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Proc. nº 316/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. P., casado, advogado, residente na Av.V.V., nº...,... andar .., em Lisboa, propôs em 15 de Maio de 1992 acção de despejo, com processo sumário, contra A., oficial do Exército, e sua mulher identificada como M., residentes na R.C. de B., lote ..., ... andar esquerdo, em O., Lisboa. Alegou que era comproprietário da fracção autónoma locada aos réus há mais de cinco anos e que tinha um filho maior que vivera como emigrante no Brasil durante 16 anos, tendo regressado a Portugal em meados de 1992 e passando a viver em casa dos pais. Com invocação do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 69º do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), formulou o pedido de denúncia do contrato de arrendamento, a fim de o filho em causa poder passar a residir no locado, tanto mais que este pretendia casar.
O réu marido não pôde ser citado na acção, distribuída ao 17º Juízo Cível de Lisboa, por ter falecido antes da propositura da mesma (em 4 de Fevereiro de 1978). A viúva, com o nome de Am., veio a contestar a acção de despejo, suscitando desde logo a questão de inconstitucionalidade do art. 69º, nº 1, alínea a), do R.A.U., em virtude de a lei de autorização legislativa que habilitou o Governo a elaborar o Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro
(diploma que aprovou o R.A.U.) não ter previsto tal inovação, antes constando do art. 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, que o diploma autorizado devia obedecer, entre outras, à directriz de 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário' (alínea c)). Sofreria, assim, o artigo em causa do R.A.U. de inconstitucionalidade orgânica por violação da alínea h) do nº 1 e do nº 2 do art. 168º da Constituição. Na mesma contestação, a ré suscitou as questões de ilegitimidade do A. por preterição de litisconsósio necessário e da sua própria ilegitimidade, em virtude de a acção não ter sido dirigida contra o seu segundo marido, J.. Defendeu-se ainda por impugnação.
Houve resposta à contestação, vindo depois a ser requerida a intervenção principal nos autos do segundo marido da Ré, após o A. ter desistido da instância quanto ao falecido A.
Veio a ser proferido despacho saneador e foram organizadas especificação e questionário (a fls. 61 a 63 dos autos). Após a decisão de reclamações, a ré e o marido interpuseram recurso do despacho saneador, o qual foi admitido por despacho de fls. 89. Nas respectivas alegações desenvolveram a questão de constitucionalidade por eles suscitada na contestação (a fls. 111 a 126 dos autos).
Realizado o julgamento, veio a acção a ser julgada procedente e provada, tendo na sentença final o Juiz da causa considerado que não procedia a questão de constitucionalidade suscitada (a fls. 192 a 199 vº).
Inconformados, interpuseram recurso de apelação os réus, tendo continuado a sustentar nas suas alegações a procedência da questão de constitucionalidade deduzida antes, além de outras questões atinentes à defesa apresentada.
Através de acórdão proferido em 3 de Outubro de 1995, a Relação de Lisboa negou provimento aos recursos de agravo e de apelação interpostos pelos réus. Sobre a questão de constitucionalidade suscitada, pode ler-se nesse acórdão:
' Com efeito, diz-se ali [na intervenção do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, na discussão parlamentar da proposta de lei de autorização legislativa] que não é chegada a altura de mexer, de forma profunda, nos contratos e na legislação referente aos contratos de arrendamento passados, o que significa, sem sombra de dúvida, que o Governo podia alterar, de forma não profunda, os contratos de arrendamento passados. Por sua vez, a interpretação, mesmo literal, da alínea b) do citado art. 2º [da Lei nº 42/90] levou-nos também a essa conclusão. Na verdade a simplificação dos regimes relativos à formação,
às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento desse instituto, demonstra que o Governo pode legislar sobre o regime de arrendamento urbano e rural desde que não liberalize as denúncias desses contratos. Foi isso mesmo que se quis evitar com a expressão «preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário[»].
Assim continuou o senhorio impossibilitado de rescindir o contrato de arrendamento a seu bel-prazer, ficando, pois, garantido o inquilino que o seu contrato de arrendamento se manteria em vigor e só poderia ser extinto por qualquer das causas previstas na Lei-R.A.U..
