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Proc.Nº 215/96
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1.-.- E. e mulher, M. propuseram pelo Tribunal Judicial da Comarca do Funchal uma acção com processo sumário contra N. e H. pedindo que fosse decretada a remição do contrato de arrendamento relativo ao prédio que identificam, fixando-se o preço a pagar aos Réus. Após a contestação destes, foi proferido despacho saneador que decidiu julgar extinta a instância por os autores não terem juntado um exemplar do contrato de arrendamento invocado.
Notificados desta decisão, os autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pretendendo a revogação da decisão recorrida e a prolação de um despacho que ordene o prosseguimento da acção, uma vez que entendiam que, no caso em apreço, não era exigível a apresentação do contrato de arrendamento.
A Relação, por acórdão de 2 de Maio de 1995, decidiu negar provimento ao recurso, pois, nos termos do nº1 do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, os arrendamentos rurais são obrigatoriamente reduzidos a escrito, aplicando-se essa disposição legal aos contratos existentes antes da entrada em vigor daquele Decreto-Lei a partir de 1 de Julho de 1989, por força do nº3 do artigo 36º do mesmo diploma legal. Ou seja, todos os contratos de arrendamento rural, ainda que já existentes à data da entrada em vigor daquele Decreto-Lei, terão, a partir de 1 de Julho de 1989, de estar reduzidos a escrito (vide, neste sentido o acórdão da Relação do Porto, de 4-10-1990, Col.Jur.,XV,4,224, citado por Aragão Seia, Costa Calvão e Cristina Aragão Seia, in Arrendamento Rural, 2ª edição, págs. 17 e 18). De acordo com este entendimento, nenhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, se este for exigível, como é no caso dos autos, a não ser que se alegue logo na petição inicial que tal falta é imputável aos réus, o que não aconteceu.
2.- Notificada aos autores esta decisão, não se conformaram com ela, tendo interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Neste Tribunal, os autores e recorrentes apresentaram alegações em que formularam as seguintes conclusões:
'I - O acórdão recorrido não se pronunciou sobre as questões postas nas duas primeiras conclusões das alegações de fls. 76 e segs., sendo nulo por omissão de pronúncia (Cód. Proc.Civ., arts. 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº1).
II)- A norma do artigo 35º,nº.2, do Decreto-Lei-nº385/88, de 25 de Outubro, não
é aplicável à acção para tornar efectivo o direito de remição consignado no artigo 5º, nº1,do Decreto-Lei nº547/74, de 22 de Outubro, mas unicamente à acção real de preferência e às acções pessoais, para tornar efectivos direitos de crédito, previstas no diploma em primeiro lugar indicado.
III) E a Portaria nº489/77,de l de Agosto, que na sequência do Decreto-Lei nº566/75, de 19 de Setembro, mandou seguir a forma do processo sumário no exercício do mencionado direito de remição está ferida de ilegalidade.
IV).- Com a revogação, pelo artigo 20º da Lei nº76/79,de 3 de Dezembro, do artigo 49º da Lei nº76/77, de 29 de Setembro, operou-se a convalidação do arrendamento invocado pelos autores, não sendo assim exigível, neste caso, a apresentação de um exemplar desse contrato, nos termos do artigo 36º, nº.5, do citado Decreto-Lei nº385/88,contrariamente ao que se decidiu nas instâncias.
V) Por último, a norma do artigo 36º. nº3 deste último diploma legal quando fosse interpretada no sentido de abranger o caso sub judice que ficou convalidado com a revogação do artigo 49º. da Lei nº.76/77., pelo artigo 2º, da Lei nº 76/79. seria inconstitucional, porque contrária ao princípio do Estado de direito consignado no artigo 2º da Constituição, em que se inclui o princípio da protecção da confiança dos cidadãos.'
3.- O STJ, por acórdão de 9 de Janeiro de 1996, veio a negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Esta decisão fundamentou-se essencialmente no seguinte encadeamento argumentativo:
'E para começar, vejamos se, na hipótese, é exigível um exemplar do contrato.
O citado nº 5 do artigo 35º dispõe: Nenhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se defina que a falta é imputável à parte contrária.
E o artigo 3º, nº 1 do dito Dec.Lei 385/88 preceitua: Os arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo, são obrigatoriamente reduzidos a escrito.
