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Proc. nº 256/97 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Tribunal Constitucional, por Acórdão de 27 de Fevereiro de 1996
(Acórdão nº 184/96), julgou inconstitucional a norma contida no artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção introduzida pelo Decreto com força de Lei nº 20.417, de 1 de Agosto de 1931, na parte em que define os poderes das Relações nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos, lida sem a interpretação restritiva do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1934, tendo sido, em consequência, revogado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 1990.
O Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência da prolação do Acórdão nº 184/96, promoveu que se declarasse 'extinto por amnistia o procedimento criminal de todos os réus condenados', nos termos do disposto nos artigos 1º da Lei nº 9/96, de 23 de Março, e 127º e 128º, nº 2, do Código Penal.
O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, após tomar conhecimento de que se encontra pendente no Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade da Lei nº 9/96, de 23 de Março, subscrito por um grupo de deputados à Assembleia da República, proferiu despacho (a fls. 21001 e ss.) ordenando a suspensão do processo até à decisão do Tribunal Constitucional sobre a conformidade à Constituição das normas contidas no referido diploma. Fundamentou a decisão de suspensão no entendimento de que a decisão de constitucionalidade consubstanciaria uma questão prejudicial relativamente à decisão do recurso a correr termos no Supremo Tribunal de Justiça (artigo 3º do Código de Processo Penal de 1929).
2. O Ministério Público reclamou para a conferência do despacho de fls. 21001 e ss.. No respectivo requerimento, o reclamante sustentou a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 3º do Código de Processo Penal de 1929, tal como foi interpretada pela decisão reclamada, por violação do disposto nos artigos 27º, nº 2, 32º, nº 1, 207º e 282º, da Constituição.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Fevereiro de
1997, considerando que a questão da conformidade à Constituição da lei de amnistia é de 'difícil solução' (artigo 3º, § 1º, nº 2, do Código de Processo Penal de 1929), indeferiu a reclamação, confirmando, consequentemente, o despacho do relator que ordenou a suspensão do processo.
3. O Ministério Público interpôs recurso de constitucio-nalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Fevereiro de 1997, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 3º do Código de Processo Penal de 1929, tal como foi interpretada e aplicada pela decisão recorrida.
Por despacho de 28 de Maio de 1997, o Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional, ouvido o Tribunal, determinou que o julgamento do presente recurso se fizesse com intervenção do plenário.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1º - É inconstitucional a interpretação da norma constante do artigo
3º do Código de Processo Penal de 1929, em termos de qualificar como 'acção' em que se controverte 'questão prejudicial própria', relativamente à infracção que
é objecto de processo penal, pendente perante os tribunais judiciais, o processo de fiscalização abstracta sucessiva, em curso no Tribunal Constitucional, em que vem suscitada a questão da inconstitucionalidade da Lei que decretou uma amnistia, convocável e aplicável aos arguidos naquela causa.
2º - Na verdade, tal interpretação normativa revela-se inconciliável com o princípio constante do artigo 207º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual os tribunais, em termos de fiscalização difusa da constitucionalidade, têm o poder-dever de recusar a aplicação de quaisquer normas que consideram violadoras da Lei Fundamental, desencadeando o recurso obrigatório do Ministério Público, interposto da decisão que julgue verificada a inconstitucionalidade.
3º - A referida interpretação normativa, acolhida na douta decisão recorrida, configura-se ainda como inconciliável com o princípio constitucional das garantias de defesa - na medida em que dela resulta não ter o arguido qualquer possibilidade de intervir no dito processo de fiscalização abstracta sucessiva, que não tem estrutura contraditória, ao contrário do que sucederia se o Tribunal tivesse recusado a aplicação da norma reputada inconstitucional, nos termos do artigo 207º da Constituição da República Portuguesa.
4º - Tal como se não concilia a dita interpretação normativa com o princípio constitucional de que só a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização abstracta, que declare a inconstitucionalidade da norma, é susceptível de produzir a sua derrogação e a quebra da sua vinculatividade para toda a comunidade jurídica, nos termos do artigo 282º da Constituição da República Portuguesa.
5º - Efeito que, em nenhuma circunstância, pode ser associado à simples apresentação do pedido de fiscalização abstracta sucessiva e à pendência deste processo perante o Tribunal Constitucional.
6º - Ora, se aos tribunais fosse possível, de forma generalizada, suspender a instância, de modo a aguardar a prolação da decisão pelo Tribunal Constitucional, em todas as causas reportadas a litígios para cuja dirimição fossem convocáveis normas objecto de processos de fiscalização abstracta em curso, representaria tal solução processual a criação de um inovador mecanismo de suspensão da eficácia e imperatividade dos actos normativos, não consentido pelo nº 5 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa.
Os recorridos não contra-alegaram.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. A norma impugnada tem a seguinte redacção: Artigo 3º Questões prejudiciais não penais
Quando, para se conhecer da existência da infracção penal, seja necessário resolver qualquer questão de natureza não penal que não possa convenientemente decidir-se no processo penal, pode o juiz suspender o processo, para que se intente e julgue a respectiva acção no tribunal competente.
§ 1º Presume-se a inconveniência do julgamento da questão prejudicial no processo penal:
(...)
2º Quando seja de difícil solução e não verse sobre factos cuja prova a lei civil limite.
(...)
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, interpretou o preceito transcrito no sentido de abranger na noção de 'acção' o processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, considerando que a apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas na Lei nº 9/96, de
23 de Março, é de 'difícil solução'. Em consequência, concluiu pela inconveniência do julgamento dessa questão prejudicial na instância penal, suspendendo o processo.
Em relação à questão de inconstitucionalidade suscitada pelo Ministério Público, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a interpretação acolhida não viola o disposto nos artigos 27º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição, uma vez que a suspensão implica tão somente a abstenção provisória de pronúncia sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da Lei nº 9/96, assim como não viola o disposto no artigo 282º da Constituição, na medida em que este preceito apenas se refere aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
7. A apreciação da conformidade à Constituição da norma impugnada pelo Ministério Público não exige a análise dos elementos caracterizadores do conceito de 'questão prejudicial não penal' pelo artigo 3º do Código de Processo Penal (antecedência lógico-jurídica, autonomia e necessidade), pois tal questão, em si mesma, situa-se no plano da interpretação do direito ordinário. Nessa medida, o Tribunal Constitucional não se pronunciará sobre ela.
Assim, no presente recurso de constitucionalidade cumpre apenas averiguar se a interpretação da norma contida no artigo 3º do Código de Processo Penal de 1929, em que se fundamentou a decisão recorrida, viola algum princípio ou norma constitucional.
8. A Constituição de 1976, a par do controlo concreto da constitucionalidade normativa, consagra um mecanismo de fiscalização abstracta dirigido à apreciação da conformidade constitucional de normas jurídicas, independentemente da sua aplicação a qualquer caso submetido a juízo (cf. Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 978 e 1068; e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II. 3ª ed., 1991, p. 455 e ss.).
A fiscalização abstracta da constitucionalidade é da competência exclusiva do Tribunal Constitucional, e pode ser realizada antes da entrada em vigor dos diplomas submetidos a apreciação, quando estes assumem determinada forma - controlo preventivo; ou depois do início da sua vigência - controlo sucessivo. A respectiva decisão de inconstitucionalidade tem força obrigatória geral.
Trata-se de um mecanismo justificado pelo interesse público, por via do qual o Tribunal Constitucional actua exclusivamente como garante da hierarquia normativa da ordem constitucional, não se podendo adequar a um processo contraditório, já que não está em causa um litígio pela defesa de direitos subjectivos. É um processo que tem directa e exclusivamente relevância normativa, o que o diferencia dos processos cíveis, penais ou administrativos, bem como dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade. Não consubstancia, desta forma, uma 'acção em sentido restrito' (cf. Jorge Miranda, ob. e loc. cits.).
Nos processos de fiscalização abstracta da constitu-cionalidade, os particulares não têm qualquer possibilidade de intervir ou de influenciar a tramitação processual, dado que só podem formular o pedido determinadas entidades (no que interessa no presente recurso, as referidas no artigo 281º, nº
2, da Constituição), sendo apenas ouvido o órgão autor da norma (artigo 54º da Lei do Tribunal Constitucional).
9. Nos presentes autos está em causa a aplicação de uma amnistia a arguidos condenados.
O Supremo Tribunal de Justiça suspendeu a instância penal até à decisão do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade das normas contidas na Lei nº 9/96, de 28 de Novembro, pois considerou que tal questão é prejudicial relativamente à decisão do recurso.
Ora, os arguidos não têm qualquer possibilidade de intervir no processo de fiscalização abstracta, não podendo discutir a questão de constitucionalidade ou agir processualmente no sentido de uma imediata e célere aplicação da lei que prescreve a extinção da sua responsabilidade criminal.
No entanto, a Constituição garante aos arguidos a possibilidade de se pronunciarem sempre que estiver em causa qualquer questão relevante para a determinação da sua responsabilidade criminal (princípio do contraditório), bem como de intervirem activamente na tramitação do processo (artigo 32º da Constituição).
Suspendendo-se o processo penal até à decisão do processo de fiscalização abstracta, cria-se uma conexão artificial entre os dois processos que limita drasticamente os poderes dos arguidos, afectando de modo constitucionalmente inadmissível as garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição).
Com efeito, não se trata, como se afirma na decisão recorrida, de uma mera abstenção provisória de pronúncia sobre a constitucionalidade da Lei nº
9/96: a suspensão nega em absoluto aos arguidos qualquer papel na decisão da questão de constitucionalidade e essa decisão afecta directamente a determinação concreta da responsabilidade penal.
Só por isso ter-se-á já que concluir pela inconstitu-cionalidade da norma impugnada.
10. Por outro lado, e, decisivamente, tendo presente que o sistema de controlo da constitucionalidade normativa é difuso na base e concentrado no topo, os juízes têm o poder-dever de fiscalizar a constitucionalidade das normas nos casos que lhes são submetidos a julgamento (artigo 204º da Constituição), independentemente de só a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização abstracta sucessiva, ter efeito sobre a vigência da norma (artigo 282º da Constituição). Assim, a interpretação normativa realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça esvazia de conteúdo o referido poder-dever dos tribunais de apreciarem a conformidade à Constituição das normas aplicáveis aos pleitos submetidos a juízo e subverte verdadeiramente o sistema de fiscalização de constitucionalidade desenhado pela Constituição portuguesa.
Finalmente, a interpretação do artigo 3º do Código de Processo Penal realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, consagraria ainda um efeito do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade não previsto pelo artigo 282º da Constituição, pois que, de acordo com tal interpretação, a pendência do processo passaria a afectar a aplicabilidade da norma em causa.
Não é, portanto, procedente o argumento constante da decisão recorrida segundo o qual não existe violação do artigo 282º da Constituição por este preceito só se referir aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, dado que, nos termos desta disposição constitucional, só a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional poderá ter efeitos sobre a vigência das normas em apreciação.
Há assim que concluir que a norma impugnada é também inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 204º e 282º, da Constituição.
III Decisão
11. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 204º e 282º da Constituição, a norma contida no artigo 3º do Código de Processo Penal de 1929 interpretada no sentido de qualificar como 'acção' em que se controverte
'questão prejudicial própria' (relativamente à infracção que é objecto de processo penal perante os tribunais judiciais) o processo de fiscalização abstracta sucessiva pendente no Tribunal Constitucional, em que vem suscitada a questão da inconstitucionalidade da Lei que decretou uma amnistia aplicável aos arguidos naquela causa.
b) Conceder provimento ao recurso e revogar, consequente-mente, a decisão recorrida, a fim de ser reformada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 3 de Março de 1998 Maria Fernanda palma Bravo Serra Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Luis Nunes de Almeida Fernando Alves Correia José manuel Cardoso da Costa