Diga-se ainda que quer a Lei que autorizou o Governo a legislar, quer a que este publicou no exercício dessa autorização, não estabelece qualquer distinção entre arrendamentos pretéritos e arrendamentos actuais, como pretendem os agravantes, nem se compreendia que o fizesse.
Com efeito, a inquilinos com direitos adquiridos, tinham que lhes ser respeitados, dado o disposto no artigo 12º do Cód. Civil.
Foi isto que aconteceu com o disposto na alínea b) do art. 107º do R.A.U., em que se proíbe ao senhorio de denunciar o contrato se o arrendatário se mantiver no local arrendado há mais de 30 anos, nessa qualidade.
O prazo anterior era de 20 anos e se o inquilino, à data da entrada em vigor do RAU, se mantinha no local arrendado há mais de 20 anos, já havia adquirido o direito a manter-se no arrendado e consequentemente o referido na alínea b) do art. 107º já não lhe era aplicável.
Essa a razão pela qual dissemos que o Decreto-Lei RAU não faz qualquer referência a contratos passados ou actuais, mas apenas a contratos.
Verifica-se, assim, que a directriz que impunha a preservação de regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário é compatível com a alteração do regime jurídico de cessação do contrato de arrendamento e consequentemente temos de concluir que não há a invocada inconstitucionalidade.'
(a fls. 266 vº a 267 vº)
Inconformados com este acórdão, vieram os RR. recorrentes dele interpor recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, indicando como objecto do recurso a questão de
(in)constitucionalidade do art. 69º, nº 1, alínea a), 2ª parte, da R.A.U., por o diploma autorizado ter excedido 'a directriz contida na alínea c) do art. 2º da Lei nº 42/90', não se contendo 'no «sentido e extensão» da autorização legislativa' (a fls. 272 dos autos).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 275, com efeito devolutivo.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações, os recorrentes apresentaram as seguintes conclusões:
'a) A presente acção tem como fundamento a necessidade do prédio para habitação de um descendente em 1º grau do A., com referência ao artº 69º, nº 1, alínea a) do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro;
b) O contrato de arrendamento para habitação cuja denúncia é pedida nesta acção
é de 27 de Outubro de 1975, sendo portanto muito anterior à publicação do RAU em
1990;
c) O Decreto-Lei nº 321-B/90, e o RAU por ele aprovado, foram publicados ao abrigo da autorização legislativa constante da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, cujo art. 2º, alínea c) determinava como limite «a preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário»;
d) O art. 69º, nº 1, alínea a) do RAU veio facultar ao senhorio o direito de denunciar o contrato de arrendamento para habitação por necessidade da casa para habitação dos seus descendentes em 1º grau, direito antes inexistente;
e) Quer a vontade expressa na Assembleia da República pelo Governo legislador, quer o sentido e extensão definidos na autorização legislativa contida na Lei nº
42/90, mostram que o RAU não é aplicável aos arrendamentos pretéritos para habitação sempre que não preserve as regras socialmente úteis e ocasione uma redução da protecção ou tutela legal do arrendatário;
f) O art. 69º, nº 1, alínea a) do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de
15 de Outubro, é assim inconstitucional quando aplicado a arrendamentos habitacionais de pretérito, como aconteceu, porque excede os limites da autorização legislativa contida na Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, e colide com o art. 168º, nº 1, alínea h) e nº 2 da Constituição da República;
g) Em consequência deve ser dado provimento ao recurso, com todos os efeitos legais.' (a fls. 292-293 dos autos)
O recorrido, por seu turno, apresentou alegações em que sustentou que devia ser mantido o efeito atribuído ao recurso pelo Tribunal da Relação e que não estava afectada de inconstitucionalidade a norma impugnada pelos recorrentes. Segundo o entendimento por ele perfilhado, o direito à habitação reconhecido pela Constituição 'não é susceptível de conferir, por si mesmo, ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio denuncie o contrato quando necessitar do prédio para a sua habitação' (conclusão 26ª), sendo um direito 'sob a reserva do possível', que o legislador pode alterar no tempo, visando as normas sobre a denúncia do contrato de arrendamento para a habitação 'resolver um conflito entre o direito à habitação do inquilino e o direito de habitação do senhorio' (conclusão 31ª). Através da Lei nº 42/90, o legislador governamental 'ficou credenciado para eliminar as regras que, embora visando a defesa do arrendatário, se revelassem socialmente imprestáveis'
