao instituto da sub-rogação, de uma legitimidade indirecta por se credora de uma credora da insolvente. Trata-se, pois, da simples expressão da aplicação do direito a um caso concreto – por sinal num domínio de absoluta neutralidade do texto constitucional –, impossível de apreciar sem ser por via do controlo desse caso concreto. Basta, aliás, ler a enunciação dessa suposta “questão de constitucionalidade”, no texto da reclamação para esta Relação (fls. 25), para se perceber estar em causa – só estar em causa – a apreciação da específica situação da Reclamante, enquanto credora da B., S.A., relativamente à insolvência da C., S.A., nas suas múltiplas e irrepetíveis especificidades:
“[…]
São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 606° do CC, 78°, 501° e 503° do CSC, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais, consagrado no artigo 20°, n° 1 da Constituição, na interpretação que faz o Tribunal a quo no sentido de considerar que a interposição de recurso, em substituição da B., S.A., configuraria, na situação dos presentes autos, o exercício de um direito «estritamente processual» que, por «si só», não seria apto a aumentar o activo ou diminuir o passivo da B., S.A., razão pela qual, não se vislumbrando «o exercício de um qualquer direito de conteúdo patrimonial» seria de concluir pela inadmissibilidade da sub-rogação e consequente ilegitimidade da recorrente.
São também inconstitucionais as normas contidas nos artigos 26° e 680°, n° 2 do CPC e 40°, n° 1, alíneas d), e) e f) do CIRE, na interpretação defendida pelo Tribunal a quo, no sentido de que a recorrente não teria legitimidade para, por via de sub-rogação, interpor recurso da sentença de insolvência nestes autos, por violação do princípio do acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no artigo 20°, n° 1 da Constituição.
[…]”
[transcrição de fls. 25, com sublinhados aqui acrescentados]
3. Assim, nos termos do artigo 76°, n° 1 da LTC, por notória falta e dimensão normativa referencial da questão de inconstitucionalidade pretendida sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional, não se admite o recurso de constitucionalidade pretendido interpor a fls. 402/407 pela Reclamante A., LLC.
2. Na reclamação apresentada junto deste Tribunal, a reclamante veio dizer o seguinte:
1.°
O despacho de que se reclama não admitiu o recurso, com base na “notória falta de dimensão normativa referencial da questão da inconstitucionalidade pretendida à apreciação do Tribunal Constitucional”.
2.°
Vem o presente recurso, agora não admitido, interposto do Despacho proferido dia 14 de Junho de 2010, por ter este procedido à aplicação das normas contidas nos artigos 606.º do Código Civil, 680.°, n.° 2, e 26.° do Código de Processo Civil e 40.º, n.° 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) e 501.0 e 503.° do Código das Sociedades Comerciais (CSC), cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
3.º
Para enquadrar o recurso interposto e não admitido far-se-á uma sumária exposição sobre os factos relevantes.
4.º
A Recorrente é credora da sociedade B., S.A.. Tem, portanto, sobre esta, um direito de crédito.
5.º
A sociedade B., S.A., é uma holding que encabeça um grupo de várias sociedades, com as quais se encontra em relação de domínio total.
6.°
Tratando-se o Grupo B., como todos os grupos societários, de u única organização empresarial, que dispõe de um património global único (embora detido em “cascata”) que vai sendo alocado a umas ou outras sociedades do grupo, conforme o interesse do grupo, isto é, o interesse da sociedade-mãe, o regime legal do grupos societários previu mecanismos destinados a proteger os credores do grupo, seja os da sociedade-mãe, sejam os das sociedades-filhas. Os credores contam, assim com o património da sociedade-mãe, isto é, o património de todo o grupo, como garantia patrimonial geral dos seus créditos.
7.º
As sociedades-filhas da B., S.A., entre as quais a D., S.A., insolvente nos presentes autos, apresentaram-se à insolvência prévia e separadamente da sociedade-mãe, com o que pretenderam extinguir a relação de grupo existente e proceder a uma separação patrimonial violadora do regime dos grupos de sociedades.
8.º
A insolvência das referidas sociedades-filhas foi decretada, o que teve e terá por efeito o esvaziamento de todo o património da holding B. Comercial, na medida m que o património de tais sociedades-filhas – que até então pertencia à sociedade-mãe – será distribuído apenas pelos credores das sociedades filhas, deixando vazia a sociedade-mãe e sem qualquer garantia os credores desta.