..E, por sua vez, o artigo 36º ainda do mesmo diploma estabelece:
1- Aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito.
..............................................
3- O novo regime previsto no artigo 3º da presente lei apenas se aplicará aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor a partir de 1 de Julho de
1989.
..Da conjugação destes preceitos (arts. 3º, nº 1 e 36º nºs 1 e 3) decorre que, a partir de 1/7/89, todos os contratos de arrendamento rural, mesmo os já existentes à data do início de vigência do Dec.-Lei 385/88, têm de estar reduzidos a escrito.
Estamos ante uma aplicação retroactiva da lei, muito embora ao arrepio da regra básica expressa nos artigos 12º, nº 1 do C.Civil, segundo a qual 'a lei só dispõe para o futuro', mas o certo é que nada obsta a que as normas transitórias de qualquer diploma legal, como acontece com este Dec.-Lei 385/88, atribuam eficácia retroactiva a um ou outro dos seus preceitos, dado que o princípio da não retroactividade da lei não tem assento na Constituição vigente (Pires de Lime e Antunes Varela, C.C. Arest.,Vol.I, 4ª ed., 61; Antunes Varela, R.L.J.
114º, 15 e 16, 120º, 108º, 128º, 143º; J. Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, ed. de 1968, 56º, ac. do S.T.J. de 26/2/80, B.M.J.
294º, 327).
É, pois, exigível o exemplar do contrato e porque este não foi junto nem foi alegado que a sua falta era imputável à parte contrária, forçoso é concluir que a presente acção não pode ser recebida ou prosseguir e há lugar à extinção da instância, nos termos do transcrito nº 5 do artigo 35º (Pires de Lima e Antunes Varela C.C.Arest., Vol.II, 2ª ed. 473 e 3ª ed. 437 e 512; Aragão Seia, Costa Calvão, Cristina Aragão Seia, Arrendamento Rural, 2ª ed., 18, 153, 163; acs.da Rel. Porto de 4/10/90, 29/1/91 e 21/10/91 e da Rel. de Évora de 7/11/91, in, respectivamente, C.J. 1990, T IV, 224, 1991, T I, 243, 1991, T IV, 264 e 1991, T V, 241).
E não se diga, como os recorrentes fazem, que, por ter sido revogado o artigo
49º da Lei 76/77 pelo artigo 2º da Lei 76/79, os contratos de arrendamento celebrados antes do início de vigência da Lei 76/77 deixaram de estar sujeitos à exigência de forma escrita, pelo que estaria consolidado o contrato de arrendamento rural em causa, celebrado como foi em 1/4/54.
Existiu tal revogação, é certo, mas, a seguir, veio o Dec.-Lei 385/88 estabelecer um regime jurídico diferente, segundo o qual, como acima se disse, todos os contratos de arrendamento rural têm de estar obrigatoriamente reduzidos a escrito a partir de 1 de Julho de 1989.'
No que se refere à questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes, o acórdão invoca a doutrina expendida pelo Tribunal Constitucional para concluir no sentido de que a retroactividade decorrente dos preceitos em causa não atenta, ao menos de forma intolerável ou irrazoável, contra o princípio da protecção da confiança dos cidadãos, já que como tal não pode ser olhada a exigência da redução a escrito de um contrato, antes válido não obstante ter sido verbalmente celebrado, para o efeito de viabilizar uma acção em juízo, tanto mais que para ultrapassar esse obstáculo lhe teria bastado notificar a outra parte para reduzir a escrito tal contrato e, em caso de recusa, articular isto mesmo.