(conclusão 33ª), sendo a até aí existente 'impossibilidade de o senhorio denunciar o contrato por necessidade de habitação de seu descendente em 1º grau
[...] uma regra socialmente imprestável, tendo o legislador ficado credenciado para a modificar' (conclusão 34º), não obstante manter 'os principais traços e sentido do regime vinculístico do contrato de arrendamento, nomeadamente a tipicidade das causas de extinção do contrato e a necessidade de, em certos casos, a cessação da relação locatícia ter lugar obrigatoriamente em acção judicial' (conclusão 35ª). Tratando-se de uma norma de aplicação retrospectiva, não se poria a questão da 'violação do princípio da confiança' (conclusão 39ª). Tendo já o revogado art. 1098º, nº 2, do Código Civil consagrado o direito de denúncia do senhorio, tomando 'em consideração as necessidades de habitação da família do senhorio' (conclusão 43ª), há-de concluir-se que 'o alargamento da faculdade de disposição do senhorio relativamente ao imóvel de que é proprietário, induzida pela norma em causa, foi concretizado através de um critério objectivo e extremamente restritivo' (conclusão 44ª).
3. Através do acórdão nº 877/96, proferido em 9 de Julho de 1996 (a fls.
354 a 358 dos autos), foi decidido alterar o efeito do recurso de constitucionalidade, fixando-se o efeito suspensivo. Este acórdão transitou em julgado.
4. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
5. Constitui objecto do recurso a questão da constitucionalidade do art.
69º, nº 1, alínea a), 2ª parte, do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, invocando os recorrentes que essa norma é inconstitucional organicamente, em virtude de, quanto à mesma, o Governo ter, ao editá-la, excedido 'a directriz contida na alínea c) do art. 2º da Lei nº 42/90, [de 10 de Agosto,], não se contendo no
«sentido e extensão» da autorização legislativa' (a fls. 272 dos autos).
Os recorrentes não impugnaram a conformidade substantiva da inovação relativamente à Constituição limitando-se a pôr em causa a possibilidade de o Governo editar essa norma como aplicável aos contratos celebrados no domínio de leis anteriores, atento o disposto no art. 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, (versão de 1989), uma vez que a lei de autorização legislativa era omissa quanto à inovação. Nessa medida, discordaram do ponto de vista adoptado sobre a questão pelas instâncias, idêntico ao propugnado pelo autor ora recorrido.
Embora o Tribunal Constitucional não esteja vinculado aos fundamentos de inconstitucionalidade quanto a certa norma juridica invocada pelo recorrente
(cfr. art. 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional), no presente processo limitar-se-á o mesmo a analisar a questão de constitucionalidade com fundamento na violação da alínea h) do nº 1 do art. 168º da Constituição, atendendo a que tem, de um modo reiterado, sido julgada conforme à Constituição a faculdade de o senhorio denunciar o contrato de arrendamento para habitação, verificados os pressupostos legais (acórdãos nºs. 131/92 e 174/92, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 505 e segs., 647 e segs., e Boletim do Ministério da Justiça, nº 417, pág. 196, respectivamente; sobre esta jurisprudência, veja-se Ana Paula Ucha, Direitos Sociais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, ob. colectiva, Lisboa, 1993, págs.
238-239).
III
6. Dispõe o art. 69º, nº 1, alínea a), do R.A.U. (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto, a qual não difere substancialmente da vigente à data da propositura da acção de despejo):
'1. Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89º-A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou a sua renovação nos casos seguintes:
a) Quando necessite do prédio para sua habitação, ou dos seus descendentes em 1º grau, ou para nele construir a sua residência.'
Por seu turno, a Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, dispõe nos seus arts. 1º e
2º, na parte relevante quanto a este último preceito: Artigo 1º - 'É concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano.'
Artigo 2º - 'As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes:
a) Codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade;
b) Simplificação dos regimes relativos à formação, às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento desse instituto;
c) Preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário [...].'