9.º
Por ser ilegal a sentença que decretou a insolvência da D., a sociedade-mãe B. Comercial, que também é credora da insolvente, deveria ter recorrido da sentença, como meio de manutenção, na sua esfera patrimonial, do património que integrava a B. Industrial, impedindo o seu total esvaziamento.
10.°
Mas não o fez. Não o tendo feito, a ora Recorrente, em sub-rogação da B. Comercial no exercício dos direitos de conteúdo patrimonial desta sobre D., interpôs recurso da sentença de insolvência da B. Industrial, como meio indispensável de conservação do património da B. Comercial e, logo, da garantia patrimonial do crédito da Recorrente.
11 .°
Uns dias depois da interposição do recurso pela ora Recorrente, a sociedade-mãe, a B. Comercial, apresentou-se, ela própria, à insolvência. O que já de nada serviu, porquanto todo o seu património (detido através das sociedades suas filhas) tinha já sido “congelado” nos separados e prévios processos de insolvência das sociedade filhas e afecto, em exclusivo, aos credores das sociedades filhas. No processo de insolvência da sociedade-mãe já nada existe para distribuir entre os credores, já que se teve o cuidado de se esvaziar, primeiro, a sociedade-mãe em favor dos credores das sociedades-filhas, para só depois se apresentar à insolvência a sociedade-mãe.
12.º
O recurso interposto pela ora Recorrente não foi admitido, por despacho da primeira instância que considerou a Recorrente parte ilegítima, por inadmissibilidade da subrogação. Assim sucedeu nos processos de insolvência das restantes sociedades filhas.
13.º
A Recorrente reclamou para o Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos o artigo 688.° do CPC, por reclamação apresentada via Citius no dia 26 de Abril de 2010.
14.°
Nessa reclamação, suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 606.° do CC, 26.° e 680.°, n.° 2, do CPC e 40.°, n.° 1, alíneas d), e) e f) do CIRE e 78.°, 501.º e 503.° do CSC, de modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação de Coimbra, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tudo no termos do artigo 72,°, n. 2, da LTC.
15.°
O Despacho de 14 de Junho de 2010, ora recorrido, veio aplicar algumas daquelas normas com o sentido normativo que a Recorrente havia reputado de inconstitucional.
16.°
Designadamente, interpretou o artigo 680°, n.° 2. do CPC, no sentido de não ser terceiro directa ou efectivamente prejudicado por uma sentença de insolvência ilegal um credor de um credor da sociedade declarada insolvente;
17.°
Interpretou as normas contidas no artigo 606.° do CC no sentido de não poder ser invocada para legitimar o direito ao recurso, dado não ser admissível a sub-rogação para a prática de actos processuais, como o recurso por um terceiro credor de uma da partes:
18.°
e no sentido de o direito ao recurso, exercido no âmbito do exercício de um direito de crédito, como meio de conservação da garantia patrimonial do devedor, não ser um direito de conteúdo patrimonial, na acepção do artigo 606.° do CC.
19°
interpretou também os artigos 26.° do CPC e 40.°, n° 1, do CIRE, como não conferindo legitimidade para o recurso a quem se sub-rogue àqueles que têm legitimidade para o recurso, dado não ser admissível a interposição do recurso pelo sub-rogante.
20.°
Interpretou ainda os artigos 501.º e 503.° do CSC no sentido de destas normas não resultar a diminuição do património geral da sociedade-mãe em caso de declaração de insolvência, prévia e separada, das sociedades-filhas que integram o património da sociedade-mãe.
21 .°
A desconformidade das referidas normas, assim interpretadas, com a Constituição, foi suscitada pela Recorrente, como se disse, tendo sido apreciada e afastada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Despacho ora recorrido.
22.°
Tendo essa invocação sido feita de modo pormenorizado, com indicação dos preceitos constitucionais violados pela interpretação em causa.
23.°
A Recorrente cumpriu, assim, o ónus de suscitação da desconformidade constitucional das normas dos artigos 606.° do CC, 26.° e 680.°, n.° 2, do CPC e 40.°, n.° 1, alíneas d), e) e f) do CIRE e 501.º e 503.° do CSC, com base nas quais o Tribunal da Relação veio a proferir o Despacho ora Recorrido.