O acórdão depois de questionar-se sobre se o nº 5 do artigo 35º se aplica à presente acção, e de dar conta da possibilidade de uma resposta negativa, adianta os fundamentos para uma resposta positiva e que são os seguintes: 'Como todos sabem, uma acção identifica-se pelo pedido e pela causa de pedir (cfr. artº 498º do C.P.Civil).No caso sub judice, a causa de pedir é o contrato de arrendamento rural celebrado no condicionalismo previsto no artigo
1º do citado Dec.-Lei nº 547/74 e o pedido é a aquisição da propriedade da terra pelo pagamento do preço a fixar, assim se remindo o contrato. Está, pois, em jogo a existência de um contrato de arrendamento rural, a causa de pedir é uma relação de arrendamento, e quando tal sucede, não podemos deixar de estar perante uma acção referente a arrendamento rural, o que já não aconteceria se estivesse em causa o direito real de propriedade ou a responsabilidade civil extracontratual. Daí que esta acção esteja abrangida pelo nº 2 do artigo 35º ao dizer 'os restantes processos judiciais referentes a arrendamentos rurais... e pelo nº 5 do mesmo artigo quando refere 'nenhuma acção judicial'. A letra deste nº 5 do artigo 35º não faz qualquer excepção e está em termos absolutos que favorecem a preconizada interpretação. Depois, não se vê razão válida para sujeitar esta acção de remição do contrato de arrendamento rural, em que a causa de pedir é o arrendamento rural no já apontado condicionalismo, a um regime diferente, no capítulo da exigência da junção do exemplar do contrato, do dos outros processos referentes ao arrendamento rural, como sejam a acção de preferência (artº 28º do Dec.-Lei nº 325/88) e os restantes processos. Na verdade, em todos esses processos, há necessidade de averiguar da existência do contrato de arrendamento rural e de o interpretar e executar, muito embora o objecto da presente acção seja a aquisição do direito de propriedade sobre a terra arrendada no falado condicionalismo, mediante o pagamento de um preço.'
4. - Notificados desta decisão, os autores e recorrentes apresentaram um requerimento em que arguiram a nulidade do acórdão, por se ter pronunciado sobre matéria de facto e, antes mesmo de o STJ se pronunciar sobre esta questão, os autores vieram interpôr recurso, por requerimento de 25 de Janeiro de 1996, para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a constitucionalidade das normas dos artigos 3º,nº1 e 36º, nº1 do Decreto-Lei nº
385/88, de 25 de Outubro, por violação do artigo 101º da Constituição e do artigo 36º, nº3 do mesmo diploma, na interpretação da decisão recorrida, por violação do princípio da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição.
5. - Os autos foram remetidos para este Tribunal, mas tendo-se verificado não ter sido decidido o incidente de nulidade, remeteram-se, de novo ao STJ, e tendo ali sido proferido o acórdão de 30 de Abril de 1996 que indeferiu tal arguição, os autores renovaram a pretensão de interpor recurso de constitucionalidade, dando por reproduzido o conteúdo do anterior requerimento, pelo que os autos foram enviados ao Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, foram produzidas as alegações, que os recorrentes finalizaram com as seguintes conclusões:
'I) O acórdão recorrido, assim como as decisões das instâncias aplicaram no caso em apreço a norma do nº5 do artigo 35º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro.
II)-Mas a norma em referência está ferida de inconstitucionalidade material porque ofende o preceituado no artigo 99º,nº1,da Constituição (revisão de 1989) e 101º, nº1 (revisão de 1982), com referência ao artigo 96º,nº1, alínea b).
III)- Por outro lado, fez-se ainda aplicação do artigo 36º, nº1, do citado Decreto-Lei nº385/88;
IV) No entanto a retroactividade atribuída ao artigo 35º, nº1, do mesmo diploma legal, no caso em apreço, em que há um arrendamento rural anteriormente convalidado, ofende o principio do Estado de direito, considerado na vertente de protecção da confiança dos cidadãos.
V) Daí também a inconstitucionalidade material do citado artigo 36º, nº1, do Decreto-Lei nº. 385/88.'
Pelo seu lado, os réus e recorridos, apresentaram as suas alegações sem, todavia, autonomizarem as conclusões, mas defendendo a manutenção do decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
6.- O recurso em apreço foi interposto ao abrigo do preceituado nos artigos 280º, nº1, alínea b) da Constituição e 70º, nº1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. São admissíveis os recursos interpostos nestes termos no caso de se verificarem, juntamente com outros requisitos, os que a seguir se identificam:
- que a inconstitucionalidade da norma tenha sido previamente suscitada pelo recorrente durante o processo;
- que essa norma venha a ser aplicada na decisão, constituindo um dos seus fundamentos normativos.