7. Comentando o art. 69º do R.A.U., logo em 1990, António Menezes Cordeiro e Francisco Castro Fraga afirmaram que esse preceito correspondia ao art. 1096º do Código Civil, 'com uma inovação de grande significado: o senhorio pode não só denunciar o contrato de arrendamento quando ele próprio necessite do prédio, mas também quando os seus descendentes em primeiro grau dele necessitem'. Na opinião destes comentadores, tal inovação era 'inteiramente de aplaudir: na verdade, entre o interesse do inquilino em manter a utilização do locado e o do senhorio em conseguir habitação para os seus filhos, é de justiça que a lei dê maior protecção a este último quando o senhorio seja proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio (cfr. o artigo 71º)' (Novo Regime do Arrendamento Urbano Anotado, Coimbra, 1990, pág. 115).
É, assim, indiscutível que se trata de uma inovação significativa, relativamente ao direito anterior (Código Civil de 1966, diploma que reproduzia a solução da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948).
8. Importa, igualmente, pôr em relevo que a discussão sobre os titulares e beneficiarios do direito de denúncia do arrendamento é clássica na História do Direito Privado português.
O Livro IV, Título XXIV, das Ordenações Filipinas admitia como causa de despejo imediato a situação em que 'o senhor da casa por algum caso que de novo lhe sobreveio, a ha mister para morar nela, ou para algum seu filho, irmão ou irmã, porque nestes casos poderão lançar o alugador fora durante o tempo de aluguer, pois lhe era tão necessário, pelo caso que de novo lhe sobreveio, de que não tinha razão de cuidar ao tempo que a alugou' (transcrito em M. Januário Costa Gomes, Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., Coimbra, 1996, pág. 304).
A partir da legislação vinculística surgida durante e após a 1ª Guerra Mundial, restringiu-se fortemente a possibilidade de despejo dos prédios arrendados para habitação.
Durante a preparação da Lei nº 2030, o projecto da lei do Deputado Sá Carneiro previa como fundamento de despejo a necessidade de o senhorio necessitar da casa para sua habitação ou para a dos seus ascendentes ou descendentes, solução que chegou a ser aceite no Parecer da Câmara Corporativa sobre a referida proposta. A medida inovatória, porém, veio a ser abandonada dadas as críticas surgidas, nomeadamente do advogado e parlamentar Tito Arantes
(veja-se a notícia referida por M. Januário Costa Gomes, ob. cit., pág. 305). A solução que passou a constar da alínea b) do art. 69º da Lei nº 2030 transitou para o Código Civil de 1966, tendo, pois, vigorado durante mais de cinquenta anos qua tale e, na prática, mais de setenta anos (cfr. Jorge H. C. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, págs. 173 e segs.; M. Januário Costa Gomes, ob. cit., págs. 304-306).
9. O cerne da questão de constitucionalidade que foi submetida ao Tribunal Constitucional consiste em saber se o legislador governamental dispunha de habilitação parlamentar para editar tal solução, alargando aos descendentes do senhorio o elenco dos necessitados do locado para aí instalarem a respectiva residência, em termos de o senhorio poder denunciar judicialmente o contrato de arrendamento para proceder à instalação dos seus descendentes no imóvel ou fracção em causa.
10. Desde a revisão constitucional de 1982, entra na competência reservada da Assembleia da República (reserva relativa) o 'regime geral do arrendamento rural e urbano' (art. 168º, nº 1, alínea h), da Constituição; actualmente e após a 4ª revisão constitucional de 1997, regula a matéria o art.
165º, nº 1, alínea h)).
Interpretando esta norma, indicam Gomes Canotilho e Vital Moreira que esta reserva não abrange 'eventuais regimes especiais [que] sejam definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas assembleias das regiões autónomas), nos pontos indicados pela própria lei, com respeito pelos princípios fundamentais do regime geral [...]. Dentre estes princípios conta-se seguramente o regime de celebração do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das partes (cfr. Ac. TC nº 77/88) e ainda a fixação do montante da renda e respectivos critérios (cfr. Ac. TC nº 245/89). Em qualquer caso, trata-se, entre outras coisas, de dar execução às directivas constitucionais do art. 65º-3
(arrendamento urbano) e do art. 99º-1 (arrendamento rural)' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 673-674).
