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Proc. nº 642/92 ACÓRDÃO Nº 508/96
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A, ex-presidente do Conselho de Administração da B, S.A., requereu ao Supremo Tribunal Administrativo a suspensão da eficácia da Portaria nº 218-A/92 (D.R., II Série, de 9-07-1992) por que o Secretário de Estado do Tesouro revogara a autorização que essa sociedade detinha para exercer qualquer actividade de intermediação em valores mobiliários e nomeara o presidente da comissão liquidatária.
No sentido de que fosse decretada aquela providência de suspensão da eficácia do acto administrativo, o requerente suscitou, desde logo, a inconstitucionalidade da norma do artigo 627º, nº 4, do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, norma que, por determinar que 'No recurso das decisões referidas no presente artigo não é admitida a suspensão de eficácia do acto', considerou contrária aos artigos 20º, nº 1, 268º, nº 4, e 13º da Constituição da República.O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 26 de Agosto de 1992, indeferiu por ilegal o pedido formulado, de suspensão de eficácia do acto administrativo. Essa decisão construiu-a sobre uma tese de não inconstitucionalidade da norma impugnada do artigo 627º, nº 4, do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, que assim manteve como parâmetro regulador.
É desse acórdão que o ex-presidente da B interpôe recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro. O objecto do recurso delimita-o na norma do artigo
627º, nº 4, do Código do Mercado dos Valores Mobiliários. E, em alegações, conclui assim:
'a) A norma constante do nº 4 do artigo 627º do Código do Mercado dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de Abril,
é materialmente inconstitucional, por violação no disposto nos artigos 20º, nº
1, e 268º, nº 4, da Constituição da República, integrados pelo artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
b) É também materialmente inconstitucional por infringir o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da lei fundamental'.
O Secretário de Estado do Tesouro contra-alegou no sentido do não provimento do recurso. Contra-alegou, ainda, no mesmo sentido, a Comissão Liquidatária da B, afirmando, antes, a sua qualidade de representante da massa em liquidação, nos termos do artigo 21º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei nº 30 689, de 27 de Agosto de 1940 [por haver sucedido ao comissário do Governo] e também reputando de obscuras as conclusões do recorrente.
II - A fundamentação
No Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei nº 142-A/91, de 10 de Abril, o Título V ('Dos intermediários financeiros'), Capítulo II ('Da autorização e registo') inclui o artigo 627º, a determinar a competência e formalidades para a revogação da autorização de que, segundo o mesmo Código, depende o exercício das actividades de intermediação em valores mobiliários. Dispõe assim:
Artigo 627º (Competência e formalidades da revogação)
1 - A revogação será decidida pela entidade que, à data em que deva decretar-se, seja competente, nos termos dos artigos 615º e 616º, para a concessão da autorização em causa, e será precedida de parecer emitido, no
âmbito das suas atribuições, pelo Banco de Portugal e pela CMVM, quando a referida competência pertencer ao Ministro das Finanças, ou apenas por uma dessas entidades, quando, ao abrigo do artigo 616º, houver sido delegada na outra, e, em qualquer caso, de parecer do respectivo governo regional, se o intermediário financeiro tiver a sua sede numa região autónoma.
2 - Os pareceres a que se refere o número anterior devem ser emitidos no prazo de 15 dias.
3 - A decisão de revogação será adequadamente fundamentada, e, quando for da competência do Ministro das Finanças, revestirá a forma de portaria.
4 - No recurso contencioso das decisões referidas no presente artigo não é admitida a suspensão de eficácia do acto.
É a norma transcrita do nº 4 que aqui se constitui em objecto do recurso de constitucionalidade. O recorrente confronta-a por modo claro [ao invés do que a Comissão Liquidatária sugere em contra-alegações] com as garantias do acesso à justiça e do recurso contencioso e também com o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrados (CRP, artigos 20º, nº 1, 268º, nº
4, e 13º).
2. Que a norma impugnada do artigo 627º, nº 4, do C.M.V.M. afronta o princípio da igualdade resulta, desde logo, do confronto no sistema com o artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Este preceito determina no nº 1 que 'a suspensão da eficácia do acto recorrido é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos: a) a execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso; b) a suspensão não determine grave lesão do interesse público; c) do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade da interposição do recurso (...)'- e constitui-se, com as demais que formam o instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos (cf., no Capítulo VII, Secção I, da L.P.T.A., os artigos
77º a 81º) em garantia geral de atribuição de uma competência aos cidadãos de acesso ao Tribunal para impedir os efeitos desproporcionados advenientes da execução de actos administrativos.
