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Proc. nº 368/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos autos à margem identificados, vindos do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, em que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO e recorridos M... e S..., LDA, o Senhor Juiz do 4º Juízo do Tribunal de Pequena Instância de Lisboa julgou-se incompetente para apreciar um recurso interposto pela segunda recorrida de uma decisão da comissão de avaliação que actualizou a renda do locado, a requerimento da primeira recorrida.
Nos termos do despacho proferido em 17 de Abril de 1997, o referido Magistrado pôs em destaque a norma do art. 77º, nº 1, da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), na redacção introduzida pela Lei nº 24/92, de 20 de Agosto, que dispõe que os tribunais de pequena instância cível apenas têm competência para preparar e julgar causas cíveis a que corresponda a forma de processo sumaríssimo ou as causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil às quais corresponda processo especial e cuja decisão não seja susceptível de recurso ordinário. E, para determinar a competência do Tribunal para apreciar os termos do recurso, foi analisar a conformidade constitucional do § único do art. 15º do Decreto nº 37.021, de 21 de Agosto de 1948, disposição introduzida pelo Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, concluindo que a circunstância dessa norma ter sido editada por decreto regulamentar a tornava supervenientemente inconstitucional, por tratar de matéria de direitos, liberdades e garantias e de competência dos tribunais (art. 168º, nº 1, alíneas b) e q), da Constituição, na versão da 2ª Revisão Constitucional). Nesse despacho sustentou-se mesmo que o disposto no art. 57º da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948 - norma que estatui que as disposições reguladoras da avaliação dos prédios urbanos e dos respectivos recursos serão estabelecidas por decreto dos Ministérios da Justiça e das Finanças - teria caducado pelo facto de ter sido editado o Decreto nº
37021 ou se teria tornado supervenientemente inconstitucional, a partir da publicação da Constituição de 1976 (art. 167º, alínea b), da versão originária). E afirmou-se que, 'estabelecendo o art. 20º da C.R.P., como direito fundamental, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, nele encontra-se integrado não só o acesso aos tribunais de primeira instância bem como o acesso aos próprios tribunais de recurso' (a fls. 72 dos autos).
2. O relator elaborou exposição, nos termos do art. 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional considerando que se tratava de questão simples, na medida em que, através do acórdão nº 270/95, tirado por unanimidade, se havia julgado que a norma desaplicada por inconstitucionalidade não violava a invocada garantia do duplo grau de jurisdição, nem tão-pouco a alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição (na versão vigente à data da edição do Decreto Regulamentar nº 1/86).
Reitera-se este entendimento sobre a não inconstitucionalidade pelos fundamentos apontados, chamando, desde já a atenção para que a norma do § único do art. 15º do Decreto nº 37021 foi desaplicada antes da apreciação do recurso, por se considerar que o valor da causa excedia a alçada da Relação.
3. A circunstância de a norma ter sido desaplicada de forma liminar, no momento de determinação da competência para conhecer do recurso interposto da decisão de uma comissão de avaliação, mostra que, no despacho recorrido, o Juiz do Tribunal de Pequena Instância atendeu ao modo como se havia desenrolado o litígio entre a senhoria e a sociedade inquilina.
De facto, no requerimento que desencadeou o pedido de avaliação extraordinária, a senhoria alegou que a renda paga pela sociedade inquilina era de 20.939$00 mensais, considerando que a renda justa para a fracção devia ser a de 300.000$00 mensais. Na contestação do pedido, a demandada suscitou a questão da ilegalidade do próprio pedido de avaliação extraordinária, face ao disposto no art. 5º, nº 4, do Decreto-Lei nº 436/83, de 19 de Dezembro. Por mera cautela sustentou que, a ser legal a avaliação extraordinária, a renda a fixar não deveria ultrapassar os 50.000$00 mensais. Através de decisão da comissão de avaliação foi fixada a renda mensal em 182.000$00 mensais (anuidade de
2.184.000$00).
Ao interpor recurso desta decisão, a sociedade inquilina sustentou que o pedido de avaliação era ilegal por já ter ocorrido em 1982 uma avaliação extraordinária ao abrigo do art. 4º do Decreto-Lei nº 330/81, de 4 de Dezembro. Por cautela, continuou a defender que a actualização da renda não devia ser fixada de modo a que fosse excedido o valor de 600.000$00 anuais. A senhoria sustentou a legalidade da decisão de correcção da renda.
Conclui-se, pois, que o valor da causa fixado na anuidade da renda actualizada (2.184.000$00) - (cfr. fls. 68 e 69 dos autos) ultrapassa a alçada do Tribunal da Relação (segundo o art. 20º, nº 1, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais tal valor é presentemente de 2.000.000$00) e a sucumbência ultrapassa metade do valor da alçada do tribunal de comarca (2.184.000$00 -600.000$00 =
1.584.000$00), pelo que, à partida, a questão poderia, em termos normais, ir até ao Supremo Tribunal de Justiça (art. 678º, nº 1, do Código de Processo Civil).
4. O Tribunal Constitucional pode conhecer de outros fundamentos de inconstitucionalidade, ainda que não alegados pelas partes ou suscitados ex officio pelo juiz a quo, relativamente às questões de constitucionalidade que sejam objecto do recurso (cfr. art. 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional).
Ora no caso sub judicio - e diferentemente do que ocorreu no caso sobre o qual foi tirado o citado acórdão nº 270/95 - verificam-se duas circunstâncias especialmente atendíveis:
- por um lado, está suscitada uma questão de natureza jurídica que excede a mera reapreciação de uma decisão resultante de um juízo de discricionariedade técnica da comissão de avaliação sobre o valor de mercado da renda para certa fracção destinada ao exercício de profissão liberal;
- por outro lado, o valor da anuidade da renda fixada (é este o valor normal a que se atende nas acções de despejo - cfr. art. 307º, nº 1, do Código de Processo Civil) excede a alçada dos Tribunais da Relação.
Por força da conjugação destas duas circunstâncias, entende-se que viola o princípio da igualdade a solução constante da norma desaplicada, por força da qual não poderá haver recurso, em caso algum, de decisão proferida pela primeira instância, independentemente do valor do processo, quando esteja em causa a própria legalidade da realização da avaliação.
De facto, estando em causa uma pura questão de direito (litigiosa) entre as partes, poderia a mesma ser objecto de uma acção de simples apreciação
(art. 4º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil), em que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição dependia exclusivamente do valor da causa (art.
678º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Ora, in casu, tendo sido suscitada a questão de saber se é legal a própria avaliação extraordinária - num recurso em acção cujo valor ultrapassa a alçada da Relação - a circunstância de estar sempre vedado o acesso aos tribunais da Relação e, eventualmente, ao Supremo Tribunal de Justiça constitui uma discriminação infundada das partes do recurso.
Como se escreveu no acórdão nº 68/85 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 541 e segs.) e se se repetiu no acórdão nº 359/86
(in Acórdãos, 8º vol., págs. 605 e seguintes);
'... se se concebe que nem todas as decisões tenham de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, «o que a lei já não poderá fazer é admitir o recurso em toda uma categoria de casos e depois excluí-lo apenas em relação a um sector dessa categoria, sem que nenhuma justificação objectiva se verifique para tal discriminação'.
Há, assim, que concluir que a mera utilização de um certo processo especial - pensado para apreciar apenas o modo de aplicação dos critérios legais ou o juízo de discricionariedade tecnica atinente à actualização de rendas prevista na lei - não constitui justificação objectiva para a retirada a qualquer das partes do acesso aos tribunais de 2ª instância para a apreciação de questão de saber se, in casu, podia haver avaliação extraordinária.
5. Improcede, assim, o recurso interposto, embora por fundamento diverso.
III
6. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso, julgando inconstitucional a norma do
§ único do art. 15º do Decreto nº 37021, de 21 de Agosto de 1948, norma aditada pelo Decreto Regulamentar nº 1/86, de 2 de Janeiro, mas apenas na parte em que veda o acesso aos tribunais superiores em via de recurso, em processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, para discussão de questão atinente à admissibilidade legal da avaliação extraordinária requerida, por violação do art. 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa