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Proc. nº 87/95 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. Um grupo de Deputados à Assembleia da República veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nºs 1, alínea a), e 2, alínea f), da Constituição e 51º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas constantes do nº
2 do artigo 3º da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, introduzido pelo nº 4 do artigo
8º da Lei nº 39-B/94, de 27 de Dezembro, e do nº 5 do artigo 8º desta última lei.
Os requerentes sustentam que as normas em crise são materialmente inconstitucionais por violarem o disposto nos artigos 13º, nº 1, e
2º, da Constituição, que consagram, respectivamente, os princípios da igualdade e do Estado de direito democrático.
2. O nº 2 do artigo 3º da Lei nº 64/93, introduzido pelo nº 4 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94, estabelece o seguinte:
'Aos presidentes, vice-presidentes e vogais de direcção de instituto público, fundação pública ou estabelecimento público, bem como aos directores-gerais e àqueles cujo estatuto lhes seja equiparado em razão da natureza das suas funções é aplicável, em matéria de incompatibilidades e impedimentos, a lei geral da função pública e, em especial, o regime definido para o pessoal dirigente no Decreto-Lei nº 323/89, de 26 de Setembro.'
Os requerentes entendem que esta norma viola o princípio da igualdade, entendido em sentido material, na medida em que estabelece um regime discriminatório mais favorável para os presidentes, vice-presidentes e vogais de direcção de instituto público e directores-gerais e subdirectores-gerais ou entidades equiparadas. Na verdade, todas estas entidades estavam subordinadas a um regime especial de incompatibilidades decretado pelo artigo 3º da Lei nº
64/93, por serem consideradas titulares de altos cargos públicos. Ora, a alteração introduzida pela Lei nº 39-B/94, que aprovou o Orçamento do Estado para 1995, substituiu aquele regime mais rigoroso pela lei geral da função pública e, em especial, pelo regime estatuído para o pessoal dirigente no Decreto-Lei nº 323/89, de 26 de Dezembro.
3. Por seu turno, o nº 5 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94 estipula que:
'O regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos constantes da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, não é aplicável, na parte em que seja inovador,
às situações de acumulação validamente constituídas na vigência da lei anterior.'
Os requerentes sustentam que esta norma contraria o princípio do Estado de direito democrático por legitimar, a posteriori, situações de acumulação ilegal verificadas no passado. Com efeito, tal norma determina que o regime de incompatibilidades e impedimentos da Lei nº 64/93 não é aplicável a situações de acumulação validamente constituídas antes da entrada em vigor desta
última lei. Deste modo, a norma sindicada promoveu uma espécie de 'amnistia material' de situações de acumulação ilegal que persistiram durante a vigência da Lei nº 64/93, decretando ainda a ilimitada autorização de persistência no futuro de tais situações.
4. Notificado para se pronunciar, querendo, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da República relativos à lei em causa.
5. Após a entrada no Tribunal Constitucional do pedido de fiscalização abstracta a que se reportam os presentes autos, a Lei nº 28/95, de
18 de Agosto, veio alterar em vários aspectos o regime de incompatibilidades e impedimentos consagrado na Lei nº 64/93.
Todavia, as alterações não abrangeram as normas cuja constitucionalidade é questionada (artigos 3º, nº 2, da Lei nº 64/93 e 8º, nº 5, da Lei nº 39-A/94). Assim, a evolução legislativa, por si só, não retira o interesse no conhecimento do pedido, mesmo que se possa prognosticar uma restrição de efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição: o regime cuja inconstitucionalidade é arguida continua a vigorar e a valer para o futuro.
II Fundamentação
A A alegada violação do princípio da igualdade
6. A questão de inconstitucionalidade conexionada com a alegada inobservância do princípio da igualdade pressupõe que uma categoria de titulares de altos cargos públicos subordinados agora ao regime geral de incompatibilidades e impedimentos da função pública se encontra numa situação de identidade com outras a que a lei continua a atribuir um regime mais rigoroso.
O que está em causa, afinal, é saber se a lei ordinária pode distinguir entre o presidente do conselho de administração de empresa pública e sociedade anónima de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos, gestor público e membro do conselho de administração de sociedade anónima de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos e membro em regime de permanência e a tempo inteiro da entidade pública independente prevista na Constituição ou na lei, por um lado, e, por outro, o presidente, vice-presidente e vogal de direcção de instituto público, fundação pública ou estabelecimento público e o director-geral ou subdirector-geral ou entidade equiparada.
