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Processo n.º 318/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo comum colectivo nº 374/08.5JAFTJN, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Cruz, A. foi condenado por acórdão proferido em pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por decisão sumária do Desembargador Relator negou provimento ao recurso.
O arguido reclamou desta decisão para a conferência, tendo sido proferido Acórdão em 8 de Abril de 2010, que indeferiu a reclamação apresentada.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“O, ora, recorrente/arguido pretende e deseja ver apreciada a inconstitucionalidade da norma disposta no artigo 412º, nº 3, al. b) do C.P.Penal, quando interpretada com o sentido e alcance com que foi interpretada no âmbito da decisão, ora, recorrida, ou seja, de que não é inconstitucional a decisão de não reapreciar a prova produzida quando o arguido indica e pede a reapreciação de toda a prova testemunhal produzida, em Sede de Audiência de Discussão e Julgamento, quando a mesma forma um todo lógico e incindível, e que para o Tribunal superior retirar a sua livre convicção de reapreciação tem de ouvir toda a prova testemunhal produzida e não só umas partes de depoimentos e/ou de forma parcelar.
A norma do artigo 412º, nº 3, al. b) do C.P.Penal, quando interpretada, tal qual o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou, aquando da prolação da sentença, objecto de reclamação para a conferência, com o sentido de que se o arguido/recorrente não indicar as provas concretas que pretende ver renovadas, é inconstitucional e violador do disposto no artigo 32º, nº 1, in fine da C.R.P.
Ou seja, a interpretação, supra referida e dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao recurso do arguido/recorrente, limita-o e diminui-lhe as suas garantias de defesa e de recurso, previstas no artigo 32º, nº 1, in fine da C.R.P, e bem assim no nº 2, in fine, do artigo 32º da C.R.Portuguesa.”
Apresentou alegações em que concluiu do seguinte modo:
“O Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador, fez uma interpretação de que o artigo 412º, nº 3, alª b) do C.P.P é de todo incompatível e inconciliável com um pedido de reapreciação e de reaudição de toda a prova testemunhal produzida, no âmbito dos presentes autos.
Tal entendimento do Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador é inconstitucional, por violação e atentar directa e materialmente o disposto no artigo 32º, nº 1 e nº 2, in fine, da C.R.Portuguesa.
O arguido/recorrente, com o fito de dar cumprimento ao disposto no artigo 4l2º, nº 3, alª b e c) conquanto de forma global e total, pediu a renovação de todas as provas testemunhais e, para tanto, indicou a transcrição das mesmas.
O arguido/recorrente, a prevalecer o entendimento do Tribunal da Relação dado ao artigo 412º, nº 3, alª b) e também, alª c), fica diminuído nas suas garantias de defesa e de recurso.
Este entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, violou o disposto nos números um e dois do artigo 32º da C.R.P.
Tendo a norma do artigo 412º, nº 3, alª b) e, também, alª c) do C.P.P sido interpretada e aplicada com o sentido e alcance com que o Tribunal da Relação de Lisboa quer em sede de decisão singular/sumária, quer em sede de decisão conferencial o fez e alcançou, mostra-se ela afectada de inconstitucionalidade material, o que, ora, se invoca.
Assim, em face do supra exposto, e nos termos que V.Exªs hão-de suprir, roga-se a esse mais alto Tribunal se digne declarar inconstitucional o entendimento e interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa de que o artigo 412º, nº 3, alª b) e, também, alª c) do C.P.P é inconcebível e incompatível com um pedido de renovação total e global da prova produzida, em sede de Julgamento em primeira instância.”
O Ministério Público respondeu, tendo concluído o seguinte:
“Pelo exposto ao longo das presentes contra-alegações, julga-se que o presente recurso não deve ser conhecido, por este Tribunal Constitucional, por faltar um dos pressupostos de admissibilidade indispensáveis para a sua apreciação.
Com o efeito, a “dimensão normativa” da questão de constitucionalidade, suscitada pelo requerente, não é coincidente com a ratio decidendi do Acórdão impugnado – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8 de Abril de 2010.
Caso assim se não entenda, julga-se, de qualquer modo, que o recorrente não tem razão na sua argumentação.
Com efeito, o ónus de especificação, por parte do recorrente que questiona a matéria de facto tida por provada, previsto no nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, não tem natureza puramente secundária ou formal – visando apenas uma fácil apreensão do teor da impugnação já deduzida na alegação do recorrente – conexionando-se antes com o adequado cumprimento do próprio ónus de impugnação da decisão proferida.
Ora, o referido ónus de especificação não pode considerar-se satisfatoriamente cumprido sem delimitação precisa do invocado «erro de julgamento» e análise e fundamentação concludentes da incorrecta valoração dos meios de prova efectivamente produzidos em juízo.
Pelo que se deverá, em qualquer caso, negar provimento ao presente recurso.”