Ora, a eliminação pelo legislador daquela competência para um determinado número de casos, o que é dizer, a eliminação daquela competência para um determinado universo de sujeitos carece de uma justificação racional. Independentemente de saber se a suspensão de executoriedade dos actos administrativos vai inextrincavelmente ligada à fundamentalidade da garantia do recurso contencioso, ideia que na jurisprudência constitucional vem sendo avançada na forma de votos de vencido (cf. as declarações de votos dos Conselheiros Luís Nunes de Almeida, José de Sousa e Brito e Mário de Brito no acórdão nº 173/91, D.R., de 6-9-1991), a norma em apreço exige uma análise no sentido da igualdade.
É então necessário indagar do fundamento por que a norma do artigo
627º, nº 4, do C.M.V.M. retira aos intermediários financeiros a que se dirige aquela mesma garantia de suspensão que o sistema já consagra no regime-regra do contencioso administrativo. Aí não vale, como é evidente, o fundamento do interesse público. É que nesse mesmo regime-regra o interesse público é precisamente um dos dados que a lei impõe à ponderação do juiz para o decretamento da providência da suspensão.
A pergunta é antes a de se o legislador, ao criar a norma impugnada do artigo 627º, nº 4, do C.M.V.M., teve razões bastantes para afastar por via dela o juízo do Tribunal sobre a 'proporcionalidade' dos efeitos que se derivam da execução do acto administrativo. Esta ideia de 'justa medida' (Larenz), que está implicada na ideia de justiça, e se avalia normalmente na ponderação concreta das circunstâncias do caso, retém-na o legislador na norma do artigo
627º, nº 4, através de um pré-juízo próprio e decisivo sobre os efeitos do acto administrativo.
E, no entanto, não se vê na norma ou no seu contexto um qualquer fundamento material capaz de justificar o 'regime específico' de anulação do acesso à providência da suspensão que aí intersecta a incidência do regime geral do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Com isto, reitera-se, não se supõe necessariamente um qualquer pressuposto de vinculação constitucional originária do legislador à produção de um instituto de suspensão da eficácia dos actos administrativos. Esse problema - que pode ter arrimo em certas possibilidades interpretativas da garantia constitucional de recurso contencioso (C.R.P., artigos 20º, nº 1, e 268º) ou mesmo da garantia constitucional da proporcionalidade das intervenções da Administração agressiva (C.R.P., artigo 2º e artigo 18º) - não tem que resolver-se no presente recurso de constitucionalidade.
Do que aqui se trata, afinal, é de saber se, uma vez inserida no sistema jurídico, por decisão legislativa, a garantia da providência de suspensão, uma outra decisão legislativa é livre de a retirar sem justificação racional a um certo grupo de cidadãos. A resposta é negativa, em razão do princípio da igualdade.
Tal não significa a negação do primado político do legislador
(Bachof) e o poder de revisão que naturalmente lhe vai ligado. O julgamento de constitucionalidade apenas se confronta, aqui, com o problema dos limites negativos da liberdade da lei e esses limites moldam-se sobre a proibição constitucional do arbítrio.
Então - e para seguir de perto a metódica do acórdão nº 576/94
(inédito) - o índice ou sinal mais claro e decisivo do arbítrio esá 'na desproporção ou inadequação da regulamentação legal à situação fáctica a que quer aplicar-se' (acórdão da Comissão Constitucional nº 458, Apêndice ao D.R., de 23-8-83, pág. 118). A decisão normativa deve denotar um equilíbrio mínimo entre a intensidade com que se concretiza um desvio ao regime-regra e a eficácia que é capaz de obter no âmbito de realidade a que se dirige.
Para além da consideração dos factos, o método de controlo implica o recurso à ordem constitucional de valores e à sua projecção complexa nas situações de vida reguladas pela norma, à ponderação de exigências eventualmente contrapostas, à interacção sistemática de normas 'concorrentes' no sistema.
A necessidade de reprimir os 'abusos de poder económico' e as
'práticas lesivas do interesse geral' e, por via disso, defender a confiança no mercado financeiro - que se pretenderá acautelar com a norma impugnada do artigo
627º, nº 4, do Código do Mercado dos Valores Mobiliários -, não se constitui aqui num 'aliud' relativamente aos pressupostos do artigo 76º da L.P.T.A., numa justificação 'marginal' aos índices que aí a lei determina à ponderação do juiz. Aquela norma consubstancia assim um regime específico que se não suporta em nenhuma especificidade [cf., porém, em sentido diferente, o acórdão nº 106/95, D.R., II Série, de 19-06-1995].
E isso é tão mais evidente quanto o que afinal neste plano da providência da suspensão de eficácia dos actos administrativos realização do princípio constitucional-material da proporcionalidade.
III - Nestes termos, decide-se:
Julgar inconstitucional a norma do artigo 627º, nº 4, do C.M.V.M., por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República, assim concedendo provimento ao recurso.