7. A questão resulta, evidentemente, da alteração operada pela Lei nº 39-B/94. De facto, a Lei nº 64/93 equiparava todas as entidades supramencionadas, qualificando-as como titulares de altos cargos públicos e subordinando-as a um rigoroso regime de incompatibilidades e impedimentos. A Lei nº 39-B/94 cindiu este universo pessoal, determinando a aplicação a parte dele do mais permissivo regime geral de acumulações previsto para a função pública.
Como é sabido, o princípio da igualdade implica, em sentido material, que são inadmissíveis diferenciações não justificáveis racionalmente à luz dos valores constitucionais. Desde logo, a igualdade implica, nesta dimensão, a não discriminação (artigo 13º, nº 2, da Constituição). Tratamentos diferenciados que ofendam a essencial dignidade da pessoa humana - que tomem como fundamento, por exemplo, a ascendência, o sexo, a raça, a língua, a naturalidade, o credo religioso, político ou ideológico e a condição cultural, económica ou social - são inadmissíveis.
Para além disso, quaisquer outras diferenciações hão-de ser fundamentadas, positivamente, segundo um critério de merecimento admitido, explícita ou implicitamente, pelo legislador constitucional: assim, por exemplo, a pena deve ser proporcionada ao crime e a retribuição deve ser proporcionada ao trabalho [artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição]. No caso vertente, o mais rigoroso regime de incompatibilidades e impedimentos estatuído na Lei nº
64/93 há-de reportar-se a situações em que a dignidade e a responsabilidade dos cargos políticos ou altos cargos públicos exige uma dedicação reforçada e uma isenção superior dos respectivos titulares (cf., sobre o princípio da igualdade, a título exemplificativo, os Acórdãos nºs 39/88, 157/88, 330/93, e 523/95, D.R., I Série, de 3 de Março e de 26 de Julho de 1988, e II Série, de 30 de Julho de
1993 e de 14 de Novembro de 1995; cf., identicamente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 198 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, p. 479 e ss., e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1º vol., 3ª ed., 1993, p. 125 e ss.).
8. Por outra parte, há-de reconhecer-se que o legislador ordinário goza de uma considerável margem de discricionariedade - não de arbitrariedade -, proveniente do mandato democrático que lhe foi conferido, para seleccionar os factores relevantes para a inclusão ou exclusão de titulares de altos cargos públicos no universo a que associa um mais rigoroso regime de incompatibilidades e impedimentos.
Tendo em vista a prossecução do interesse público e o respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos e visando assegurar a observância dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade no exercício das funções dos órgãos e agentes administrativos, o legislador ordinário pode definir um regime de incompatibilidades e impedimentos mais ou menos rigoroso e aplicável a um universo pessoal mais ou menos vasto.
9. Ao estender o regime que consagrou para titulares de cargos políticos aos titulares de altos cargos públicos, a Lei nº 64/93 reconheceu uma analogia substancial entre uns e outros. Entendeu-se que, no essencial, os altos titulares de cargos públicos precedentemente referidos devem estar subordinados a um estatuto idêntico ao do Presidente da República, dos membros do Governo, dos Ministros da República, dos membros dos Governos Regionais, do Provedor de Justiça, do Governador e do Secretário Adjunto do Governo de Macau, dos governadores e vice-governadores civis e dos presidentes e vereadores a tempo inteiro das câmaras municipais.
Em si mesma, esta decisão de equiparação não é obrigatória. O legislador ordinário poderia, porventura, ter exceptuado apenas do regime geral os titulares de cargos políticos, subordinando os titulares de altos cargos públicos, in totum, ao regime geral da função pública. Porém, a partir do reconhecimento de uma analogia substancial entre todos os casos, o que se discute é se é obrigatória a inclusão, no regime mais restritivo, de certos titulares de altos cargos públicos.
10. A subtracção dos presidentes, vice-presidentes e vogais de instituto público, fundação pública ou estabelecimento público e dos directores-gerais e subdirectores-gerais e entidades equiparadas ao regime de incompatibilidades e impedi-mentos dos titulares de cargos políticos baseia-se no entendi-mento de que tais entidades não exercem funções similares às das que estão efectivamente sujeitas àquele regime restritivo.