Este Tribunal vem entendendo o primeiro dos mencionados requisitos - suscitação durante o processo - por forma que ele deva ser tomado não num sentido puramente formal - tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância -, mas num sentido funcional - tal que a arguição da inconstitucionalidade deverá ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão. Deve, portanto, a questão da constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal a quo sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.
Quanto ao segundo requisito, importa referir que a norma cuja inconstitucionalidade for suscitada durante o processo tem de ser fundamento normativo da decisão recorrida e aplicada na sequência do não atendimento da arguição de inconstitucionalidade.
Delineados os princípios relativos aos requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, importa averiguar se estão preenchidos no caso dos autos.
Vejamos.
Os recorrentes, no seu requerimento de interposição do recurso limitam o objecto do recurso de constitucionalidade à apreciação das normas dos nºs 1 dos artigos 3º e 36º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, por violação do artigo 101º da Constituição e também da norma do nº 3 do artigo 36º daquele diploma, na interpretação feita na decisão recorrida, por violação do princípio da confiança.
Porém, nas alegações que apresentaram neste Tribunal, os recorrentes suscitam já uma nova questão de inconstitucionalidade, a da norma do nº5 do artigo 35º do Decreto-Lei nº 385/88 referido, questão que os recorrentes tinham suscitado na 1ª instância, mas que deixaram cair posteriormente.
Ora, por um lado, a questão da constitucionalidade das normas dos artigos 3º,nº1, e 36º, nº1, do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, por violação do preceituado no artigo 101º da Constituição da República Portuguesa
(adiante, CRP) apenas foi suscitada no próprio requerimento de interposição do recurso, momento este que não é já adequado a tal suscitação por forma válida, nos termos da posição jurisprudencial do Tribunal Constitucional atrás exposta; por outro lado, a questão da constitucionalidade do nº5 do artigo 35º do Decreto-Lei nº 385/88 não foi posta à consideração do tribunal recorrido, pois, suscitada ante o tribunal de 1ª instância foi deixada cair e apenas recuperada na alegações dos recorrentes apresentadas neste Tribunal, pelo que sobre tal matéria o tribunal recorrido não teve qualquer possibilidade de se pronunciar.
Assim, não podendo conhecer-se destas duas questões, por não se verificar o requisito de admissibilidade consistente na sua dedução durante o processo, o objecto do processo reduz-se à questão da constitucionalidade da norma do nº3 do artigo 36º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, interpretada no sentido de abranger o caso sub judice, que ficou convalidado com a revogação do artigo 49º da Lei nº 76/77, pelo artigo 2º da Lei nº 76/79. Tal norma seria inconstitucional, porque contrária ao princípio do Estado de direito, consignado no artigo 2º da Constituição, em que se inclui o princípio da protecção da confiança dos cidadãos (cfr. a conclusão V das alegações dos recorrentes, já transcrita).
Portanto, a questão objecto do recurso é a inconstitucionalidade da norma do nº3 do artigo 36º do Decreto-Lei nº 385/88, interpretado de modo a conceder-lhe eficácia retroactiva por forma a abranger contratos de arrendamento rural convalidados, impondo a tais contratos existentes à data da entrada em vigor de tal diploma a obrigatória redução a escrito, por violação o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2º da CRP).
7. - A norma do artigo 36º, nº3, do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, estabelece o seguinte:
Artigo 36º
Âmbito de aplicação da presente lei
1 - Aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito.
2 - .............................................. 3 - O novo regime previsto no artigo 3º da presente lei apenas se aplicará aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor a partir de 1 de Julho de 1989.
5.- ............................................... 6-
................................................
Assim, a norma objecto do presente recurso é uma norma complexa segundo a qual ao arrendamento rural existente à data da sua entrada em vigor
(30 de Outubro de 1988) é aplicável o regime dessa lei, sendo, porém, tais contratos obrigatoriamente reduzidos a escrito apenas a partir de 1 de Julho de
1989, questionando-se a conformidade constitucional de tal norma na medida em que consagra a obrigatoriedade de redução a escrito relativamente a contratos celebrados ao abrigo de preceitos anteriores sendo que, segundo os recorrentes, no caso, estaremos perante um contrato de arrendamento verbal convalidado.