No referido acórdão nº 77/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 361 e segs.), teve ocasião o Tribunal Constitucional de precisar o que entrava na competência reservada do órgão parlamentar em matéria de regime geral de arrendamento rural e urbano, nos seguintes termos:
' Refere-se ele [o dispositivo da alínea h) do nº 1 do art. 168º da Constituição] ao «regime geral do arrendamento rural e urbano» - numa fórmula que encontra paralelo na das alíneas d) e e) do mesmo artigo (ambas tratando igualmente de regime geral), e é diferente da das alíneas f), g) ou n), por exemplo, as quais incluem na reserva apenas as «bases» dos correspondentes regimes. Ora, logo este ponto de partida textual mostra que a reserva em causa não se limita à definição dos «princípios», «directivas» ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das «bases» respectivas), mas desce ao nível das próprias «normas» integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de
«arrendamento rural e urbano», nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras
(imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência, e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é «regime jurídico» dessa figura negocial. Por outras palavras e em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no
âmbito contratual em causa.' (vol. cit., pág. 367)
11. A Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, foi sujeita a fiscalização de constitucionalidade, no plano abstracto, pelo Tribunal Constitucional.
Nessa ocasião, o Tribunal Constitucional não considerou que as alíneas do art. 2º da Lei questionadas pelos Deputados requerentes do pedido de fiscalização violassem o nº 2 do art. 168º da Constituição.
Relativamente à alínea c) desse art. 2º - norma invocada no acórdão recorrido como habilitando o legislador a consagrar a referida inovação, tal como preconizou o ora recorrido - afirmou o Tribunal Constitucional, embora por maioria, que dele resultava um sentido suficiente para a autorização conferida ao legislador governamental:
' Pois bem: dizer que o Governo, no decreto-lei que vier a editar para codificar a legislação existente, há-de preservar as «regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário» é definir, com suficiente clareza, o sentido da autorização legislativa e a respectiva extensão.
De facto, a autorização comporta o entendimento de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando, embora, a defesa do arrendatário, no entanto, se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente, porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.'
(acórdão nº 311/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pág. 222)
Neste acórdão, o Tribunal Constitucional ocupou-se da validade ou invalidade constitucional dessa norma da lei autorizadora, procurando saber se dela ressaltava um sentido e extensão da autorização conformes às exigências do nº 2 do art. 168º da Constituição. Embora nessa perspectiva, o Tribunal Constitucional referiu, a título de exemplo, algumas das soluções do R.A.U., entretanto publicado, que teve como desenvolvimentos da directriz conferida pelo Parlamento ao Governo: manutenção do arrendamento urbano como contrato obrigatoriamente renovável (art. 98º do RAU), conservação da regra imperativa da fixação da renda em escudos, manutenção da regra de que as rendas só são actualizáveis nos termos previstos na lei e da regra da transmissão do arrendamento para o cônjuge do arrendatário em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens. Do mesmo passo, o legislador governamental, habilitado por essa directriz, criara validamente um regime de transmissão do arrendamento em caso de morte do arrendatário e de um regime de atribuição do direito à celebração do novo arrendamento relativamente a pessoas conviventes com o arrendatário ou o subarrendatário, que não tivessem laços familiares estreitos, mantendo o direito de preferência do arrendatário em caso de alienação do imóvel locado, bem como a regra da tipicidade das causas de extinção do contrato e da necessidade de recurso obrigatório a acção judicial para fazer cessar, em certos casos, a relação locatícia; e, ainda, a conservação dos fortes condicionamentos ou impedimentos à possibilidade de denúncia do contrato pelo senhorio.
Na mesma decisão, a par das soluções de conservação, indicou o Tribunal certas soluções eliminatórias que teve por baseadas nessa directriz: legitimidade da inovação da nulidade do contrato, por falta de forma, restrita ao arrendatário; eliminação da possibilidade de diferimento judicial da desocupação do locado em caso da inércia do réu.
Mas o acórdão nº 311/93 recordou igualmente que, não obstante a reserva parlamentar constante da alínea h) do nº 1 do art. 168º da Constituição não ser
'esgotante e absoluta', o acórdão nº 77/88 havia enunciado a regra de que a mesma reserva devia ser entendida:
' [...] como respeitante unicamente aos aspectos significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos do regime legal do contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja puramente adjectivo ou processual.