Assim, o que distinguirá as funções dos presidentes, vice-presidentes e vogais de direcção de instituto público, fundação pública ou estabelecimento público das funções dos presidentes dos conselhos de administração de empresas públicas e de sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos e de gestores públicos e membros de conselhos de administração de sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos - funções similares em certa perspectiva - será a própria natureza das pessoas colectivas públicas em presença. No primeiro caso, trata-se de pessoas sem finalidades lucrativas; no segundo, estão em causa pessoas que prosseguem fins lucrativos - sendo certo que os regimes e os níveis remuneratórios dessas entidades são diversos.
No que respeita aos directores-gerais e subdirectores-
-gerais, o fundamento da diferenciação relativamente aos titulares de cargos políticos resultará do entendimento de que as respectivas funções são mais de
índole técnico-administrativa do que política (confrontar Mapa 1 anexo ao Decreto-Lei nº 323/89), diferentemente do que sucede no caso dos membros do Governo, aos quais aquelas entidades estão subordinadas hierarquicamente
(membros do Governo entre os quais, por sua vez, já não há relações de subordinação hierárquica administrativa).
11. Em suma, os casos que o nº 4 do artigo 8º da Lei nº
39-B/94 veio discriminar apresentam particularidades que tornam, segundo certos critérios, admissível a discriminação. Apurar se esses critérios são os mais correctos no plano da política legislativa é algo que extravasa a competência do Tribunal Constitucional.
Ao Tribunal Constitucional apenas compete averiguar se a inclusão de um grupo de casos numa categoria - para efeito de atribuição de determinado regime jurídico - é arbitrária, carecendo de qualquer fundamento racional e valorativamente atendível. Só nesta hipótese, que não se verifica no caso sub judicio, se pode concluir pela violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
O regime de incompatibilidades e impedimentos baseia-se na dignidade e na responsabilidade dos cargos políticos ou dos altos cargos públicos, que exige dos respectivos titulares uma dedicação reforçada e uma isenção superior. Porém, todos os funcionários e agentes da administração pública estão subordinados a um regime geral de incompatibilidades e impedimentos. Vigora, na função pública, um regime geral de não acumulação, que se exprime, nomeadamente, na obrigação de pedir autorização para acumular funções (públicas entre si ou públicas e privadas).
A Lei nº 64/93 teve a finalidade de criar um regime mais restritivo para os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, instrumental do bom funcionamento do regime democrático. A esta luz, só se poderia considerar violação da igualdade o tratamento privilegiado de entidades com maiores responsabilidades políticas ou públicas e a correspondente discriminação negativa de entidades com responsabilidades menores. E isso não sucede no caso em análise.
B A alegada violação do princípio da confiança
12. A questão de inconstitucionalidade resultante da alegada violação do princípio da confiança, que constitui corolário do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição), traduz-se na não aplicabilidade do regime de incompatibilidades e impedimentos da Lei nº 64/93 às situações de acumulação validamente constituídas na vigência da lei anterior, por força do nº
5 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94.
Aparentemente, esta tese encerra um paradoxo, na medida em que a norma em crise pretende acautelar expectativas validamente constituídas antes da entrada em vigor de um regime mais restritivo. Em vez de violar o princípio da confiança, a norma cumpri-lo-ia rigorosamente, salvaguardando expectativas e impedindo uma retrospectividade ou retroactividade inautêntica da Lei nº 64/93 (cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 287/90, D.R., II Série, de 22 de Fevereiro de 1991, e a restante jurisprudência aí citada).
Não é nesta dimensão do princípio da confiança, porém, que os requerentes questionam a constitucionalidade da norma. Diferentemente, eles sustentam que a permissão retroactiva de acumulação ilegal (entre a data prevista na Lei nº 39-B/94 para o início da referida permissão, nos termos do nº
6 do seu artigo 8º, e a data de entrada em vigor da própria Lei nº 39-B/94) afecta a confiança dos cidadãos, em geral, na vigência e na validade das normas jurídicas - in casu, de normas que impõem especiais deveres a titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. É neste contexto que os requerentes falam de uma 'legitimação a posteriori de situações ilegais' e de abalo intolerável da 'confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico' (cf., sobre esta dimensão do princípio da confiança, por todos, H. Maurer,
'Kontinuitätsgewähr und Vertrauenschutz', em Isensee/Kirchhof, Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol. III, 1988, pp. 211 a 279).
13. Na dilucidação deste problema, deve ter-se presente, antes de mais, que o regime consagrado pelo nº 5 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94 corresponderia a uma salvaguarda de expectativas se tivesse sido imediatamente incluído no âmbito da Lei nº 64/93. Se isso tivesse sucedido, o legislador estaria privilegiando o princípio da confiança e preterindo, em certo sentido, o princípio da igualdade: discriminaria positivamente os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos que se encontrassem numa situação de acumulação validamente constituída no passado.