Lisboa, 21 de Março de 1996
Ass) Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto)
Votei vencido quanto à decisão maioritária constante do acórdão que antecede, pelos fundamentos seguintes:
A sociedade recorrente questionou, desde logo, a conformidade constitucional do preceito do nº 4 do artigo 627º do Código do Mercado dos Valores Mobiliários (CMVM), onde se determina que 'no recurso das decisões referidas no presente artigo não é admitida a suspensão de eficácia do acto', considerando tal norma como violadora dos artigos 20º, nº 1, 268º, nº 4 e
13º da Constituição da República.
A decisão maioritária julgou tal norma inconstitucional apenas com fundamento na violação do princípio da igualdade (artigo 13º), não chegando, por isso, a considerar o fundamento da garantia de acesso à justiça e do recurso contencioso apenas se lhe referindo para dizer que era essa a posição assumida no âmbito das declarações de vencimento.
O acórdão considera que a eliminação da possibilidade de requerer a suspensão de eficácia de um acto relativamente a um determinado universo de sujeitos, quando a lei geral do processo nos tribunais administrativos a admite, verificados que sejam certos pressupostos, 'carece de uma justificação racional'.
A norma questionada insere-se no âmbito da 'competência e faculdades de revogação' da autorização de que depende, nos termos do artigo
615º, nº 1, do mesmo Código, 'o exercício das actividades de intermediação em valores mobiliários mencionado no artigo 608º', tornando legalmente inadmissível o pedido de suspensão de eficácia do acto que revogue a autorização do exercício de tal actividade de mediação de valores mobiliários.
Admitindo-se - como admite o acórdão - que 'não se supõe necessariamente um qualquer pressuposto de vinculação constitucional originária do legislador à produção de um instituto de suspensão de eficácia dos actos administrativos', - isto é, não sendo o legislador ordinário constitucionalmente obrigado a criar o instituto da suspensão de eficácia, então, a violação da lei fundamental só poderá assentar na violação do princípio da proibição do arbítrio.
É que a consagração legislativa geral do instituto, na falta de uma vinculação constitucional, não pode servir para inconstitucionalizar a sua não consagração em certos casos; não pode partir-se da lei para a erigir em princípio constitucional - que não é - e dele fazer derivar a violação. A liberdade do legislador, na ausência de imposição constitucional apenas pode ter como limite, a proibição do arbítrio.
Ora, no caso dos autos, a norma insere-se no domínio da intermediação dos valores mobiliários sector em que a prossecução do interesse público se concretiza numa intervenção do Estado que seja eficaz contra todas as práticas lesivas do interesse geral de todos quantos, activa ou passivamente, participam ou realizam o mercado mobiliário, cuja segurança e confiança são valores inestimáveis.
A diferenciação legislativa justifica-se por, nas situações contempladas na norma questionada, se encontrarem imediatamente postos em crise interesses públicos relevantes, a ponto de reclamarem, no plano dos
'impulsos legislativos' (terminologia de Gomes Canotilho) protecção mais acentuada e vigorosa (cfr. acórdão nº 106/95, adiante em transcrição parcial).
O princípio da igualdade exige que as situações essenciais e iguais sejam tratadas de modo igual e situações diferenciadas tenham um tratamento diverso, apenas existindo violação de tal princípio quando, sem fundamento material, se tratem de modo diferente situações idênticas.
E, no caso existe este fundamento material que permite o tratamento diferenciado da situação.
Neste sentido se escreveu no Acórdão nº 106/95, (in Diário da República, II Série, de 19.06.95) o seguinte:
'A solução consagrada na norma sub iudicio não é, assim, arbitrária, pois a proibição de suspensão de eficácia da classe de actos administrativos abrangidos por ela, embora seja uma disciplina que contrasta com a que a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos consagra para a generalidade dos actos administrativos, tem a justificá-la razões que não concorrem, em geral, quanto a esses outros actos. Razões que, de resto, são particularmente ponderosas, pois que se trata de, em cumprimento de uma incumbência constitucional [cf. artigo 81º, alínea e)], «reprimir os abusos do poder económico» e «práticas lesivas do interesse geral», de forma eficaz e pronta - o que é essencial para que o mercado possa funcionar de acordo com regras claras e para que a economia seja posta ao serviço do bem comum.'
Assim, pelas razões expostas, não acompanho a decisão votada pela maioria do Tribunal.
Luis Nunes de Almeida (vencido quanto à fundamentação, por entender que a inconstitucionalidade da norma em apreço radica na violação do artigo 20º, nº 1, da CPP, pelas razões constantes da declaração de voto junta ao Acórdão nº 173/91)