Como quer que seja, à Assembleia da República estará sempre reservada a definição das regras materiais aplicáveis à generalidade dos contratos de arrendamento rural e urbano, e tenham estes últimos como finalidade a habitação ou quaisquer outros fins [...]'
12. Nos exemplos de inovação através de eliminação da regra anterior que o acórdão nº 311/93 trouxe à colação figuram aspectos apenas de ordem adjectiva ou processual (legitimidade para arguição da nulidade do contrato por falta de forma; supressão do diferimento judicial da desocupação do locado, em caso de inércia do réu).
Poder-se-á, então, sustentar que a nova possibilidade de denúncia do contrato para o termo da sua vigência decorrente da ampliação do elenco das pessoas que necessitam do andar locado para habitação - aspecto indiscutivelmente substantivo da regulamentação, tanto mais que não é modificada a legitimidade processual do senhorio para requerer a denúncia judicial do contrato - se poderá reconduzir à directriz da 'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'?
Januário Costa Gomes põe em causa tal possibilidade interpretativa, nos seguintes termos:
' Aparentemente, a previsão de denúncia com fundamento em necessidade do prédio para habitação dos descendentes em 1º grau, não terá estado, desde o início, na ideia do legislador. Na verdade, essa previsão não constava do texto do projecto
(que terá «circulado» pelos ministérios mas não, e estranhamente, pela
«comunidade jurídica»), mas o mais sintomático é o facto - gerador de fortes suspeitas de inconstitucionalidade orgânica da medida inovadora - de a minuciosa Lei nº 42/90,de 10 de Agosto (que deu ao Governo autorização legislativa para aquele que viria a ser o R.A.U.), não elencar nas 13 alíneas do seu art. 2º a inovação ora em causa, não parecendo também que a mesma tenha a cobertura das directrizes «genéricas» do mesmo preceito, como sejam as constantes das alíneas a), b), c) e g).
As suspeitas de inconstitucionalidade orgânica não ficam ultrapassadas com o Ac. do Tribunal Constitucional de 28 de Abril de 1993 (D.R. II, de 22-07-93 e B.M.J. 426º, 93) que decidiu não declarar a inconstitucionalidade das alíneas a), b), c), e), g), h), i) e m) do art. 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto'
(ob. cit., pág. 306; a referência à alinea g) do art. 2º da Lei nº 42/90 compreende-se na medida em que aí se consagra a directriz de 'estabelecimento da tramitação processual adequada à realização dos objectivos fixados na lei substantiva).'
No mesmo sentido da inconstitucionalidade se pronunciou igualmente António Sequeira Ribeiro, Sobre a Denúncia no Contrato de Arrendamento Urbano para Habitação, Lisboa, 1996, págs. 82-84.
13. Entende o Tribunal Constitucional que a inovação constante da 2ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 69º do R.A.U. não está coberta pela autorização legislativa, devendo entender-se que a mesma é inconstitucional por violação da alínea h) do nº 1 do art. 168º da Constituição (versão de 1989).
A cessação do contrato do arrendamento para habitação permanente - contrato obrigatoriamente renovável quando não seja estipulado um prazo, nos termos admitidos apenas pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, e mantidos pelo R.A.U. - através de denúncia do senhorio, acto unilateral que prescinde de qualquer acordo por parte do inquilino, é matéria que há-de necessariamente constar de uma regra de natureza substantiva relativa às 'condições e causas da sua extinção', matéria integradora, portanto, do 'regime jurídico' dessa figura negocial. Ora, como se afirmou no citado acórdão nº 77/88, 'cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa' (cfr. supra, nº
10).
A directriz parlamentar invocada no acórdão recorrido e nas alegações do senhorio recorrido tem o sentido de habilitar o legislador governamental a manter ou preservar as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário e que constavam da legislação vinculística anteriormente em vigor, podendo eliminar as que se revelarem 'socialmente imprestáveis', nomeadamente no plano puramente adjectivo ou processual.