Fundamentação
O recorrente pediu a fiscalização de constitucionalidade da norma constante do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada com o sentido de não ser possível a reapreciação da prova produzida quando o arguido indica e pede a reapreciação de toda a prova testemunhal produzida, em sede de audiência de discussão e julgamento, quando a mesma forma um todo lógico e incindível, pelo que para o tribunal superior retirar a sua livre convicção da reapreciação tem de ouvir toda a prova testemunhal produzida e não só umas partes de depoimentos.
O Ministério Público pronunciou-se nas suas alegações pelo não conhecimento do mérito do recurso interposto, sustentando que a interpretação normativa cuja constitucionalidade o arguido pretende ver apreciada não coincide inteiramente com o critério sustentado na decisão recorrida.
O arguido interpôs recurso da sentença de 1.ª instância que o condenou numa pena de prisão impugnando a matéria de facto dada como provada nos pontos 6 e 11 do acórdão recorrido, com o argumento, além do mais, de que os meios de prova produzidos conduziam a conclusão diferente. Terminou, após pedir a substituição do acórdão recorrido por outro que o absolva ou, subsidiariamente, o condene num pena com execução suspensa, requerendo o seguinte:
“Roga-se a V. Exª se dignem, posto e visto que a prova dos depoimentos prestados no processo 374/08.5JAFUN do 1.º Juízo do Tribunal judicial de Santa Cruz, forma um todo lógico e incindível, e que só uma renovação de toda a prova, para sua posterior avaliação, segundo critérios de experiência comum, é que permitirá alicerçar conclusões seguras diversas das que foram dadas como provadas, renovar toda a prova testemunhal e documental produzida em audiência de discussão e julgamento, artigo 412.º, n.º 3, c), do C.P.P., o que só se fará de modo conveniente através de reenvio (artigo 430.º, n.º 1, do C.P.P., a contrario).
Roga-se a V.Exª se dignem realizar tal qual dimana do artigo 411.º, n.º 5, do C.P.P. audiência de discussão e julgamento, para debater-se e aprofundar-se os factos 6.º e 11º do acórdão condenatório, sob o capítulo dos factos provados do acórdão recorrido”.
O Desembargador Relator rejeitou o recurso na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto por ter entendido que as alegações apresentadas pelo Recorrente não davam cumprimento ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e 4, do CPP, por não conterem uma especificação das provas que impunham decisão diversa da adoptada.
Tendo o arguido reclamado desta decisão para a conferência, foi proferido acórdão que indeferiu a reclamação nessa parte, com a seguinte fundamentação:
“Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal “a quo” quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acs. do STJ de 14 de Março de 2007, Processo 07P21 e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, acessíveis em www.dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, é que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artº 412º, nº 3, do CPP:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º do CPP).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 6 do artº 412º, do CPP). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411º, nº 4.
Como realçou o STJ, em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo 07P4375, acessível em www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do nº 3 do citado artº 412º.
Ora, como decidido na decisão sumária reclamada, o reclamante não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado e previsto nos nºs 3, al. b) e 4, do artº 412º, do CPP.”
Da leitura deste excerto resulta que a decisão recorrida interpretou o conteúdo das alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente como um pedido de reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos com vista a alterar parte da matéria de facto considerada provada, tendo decidido que esse pedido de reapreciação global da prova produzida não era admissível por não satisfazer as exigências contidas no artigo 412.º, n.º 3, alínea b) e 4, do CPP.
Contudo, contrariamente ao que consta do critério normativo enunciado pelo recorrente no seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a decisão recorrida nunca assumiu que nesse caso a prova testemunhal produzida, em sede de audiência de discussão e julgamento, formava um todo lógico e incindível, pelo que para o Tribunal superior retirar a sua livre convicção da reapreciação tinha de ouvir toda a prova testemunhal produzida e não só umas partes de depoimentos.
Esse juízo corresponde apenas à alegação do Recorrente quando pediu a “renovação de toda a prova” no recurso interposto para o Tribunal da Relação, não tendo o mesmo sido acolhido implícita ou explicitamente pelo acórdão recorrido.
Verificando-se que o critério normativo, cuja constitucionalidade o Recorrente pretende ver apreciada, contém esse pressuposto, ele não é coincidente com o critério seguido pela decisão recorrida, pelo que falta um requisito essencial ao conhecimento do recurso constitucional em fiscalização sucessiva concreta.
Atenta a natureza instrumental deste recurso, o mesmo só deve ser conhecido quando o critério normativo cuja fiscalização se peticiona integra a ratio decidendi da decisão recorrida, uma vez que só assim o recurso terá um efeito útil. Na verdade, se aquele critério não foi fundamento da decisão recorrida, o juízo sobre a sua constitucionalidade será perfeitamente inócuo relativamente a essa decisão, nunca podendo conduzir à sua reforma.
Por estas razões não deve ser conhecido o mérito deste recurso.
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Decisão
Pelo exposto não se conhece do mérito do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A. do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes autos em 8 de Abril de 2010.
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Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 12 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 3, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.