Ora, esta prevalência do princípio da confiança seria admissível. Em geral, quando o legislador salvaguarda expectativas anteriormente constituídas, torna essas expectativas um fundamento racional de diferenciação. Assim, o princípio da confiança concilia-se com o princípio da igualdade uma vez que fornece um critério objectivo para o tratamento especial de certo conjunto de situações (em função do momento da sua verificação temporal).
Todavia, esta salvaguarda de expectativas foi, no caso em análise, decretada retroactivamente. E a eficácia retroactiva implicou, como se viu, uma legitimação póstuma da manutenção de situações originariamente legais, transformadas em ilegais pelo artigo 3º da Lei nº 64/93. O que agora se discute não é o regime material de favorecimento dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos que antes da entrada em vigor da Lei nº 64/93 se encontravam em determinadas situações de acumulação. Discute-se, apenas, a legitimação póstuma dessas situações, entretanto declaradas ilegais.
14. A identificação do problema de constitucionalidade suscita, imediatamente, a dúvida sobre a utilidade do conhecimento do pedido. A eficácia de uma eventual declaração de inconstitucionalidade estaria confinada a uma restrição do âmbito de vigência temporal da norma constante do nº 5 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94. Assim, seriam de novo ilegalizadas situações de acumulação mantidas na vigência da Lei nº 39-B/94, com as correspondentes consequências, nomeadamente ao nível de responsabilização das pessoas envolvidas. No futuro, porém, tais situações poderiam persistir validamente, admitindo que não há violação do princípio da igualdade.
Ora, o reconhecimento desta eficácia restrita de uma eventual declaração de inconstitucionalidade suscita a seguinte interrogação: deveria o Tribunal Constitucional ressalvar os efeitos da inconstitucionalidade, por razões de equidade, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição?
15. Em situações análogas - em que está em causa a aplicação retroactiva de um regime penal mais favorável inconstitucional - o Tribunal Constitucional, embora com votos discordantes, entendeu que a determinação da lei válida precede a identificação da lei mais favorável (cfr. artigo 29º, nº 4, da Constituição), mas concluiu que há lugar a uma restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, em benefício do arguido, e à aplicação do regime inconstitucional mais favorável [cf. o Acórdão nº 56/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., 1984, p. 153 e ss, e, na doutrina, Rui Pereira, 'A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido', Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I (1991), nº 1, p. 55 e ss.].
Também no caso sub judicio, em atenção à natureza das consequências de uma ilegalização das situações de acumulação mantidas
(ilegalização subsequente a uma eventual declaração de inconstitucionalidade do nº 5 do artigo 8º) se deve concluir que, a ser declarada a inconstitucionalidade da norma, haveria lugar a uma restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, por razões de equidade, e à consequente exclusão da responsabilidade dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos virtualmente atingidos por aqueles efeitos. E, desse modo, a declaração de inconstitucionalidade estaria absolutamente destituída de efeitos porque a possibilidade de a norma em crise valer no futuro não é questionada.
16. É certo que a circunstância de uma norma sujeita à fiscalização abstracta de constitucionalidade ter sido revogada não faz perder, a priori, o interesse jurídico no conhecimento do pedido (assim se pronunciaram os Pareceres da Comissão Constitucional nºs 1/80 e 4/81, publicados em Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 11º, 1981, p. 27 e ss., e 14º, 1983, p. 205 e ss., respectivamente, e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 17/83, 12/88,
238/88, 319/89, 415/89, 73/90, 135/90, 465/91 e 308/93, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., 1983, p. 93 e ss., e no Diário da República, I Série, de 30 de Janeiro de 1978, e II Série, de 21 de Dezembro de
1988, 28 de Junho de 1989, 15 de Setembro de 1989, 19 de Julho de 1990, 7 de Setembro de 1990, 2 de Abril de 1992 e 22 de Julho de 1993, respectivamente; no mesmo sentido se pronuncia, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 3ª ed., 1991, p. 490).
Na verdade, uma declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral é, em princípio, eficaz desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas por ela revogadas (artigo 282º, nº 1, da Constituição). Assim, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral tem uma pretensão de eficácia para o passado que não é satisfeita pela revogação da norma em crise.
Contudo, o Tribunal Constitucional tem entendido, embora com votos discordantes e a oposição na doutrina de Jorge Miranda (ob.cit., pp.