24.°
Ora, as normas referidas violam o artigo 20.° da CRP, por terem como consequência impedirem a interposição de recurso e por isso deixarem sem tutela judicial o direito de crédito dos credores dê uma sociedade cujo património era unicamente constituído pelo património das sociedades-filhas e que ficou sem qualquer património em virtude da declaração ilegal de insolvência dessas sociedades-filhas, num caso em que a sociedade-mãe não exerça o seu direito de crédito e restantes direitos de conteúdo patrimonial sobre as sociedades-filhas através da interposição de recurso da sentença de insolvência ilegal, como meio necessário e primeiro à efectivação dos seus direitos.
25.°
As mesmas normas, por implicarem a subtracção, sem possibilidade de impuggnação judicial, de toda a garantia patrimonial de um crédito, tornando-o insusceptível de ser satisfeito, e abrindo essa possibilidade sem que ao credor seja concedido algum tipo de compensação, violam o direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.° a CRP.
26.°
Tais normas, por implicarem a exclusão do concurso a um determinado património de credores que tinham direito a esse património, permitindo a sua afectação exclusiva a outros determinados credores, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.
27.°
Verificam-se, igualmente, no caso presente, os restantes requisitos da recorribilidade para o Tribunal Constitucional, na medida em que as normas em causa, constantes dos artigos 606.° do CC, 26.° e 680.°, n.° 2, do CPC e 40.°, n.° 1, alíneas d), e) e f) do CIRE e 501.° e 503.° do CSC, foram efectivamente aplicadas, com uma determinada interpretação, no Despacho recorrido, enquanto ratio decidendi da decisão de indeferir a reclamação apresentada, e desse Despacho não cabe recurso ordinário, por não se encontrar prevista pelo artigo 721.º do CPC a possibilidade de recurso de revista do mesmo.
28.°
De tudo e referido parece evidente à Recorrente que não se está a pôr em causa, com a interposição do presente Recurso, qualquer acto de julgamento, mas tão-só a suscita do problema – como a lei lhe admite – de saber se é compatível com o texto constitucional, neste ou em qualquer caso a este semelhante, seja ou não a Recorrente dele parte: (i) interpretar o artigo 680.°, n.° 2, do CPC, no sentido de não ser terceiro directa ou efectivamente prejudicado por uma sentença de insolvência ilegal um credor de um credor da sociedade declarada insolvente; (ii) interpretar as normas contidas o artigo 606.° do CC no sentido de não poder ser invocada para legitimar o direito ao recurso, dado não ser admissível a sub-rogação para a prática de actos processuais, como o recurso por um terceiro credor de uma das partes; (iii) e no sentido de o direito ao recurso, exercido no âmbito do exercício de um direito de crédito, como elo de conservação da garantia patrimonial do devedor, não ser um direito de conteúdo patrimonial, na acepção do artigo 606.° do CC; (iv) interpretar os artigos 26.° do CPC e 40.º, n,° 1, do CIRE, como não conferindo legitimidade para o recurso a quem se sub-rogue àqueles que têm legitimidade para o recurso, dado não ser admissível a interposição do recurso pelo sub-rogante; (v) interpretar os artigos 501.º e 503.° o CSC no sentido de destas normas não resultar a diminuição do património geral da sociedade-mãe em caso de declaração de insolvência, prévia e separada, das sociedades-filhas que integram o património da sociedade-mãe.
29°
É, sim, evidente, pelo contrário, que tais questões dispensam completamente a apreciação especifica da recorrente como credora da B. Comercial, tendo completa dimensão normativa,
30.°
Como de resto já se decidiu em dois casos totalmente análogos ao presente, em que o recurso interposto foi admitido, como sucedeu nos processos 213/10.7T2AVR-E.C1 e 212/10.9T2AVR-C.C1.
3. O requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade tem o seguinte teor:
A., LLC., reclamante no processo identificado, não se conformando com o teor do Despacho, proferido em 14 de Junho de 2010, indeferiu a reclamação apresentada pela ora Requerente ao abrigo do disposto no artigo 688º do Código de Processo Civil (CPC), dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 70º da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro (adiante, Lei do Tribunal Constitucional ou LTC), o que faz nos termos seguintes:
1. Vem o presente recurso interposto do Despacho proferido dia 14 de Junho de 2010 nos autos supra referenciados, por ter este procedido à aplicação das normas contidas nos artigos 606º do Código Civil, 680.°, n.° 2, e 26.° do Código de Processo Civil e 40.°, n.° 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) e 501.° e 503.° do Código das Sociedades Comerciais (CSC), cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
Vejamos:
2. A Recorrente é credora da sociedade B., S.A.. Tem, portanto, sobre esta, um direito de crédito.
3. A sociedade B., S.A., é uma holding que encabeça um grupo de várias sociedades, com as quais se encontra em relação de domínio total.
4. Tratando-se o Grupo B., como todos os grupos societários, de uma única organização empresarial, que dispõe de um património global único (embora detido em “cascata”) sendo alocado a umas ou outras sociedades do grupo, conforme o interesse do grupo, isto é, o interesse da sociedade-mãe, o regime legal dos grupos societários previu mecanismos destinados a proteger os credores do grupo, sejam os da sociedades-mãe, sejam os das sociedades-filhas. Os credores contam, assim, com o património da sociedade-mãe, isto é, o património de todo o grupo, como garantia patrimonial geral dos seus créditos.
5. As sociedades-filhas da B., S.A., entre as quais a D., S.A., insolvente nestes autos, apresentaram-se à insolvência prévia e separadamente da sociedade-mãe, com o que pretenderam extinguir a relação de grupo existente e proceder a uma separação patrimonial violadora do regime dos grupos de sociedades.
6. A insolvência das referidas sociedades-filhas foi decretada, o que teve e terá por efeito o esvaziamento de todo o património da holding B. Comercial, na medida em que o património de tais sociedades-filhas – que até então pertencia à sociedade-mãe – será distribuído apenas pelos credores das sociedades filhas, deixando vazia a sociedade-mãe e sem qualquer garantia os credores desta.
7. Por ser ilegal a sentença que decretou a insolvência da D., a sociedade-mãe B. Comercial, que também é credora da insolvente, deveria ter recorrido da sentença, como meio de manutenção, na sua esfera patrimonial, do património que integrava a B.r Industrial impedindo o seu total esvaziamento.
8. Mas não o fez. Não o tendo feito, a ora Recorrente, em sub-rogação da B. Comercial no exercício dos direitos de conteúdo patrimonial desta sobre a D., interppôs recurso da sentença de insolvência da B. Industrial, como meio indispensável de conservação do património da B. Comercial e, logo, da garantia patrimonial do crédito da Recorrente.
9. Uns dias depois da interposição do recurso pela ora Recorrente, a sociedade-mãe, a B. Comercial, apresentou-se, ela própria, à insolvência. O que já de nada serviu, porquanto todo o seu património (detido através das sociedades suas filhas) tinha já sido “congelado” nos separados e prévios processos de insolvência das sociedades filhas e afecto, em exclusivo, aos credores das sociedades filhas. No processo de insolvência da sociedade-mãe já nada existe para distribuir entre os credores, já que se teve o cuidado de se esvaziar, primeiro, a sociedade-mãe em favor dos credores das sociedades-filhas, para só depois se apresentar à insolvência a sociedade-mãe.
10. O recurso interposto pela ora Recorrente não foi admitido, por despacho da primeira instância que considerou a Recorrente parte ilegítima, por inadmissibilidade da sub-rogação. Assim sucedeu nos processos de insolvência das restantes sociedades filhas.
11. A Recorrente reclamou para o Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artigo 688º CPC, por reclamação apresentada via Citius no dia 26 de Abril de 2010.
12. Nessa reclamação, suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 606.° do CC, 26.° e 680.º, n.° 2, do CPC e 40°, n.° 1, alíneas d), e) e do CIRE e 789º, 501º e 503.° do CSC, de modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação de Coimbra, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tudo nos termos do artigo 72º, nº 2, da LTC.
13. O Despacho de 14 de Junho de 2010, ora recorrido, veio aplicar algumas daquelas normas com o sentido normativo que a Recorrente havia reputado de inconstitucional.
14. Designadamente, interpretou o artigo 680°, n.° 2, do CPC, no sentido de não ser terceiro directa ou efectivamente prejudicado por uma sentença de insolvência ilegal um credor de um credor da sociedade declarada insolvente;
15. Interpretou as normas contidas no artigo 606.° do CC no sentido de não poder ser invocada para legitimar o direito ao recurso, dado não ser admissível a sub-rogação para a prática de actos processuais, como o recurso por um terceiro credor de uma das partes;
16. e no sentido de o direito ao recurso, exercido no âmbito do exercício de um direito de crédito, como meio de conservação da garantia patrimonial do devedor, não ser um direito de conteúdo patrimonial, na acepção do artigo 606.° do CC.
17. Interpretou também os artigos 26.° do CPC e 40°, n.° 1, do CIRE, como não conferindo legitimidade para o recurso a quem se sub-rogue àqueles que têm legitimidade para o recurso, dado não ser admissível a interposição do recurso pelo sub-rogante.
18. Interpretou ainda os artigos 501.° e 503.° do CSC no sentido de destas normas não resultar a diminuição do património geral da sociedade-mãe em caso de declaração de insolvência, prévia e separada, das sociedades-filhas que integram o património da sociedade-mãe.
19. A desconformidade das referidas normas, assim interpretadas, com a Constituição foi suscitada pela Recorrente, como se disse, tendo sido apreciada e afastada pelo Tribunal a Relação de Coimbra, no Despacho ora recorrido.
20. A Recorrente cumpriu, assim, o ónus de suscitação da desconforrnidade constitucional das normas dos artigos 606.° do CC, 26.° e 680°, n.° 2, do CPC e 40.°, n.° 1, alíneas d), e) e f) do CIRE e 501.° e 503.° do CSC, com base nas quais o Tribunal da Relação veio a proferir o Despacho ora Recorrido.
21. Ora, as normas referidas violam o artigo 20° da CRP, por terem como consequência impedirem a interposição de recurso e por isso deixarem sem tutela judicial o direito de crédito dos credores de uma sociedade cujo património era unicamente constituído pelo património das sociedades-filhas e que ficou sem qualquer património em virtude da declaração ilegal de insolvência dessas sociedades-filhas, num caso em que a sociedade-mãe não exerça o seu direito de crédito e restantes direitos de conteúdo patrimonial sobre as sociedades-filhas através da interposição de recurso da sentença de insolvência ilegal, como meio necessário e primeiro à efectivação dos seus direitos.
22. As mesmas normas, por implicarem a subtracção, sem possibilidade de impugnação judicial, de toda a garantia patrimonial de um crédito, tornando-o insusceptível de ser satisfeito, e abrindo essa possibilidade sem que ao credor seja concedido algum tipo de compensação, violam o direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.° da CRP.
23. Tais normas, por implicarem a exclusão do concurso a um determinado património de credores que tinham direito a esse património, permitindo a sua afectação exclusiva a outros determinados credores, viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º Constituição da República Portuguesa.
24. Verificam-se, igualmente, no caso presente, os restantes requisitos da recorribilidade para o Tribunal Constitucional, na medida em que as normas em causa, constantes dos artigos 606º do CC, 26.° e 680°, n.° 2, do CPC e 40.°, n.° 1, alíneas d), e) e do CIRE e 503º do CSC, foram efectivamente aplicadas, com uma determinada interpretação, no Despacho recorrido, enquanto ratio decidendi da decisão de indeferir a reclamação apresentada, e desse Despacho não cabe recurso ordinário, por não se encontrar prevista pelo artigo 721º do CPC a possibilidade de recurso de revista do mesmo.
4. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal veio dizer o seguinte:
1. A., LLG interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida no Tribunal da Relação de Coimbra que lhe indeferiu a reclamação do despacho que, na 1ª instância, não lhe admitira o recurso interposto para aquela Relação, da sentença declaratória da insolvência da C., S.A..
2. O recurso não foi admitido “por notória falta de dimensão normativa referencial da questão de inconstitucionalidade pretendida sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional”.
3. Concordamos com o bem fundamentado despacho de não admissão do recurso, pouco mais tendo a acrescentar ao que aí se afirma.
4. Efectivamente, o que o recorrente questiona no momento processualmente adequado para suscitar a questão da inconstitucionalidade – a reclamação para a Relação – é a não admissibilidade do recurso, por falta de legitimidade, atendendo às concretas circunstâncias que se verificam.
5. Na verdade, pelos excertos transcritos na decisão reclamada – únicos em que, naquela reclamação, se refere a Constituição –, constata-se que aí não vem enunciada uma questão de inconstitucionalidade normativa, com o inerente carácter de generalidade e abstracção.
6. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. O despacho reclamado indeferiu o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade por “notória falta de dimensão normativa referencial da questão de constitucionalidade pretendida sujeitar à apreciação do Tribunal Constitucional”.
Na sua reclamação, a reclamante afirma ter suscitado a questão de constitucionalidade das normas que vêm indicadas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade na reclamação para o Tribunal da Relação de Coimbra do despacho que não lhe havia admitido o recurso para esse Tribunal (pontos 21.º a 23.º da reclamação).