Não pode, porém, tal directriz, formulada nos termos amplos e algo vagos em que está, habilitar o legislador governamental a introduzir uma inovação que, na elaboração da Lei nº 2030, suscitara vivo debate na Assembleia Nacional do regime político deposto em 25 de Abril de 1974. De facto e como tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência do Tribunal Constitucional, com o apoio da doutrina constitucional nacional, a lei de autorização legislativa há-de conter a orientação que deverá presidir à elaboração da legislação respectiva:
'se este sentido não há-de corresponder a uma enumeração minuciosa de todos os aspectos a regulamentar, sob pena de conter em si próprio o texto legislativo em questão não poderá, todavia, deixar de conter de forma clara uma enumeração que possa servir de parâmetro e medida dos actos delegados' (acórdão nº 411/96, in Diário da República, II Série, nº 163, de 16 de Julho de 1996, reproduzindo afirmações reiteradas na jurisprudência do Tribunal Constitucional).
A solução de conferir ao senhorio a possibilidade de denunciar o arrendamento não só para ele ocupar o arrendado, dadas as necessidades próprias e da sua família (possibilidade reconhecida pelo art. 1098º do Código Civil) mas ainda para um seu descendente em 1º grau ocupar o arrendado, dadas as necessidades de habitação deste último, introduz uma significativa inovação que excede o quadro lógico da 'preservação/eliminação' de regras socialmente úteis da posição vinculística do arrendatário. Com outro entendimento, deixaria de se reservar à Assembleia da República a definição dos pressupostos, condição e limites do exercício da autonomia privada no domínio do contrato de arrendamento, nomeadamente no que toca ao regime da cessação do contrato de arrendamento (cfr., no mesmo sentido, os recentes acórdãos nºs. 1019/86 e
1080/96, também em matéria de arrendamento urbano, in Diário da República, II Série, nº 289, de 14 de Dezembro de 1996, e nº 298, de 26 do mesmo mês e ano, respectivamente).
Contra este entendimento se pronuncia Jorge Aragão Seia na 3ª edição, revista e actualizada, da sua obra, Arrendamento Urbano - Anotado e Comentado, Coimbra, 1997, págs. 69-70. Este autor considera que a 'preocupação do Legislador com os familiares mais próximos do senhorio não era nova, tendo inspirado algumas normas do Código Civil' (nomeadamente, arts. 1098º, nº 2, e
1109º, nº 1, alínea a) e nº 3), facto que o leva a admitir que o legislador do Código Civil tivesse querido, 'encobertamente', adquirir para este diploma a velha solução das Ordenações que inspirara o Projecto Sá Carneiro atrás aludido. Invoca mesmo a existência de decisões de tribunais de 1ª instância relativamente numerosas que permitiam que o elo de economia comum não subsistisse, após ter funcionado a denúncia do arrendamento pelo senhorio, tendo passado os familiares a viver com autonomia. Mas as razões que aduz não eliminam o carácter verdadeiramente inovador da solução, sendo certo que, no domínio do Código Civil de 1966, não se encontram decisões publicadas que admitissem a possibilidade de se operar a denúncia, em momento inicial, para a exclusiva habitação de familiares do senhorio, sendo sintomático que o autor do anteprojecto do RAU, Menezes Cordeiro, qualifique de verdadeira inovação a solução em causa. Por outro lado, e contrariamente ao afirmado por este autor, o acórdão nº 311/93 do Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre o diploma autorizado, mas sobre o diploma autorizador, não tendo versado especificamente a solução agora discutida. É, assim, seguro que não existiam contradições ou lacunas que pudessem ser preenchidas pelo legislador governamental ao abrigo da alínea a) do art. 2º da Lei nº 42/90.
14. Não dispondo o legislador governamental de autorização para ampliar o elenco das causas de cessação do contrato de arrendamento, o art. 69º, nº 1, alínea a), na parte em que contempla as descendentes em 1º grau do senhorio, é inconstitucional por invadir o domínio da reserva parlamentar contido no art.
168º, nº 1, alínea h), da Constituição (versão de 1989). IV
15. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, julgando inconstitucional a norma do art. 69º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio, por violação da alínea h) do nº 1 do art.
168º da Constituição (versão de 1989), devendo o acórdão recorrido ser reformulado em consonância com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes De Almeida José Manuel Cardoso da Costa