504-5), que é inútil conhecer o pedido quando a norma sub judicio já foi revogada e uma inconstitucionalidade que viesse a ser declarada tivesse os seus efeitos limitados de modo a não excederem os da revogação (Acórdãos nºs 238/88 e
308/93, 415/89 e 135/90, citados). Este entendimento minoritário sustenta que há uma inversão lógica e valorativa quando se faz depender a declaração de inconstitucionalidade da ponderação dos respectivos efeitos. Subjacente poderá estar até a ideia de que o Tribunal Constitucional será convidado, segundo esta lógica, a ampliar as hipóteses de restrição de efeitos, para não conhecer o pedido.
Todavia, tal como se afirmou no citado Acórdão nº 308/93, não se concebe, em geral, a utilidade de uma declaração de inconstitucionalidade que estivesse completamente desprovida dos efeitos jurídico-materiais e jurídico-processuais que caracterizam as decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta. Uma declaração de inconstitucionalidade completamente desprovida de tais efeitos nem sequer pode aspirar à força obrigatória geral que lhe é atribuída pelo artigo 282º, nº 1, da Constituição
(esta tese é subscrita, no essencial, pela ora relatora, embora com as reservas manifestadas em declaração de voto ao Acórdão nº 580/95, D.R., II Série, de 30 de Dezembro de 1995).
17. É irrecusável, no entanto, que, a considerar-se ilegal a manutenção de situações de acumulação após a entrada em vigor da Lei nº 64/93, isso teria também como consequência a proibição de tais situações a partir desse momento. Por isso, só num plano que abstrai da eficácia normativa poderemos distinguir duas dimensões da norma em crise: a da legitimação póstuma de situações ilegais mantidas no período compreendido entre a entrada em vigor das duas leis e a da autorização da persistência dessas situações no futuro (isto é, após a entrada em vigor da Lei nº 39-B/94).
Todavia, uma declaração de inconstitucionalidade que apenas fosse eficaz no futuro e que admitisse, afinal, a manutenção de situações de acumulação no passado (devido à restrição de efeitos), iria contrariar o próprio juízo em que assenta. Na realidade, tal declaração apenas se justificaria por se considerar intolerável uma legitimação póstuma de situações de acumulação ilegalmente mantidas; no entanto, teria de admitir essa legitimação póstuma pela via da restrição de efeitos; e só em relação ao futuro - num plano em que seria absolutamente admissível a salvaguarda de expectativas dos agentes acumuladores fundamentadas na vigência da própria norma em crise - acabaria por obstar à persistência das situações de acumulação.
18. O paradoxo presente nesta circunscrição dos efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade resultaria de ela inviabilizar a aplicação da norma sub judicio na dimensão em que não padece, manifestamente, de um vício de inconstitucio-nalidade, porque se limita, não retroactivamente, a salvaguardar expectativas que se deveriam considerar validamente constituídas até à entrada em vigor da Lei nº 64/93. É certo que essas expectativas deixaram de existir após a entrada em vigor da Lei nº 64/93. No entanto, foram reconsideradas pela Lei nº 39-B/94 e seriam respeitadas por uma declaração de inconstitucionalidade que restringisse os respectivos efeitos.
Em suma: uma eventual declaração de inconstitucionalidade apenas poderia produzir efeitos para o futuro relativamente a uma dimensão da norma cuja constitucionalidade não é questionada (a manutenção actual das situações constituídas antes da Lei de 93) e que, precisamente, não é inconstitucional porque elas são mantidas de acordo com a norma prévia que as autoriza. Pelo contrário, a dimensão da norma cuja inconstitucionalidade é arguida nunca poderia ser afectada por uma eventual declaração de inconstitucionalidade, devido à restrição de efeitos. Deste modo, conclui-se que não há interesse no conhecimento do pedido, relativamente à questão de inconstitucionalidade do nº 5 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94.
III Decisão
19. Ante o exposto, decide-se:
a) Não declarar inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo 3º da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, introduzida pelo nº 4 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94, de 27 de Dezembro;
b) Não conhecer o pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma constante do nº 5 do artigo 8º da Lei nº 39-B/94, de 27 de Dezembro.
Lisboa, 14 de Março de 1996
Maria Fernanda Palma
Vitor Nunes de Almeida
José de Sousa e Brito
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Luis Nunes de Almeida
Messias Bento
Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
José Manuel Cardoso da Costa