Mais afirma a reclamante verificar-se no caso presente os restantes requisitos da recorribilidade para o Tribunal Constitucional, explicitando que as referidas normas foram efectivamente aplicadas enquanto ratio decidendi da decisão de indeferir a reclamação apresentada. Além disso, refere a reclamante que desse despacho não cabe já recurso ordinário (ponto 27.º da reclamação).
Assim articuladas as razões por que, verificando-se os requisitos da sua admissibilidade, deve o recurso de constitucionalidade ser admitido, conclui a reclamante parecer evidente não se estar a pôr em causa, com a interposição do presente recurso, qualquer acto de julgamento, mas antes verdadeiras questões de constitucionalidade normativa (ponto 28.º da reclamação).
Afirma, por último, a reclamante, que assim enunciadas as questões, as mesmas dispensam completamente a apreciação específica da recorrente, ora reclamante, como credora da B. Comercial, tendo completa dimensão normativa (ponto 29.º da reclamação).
Não tem razão a reclamante.
Desde logo, importa ter presente que o fundamento oferecido no despacho reclamado para a não admissão do presente recurso de constitucionalidade foi apenas o da falta de dimensão normativa das questões de constitucionalidades submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional, ou seja, o da inidoneidade do objecto do recurso.
Tal significa que sobre as considerações que a reclamante, na sua reclamação, vem fazer a propósito da verificação dos demais pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade – designadamente, (i) suscitação prévia, de modo processualmente adequado, das questões de constitucionalidade; (ii) sua efectiva aplicação na decisão recorrida; e (iii) exaustão dos recursos ordinários –, na medida em que sobre a eventual não-verificação de algum desses pressupostos não chegou o despacho ora reclamado a tomar posição, só teria o Tribunal Constitucional que pronunciar-se, considerando o disposto no n.º 4 do artigo 77.º do LTC, na hipótese de revogação do despacho reclamado.
Simplesmente, é de manter na íntegra o fundamento oferecido no despacho reclamado para a não admissão do presente recurso de constitucionalidade.
A delimitação das interpretações normativas dada aos preceitos indicados no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não constitui objecto idóneo para efeitos de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, na medida em que não contém uma vocação de generalidade e abstracção na enunciação dos critérios normativos que lhe estão subjacentes, autonomizáveis da pura actividade subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades específicas do caso concreto e, portanto, passíveis de controlo jurídico-constitucional.
Tal parece ser reconhecido pela própria reclamante, na medida em que, na reclamação ora apresentada, vem, no seu ponto 28.º, enunciar as questões de constitucionalidade de forma diferente relativamente ao que havia feito quer na reclamação apresentada perante o Tribunal da Relação de Coimbra quer no próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
E não se diga que, como pretende a reclamante, não obstante a formulação inicialmente feita dessas questões, é evidente que as mesmas dispensam a apreciação específica das circunstâncias do caso concreto.
Desde logo, não cabe aos tribunais, aí se incluindo o Tribunal Constitucional, proceder à delimitação do objecto do recurso de constitucionalidade, sendo esse um ónus do recorrente.
Além disso, e ao contrário do que afirma a reclamante, o que é evidente é, não a dimensão normativa das questões suscitadas, mas, antes pelo contrário, tal como, aliás, ficou exemplarmente demonstrado no despacho reclamado a cuja fundamentação se adere, que a recorrente, ora reclamante, pretende a simples resolução do caso concreto através da determinação, face à conjugação de diversos factos e de diversas normas, se a mesma dispunha de legitimidade para recorrer de uma sentença declarando a insolvência de uma sociedade da qual não era credora, com base na invocação, por referência ao instituto da sub-rogação, de uma legitimidade indirecta por ser credora de uma credora insolvente.
Sendo evidente que o que está verdadeiramente em causa é a apreciação da específica situação da recorrente, ora reclamante, enquanto credora da B., S.A., é manifesta a inididoneidade do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Inexistindo entre nós a figura do recurso de amparo ou outra equivalente, não tem o Tribunal Constitucional competência para conhecer de recurso que tenha como objecto não uma questão de constitucionalidade normativa mas a própria decisão judicial.
Tanto basta para que se não possa conhecer do recurso de constitucionalidade.
III – Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado que não admitiu o recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 27 de Outubro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.