Relativamente a este preciso aspecto, importa referir que a decisão recorrida, tal como decorre da transcrição atrás feita (cfr. ponto 3 do acórdão) não qualificou dessa maneira o contrato em causa. Trata-se, porém, de questão que está para além dos poderes de cognição deste Tribunal.
Neste contexto, a questão que o Tribunal tem de apreciar e decidir é a de saber se a norma referenciada, ao impor, retroactivamente, a redução a escrito dos contratos de arrendamento rurais, mesmo dos contratos celebrados antes do seu início de vigência, viola o princípio do Estado de direito, na sua vertente de princípio da confiança, consagrado no artigo 2º da Constituição.
O princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova se não mostre de conteúdo mais favorável ao arguido) - cf. nºs 1 e 4 do artigo 29º -, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias - cf. nº 3 do artigo 18º - e para o pagamento de impostos - cf. artigo 103. nº3
(versão da Lei Constitucional nº1/97) -, podendo, assim, dizer-se que na Lei Fundamental se não consagra como princípio o da proibição da não retroactividade da lei, ainda que a Constituição não seja insensível a tal questão.
No caso em apreço, a acção de remição do contrato de arrendamento de um prédio rústico, proposta pelos ora recorrentes, viu a respectiva instância ser julgada extinta logo na 1ª instância - e esta decisão ser confirmada na Relação e no Supremo Tribunal de Justiça - por os autores e recorrentes não terem apresentado com a petição um exemplar escrito do respectivo contrato de arrendamento rural nem terem alegado que o não podiam fazer por tal falta ser imputável aos réus.
Neste tipo de acções - que, manifestamente não se situam no âmbito penal - e em que apenas está em causa a extinção, por remição, de uma relação contratual decorrente do arrendamento rural, matéria que tem a ver com a organização económica, em especial com a política agrícola, não pode afirmar-se que estejamos perante uma daquelas matérias para as quais a Constituição consagra o princípio da irretroactividade da lei.
Desta forma, admitindo que a Constituição não consagrou, como princípio, a irretroactividade da lei em geral, e, sendo as normas de conflitos de leis no tempo como as do artigo 12º do Código Civil meras injunções ao aplicador ou operador e não ao legislador, em regra a retroactividade da lei não contende com a Constituição.
De resto, no caso dos autos, poderá haver quem entenda que a utilização da norma questionada não corresponde sequer a uma situação de verdadeira e própria retroactividade, mas antes seja apenas um caso de aplicação imediata da lei nova ou de mera retrospectividade legal. Seja como for, o que importa é apurar se tal aplicação da lei nova a contratos celebrados em anterior quadro legal viola ou não o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito.
8.- Sobre este princípio escreveu-se no Acórdão nº 156/95, in Diário da República, IIª Série, de 21 de Junho de 1995) o seguinte:
«Tem este Tribunal, aliás, na esteira de uma jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, defendido que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela qual «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica»
(cfr. o Acórdão nº303/90, publicado no Diário da República, 1ª série, de 26 de Dezembro de 1990).
Sequentemente (e ainda para se usar terminologia desse acórdão), o princípio do Estado de direito democrático há-de conduzir a que «os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor».
Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou a que tal estatuição não possa dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade» do legislador, características que são «típicas», «ainda que limitadas», da função legislativa (cf.Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p.309).
Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o subprincípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar.
Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas «que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável» (cf. Acórdão nº 365/91, no Diário da República, 2ª série, de 27 de Agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático.
9. - Fixados estes parâmetros e voltando ao caso em apreço,recorde-se que a aplicação imediata da lei nova na parte em que impõe a redução obrigatória a escrito dos contratos de arrendamento rural já existentes, opera aqui no âmbito dos efeitos processuais: a necessidade da sua apresentação em juízo para que a acção respeitante a tal contrato possa prosseguir, extinguindo-se a instância se o contrato escrito não for apresentado ou se não se alegar logo que a impossibilidade da sua junção era imputável aos réus.
A presente acção de remição do contrato de arrendamento (celebrado em Abril de 1954) agora invocado foi proposta em 9 de Junho de 1993, ou seja, vários anos depois não só da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, como também do decurso do prazo concedido no diploma para a redução a escrito dos contratos existentes e ainda não formalizados (1 de Julho de 1989).
A exigência legal da formalização do contrato de arrendamento, através de documento escrito é matéria que tem recorrentemente integrado a legislação sobre arrendamentos rurais após 1974.
De facto, ao abrigo do preceituado no Decreto nº 5411, de 17 de Abril de 1919, da Lei nº 2114, de 15 de Junho de 1962 e do Código Civil de 1966, vigorava nesta matéria o princípio da consensualidade, isto é, não era obrigatória a sua redução a escrito.
Porém, o Decreto-Lei nº 201/75, de 15 de Abril veio revogar as disposições sobre arrendamento rural do Código Civil e veio impor a redução a escrito de todos os arrendamentos, mesmo os já existentes e fixando prazos para a sua formalização, prazos estes que foram sendo sucessivamente prorrogados pelos Decretos-Leis nº 789/75, de 31 de Dezembro e 414/76, de 20 de Julho. A Lei nº 76/77, de 29 de Setembro, revogou o referido Decreto-Lei nº 201/75 e toda a legislação sobre arrendamento, impondo a redução a escrito dos arrendamentos relativos a superfícies iguais ou superiores a 2ha, salvo se se tratasse de agricultor autónomo, estabelecendo quanto aos outros arrendamentos uma aplicação gradativa temporalmente escalonada, mas fixando o prazo de seis anos após a entrada em vigor da lei para que todos os contratos estivessem obrigatoriamente reduzidos a escrito (artigo 3º, nºs 1 a 4).Esta mesma lei impunha (artigo 49º) que aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor se aplicasse o regime nela prescrito, estabelecendo- se no nº2 do artigo 42º que nos casos de redução obrigatória a escrito dos contratos, nenhuma acção judicial a eles respeitante pode ser recebida ou prosseguir se não for acompanhada de um exemplar do contrato, a menos que prove documentalmente que a falta é imputável
à parte contrária.
A Lei nº 76/77 veio a ser alterada pela Lei nº 76/79, de 3 de Dezembro. Foi então revogado o artigo 49º da lei anterior, deixando de se aplicar o respectivo regime, na redacção da lei nova, aos contratos existentes.
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, voltou a lei a impor a redução a escrito dos contratos de arrendamento rurais, mesmo dos já existentes, a escrito, concedendo para os contratos de pretérito um prazo que ia até 1 de Julho de 1989.
Estaria o legislador constitucionalmente impedido de o fazer, por tal actuação violar o princípio da segurança e da confiança dos cidadãos?
A resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa.
Desde logo, o que importa sublinhar é que se algum interesse a regulamentação constante da normação em causa se destina a defender é a protecção dos interesses do arrendatário.
Independentemente disso, o que sucede é que a aplicação do Decreto-Lei nº 385/88 aos contratos existentes não gera para arrendatários - em casos como o dos autos - qualquer situação de violação de expectativas legitimamente fundadas, não afectando os seus direitos de forma inadmissível arbitrária ou demasiado onerosa e, como se referiu antes, só este tipo de lesão das expectativas firmes é susceptível de fazer incorrer a legislação em causa em violação do princípio da segurança e da confiança.
Com efeito, a lei nova, ao retomar a orientação, já constante de vários outros diplomas anteriores, de determinar a aplicação aos contratos de arrendamento rurais já existentes do regime nela vertido, não deixou de garantir o mínimo de certeza e segurança das pessoas visadas quanto aos direitos e expectativas legitimamente criadas, no aspecto em causa: concedeu um prazo suficientemente longo para a redução a escrito dos contratos já existentes - prazo decorrente desde 30 de Outubro de 1988 até 1 de Julho de 1989 - como continuou a permitir aos arrendatários enquanto autores que se alegasse e imputasse tal falta aos senhorios.
E assim, os recorrentes sabiam desde 1 de Julho de 1989 que a exigência legal de apresentação de contrato escrito de arrendamento era essencial para o prosseguimento de qualquer acção relativa a esse contrato, pelo que deveriam ter-se precavido exigindo ao senhorio a sua redução a escrito, assim se colocando na posição de poderem imputar tal falta ao senhorio demandado.
Portanto, pelo menos no que toca ao aspecto em questão nos presentes autos, não se verifica nem ocorre qualquer afectação de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa da segurança e certeza que o direito deve respeitar.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 1998.03.04 Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa