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Procº nº 849/96
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA
I
1. Em autos de inquérito pendentes pelo 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e nos quais foi pedida a realização de instrução, a arguida A., apresentou, nos termos do nº 4 do artº 302º do Código de Processo Penal, «conclusões» em que, por entre o mais, defendeu que, por violação, respectivamente, do nº 1 do artigo 13º e do nº 5 do artigo 29º, um e outro da Lei Fundamental, eram inconstitucionais as normas constantes dos números 1 e 2 do artº 26º e do artº 14º, ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, desde que às mesmas fosse dada determinada interpretação.
Segundo a arguida, aqueles números 1 e 2 enfermariam de inconstitucionalidade se interpretados no sentido de, nas situações em que o agente, espontaneamente ou a solicitação da Administração Fiscal, tivesse reposto a verdade sobre a sua situação fiscal, ainda assim o juiz de instrução e o Ministério Público dispunham da faculdade de, casuisticamente, decidirem se o processo deveria ou não ser arquivado.
Já no que se prende com o artº 14º, o vício residiria numa interpretação de acordo com a qual, imputando-se ao agente determinados factos que, simultaneamente, constituíam crime e contra-ordenação, o mesmo deveria ser punido por um e outra.
Por despacho de 8 de Março de 1996, a Juiz daquele Tribunal, para além de diversas questões que ora não relevam, perfilhou, relativamente àqueloutra relativa à invocada inconstitucionalidade das assinaladas normas, o entendimento segundo o qual as mesmas não eram ofensivas do Diploma Básico, razão pela qual se não impunha a sua desaplicação no caso. Após essa decisão, e ainda na mesma peça processual, veio a pronunciar a A. pela indiciária prática de factos que subsumiu ao cometimento de um crime de fraude fiscal previsto e punível pelos artigos 7º e 23º, números 1, alínea a), 2, alíneas a) e d), e 3, alíneas a) e b), ambos do R.J.I.F.N.A., e de 35 contra-ordenações fiscais previstas e puníveis pelos artigos 22º do R.J.N.I.F.A., 19º, nº 3, 96º, alínea d), 95º do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado e 3º do Decreto-Lei nº 20-A/90, 'ou pelo artº 29º, nºs 1 e 6 alínea a) e 9 do RJIFNA, após as alterações introduzidas pelo DL nº 394/93, de 24/11'.
2. Desse despacho pretendeu a A. interpor recurso directo para o Tribunal Constitucional, tendo-se, para sustentar essa forma de impugnação directa, baseado na argumentação que se transcreve:-
'1) O nº 1 do artigo 310.º do Código de Processo Penal exclui expressamente o direito ao recurso do despacho de pronúncia.
2) Das questões tratadas no despacho de pronúncia, o Código de Processo Penal prevê, somente, a possibilidade de recurso das decisões relativas à privação da liberdade e da nulidade consagrada no artigo 309.
3) O despacho de pronúncia, que é incidível, é, pois, por disposição legal expressa irrecorrível. Sendo a presente decisão instrutória irrecorrível, quer ordinária quer extraordinariamente, nos termos do nº 2 do artigo 70 da Lei nº
28/82 de 15 de Novembro existe recurso directo para o Tribunal Constitucional, tendo o mesmo como objecto a aplicação das normas inconstitucionais, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no processo'.
Por despacho de 28 de Junho de 1996, a mencionada Juiz não admitiu o recurso intentado interpor, para tanto dizendo:
'
A fls 2889 é interposto recurso, pela A., para o Tribunal Constitucional com fundamento em que 'o despacho de pronúncia, que é incidivel,
é, pois, por disposição legal expressa irrecorrível'.
Sendo certo que o artº 310º nº 1 do CPP veda o recurso das decisões, isto é, dos despachos de pronúncia que pronunciem os arguidos nos mesmos termos da acusação, não é verdade que igual obstáculo se levante às questões de direito suscitadas e ao despacho que sobre elas recaiu, não podendo confundir-se decisão instrutória e despacho de pronúncia que é, no caso, parte daquela.
Na verdade, da parte da decisão instrutória proferida nestes autos em que são apreciadas questões de direito, como é o caso das que foram apreciadas de I a VIII, é admissível recurso ordinário, como o é a parte IX da decisão em que se decide pela não pronúncia de dois arguidos e que não deixa de ser parte da mesma decisão instrutória.
Não se verifica, por isso, a situação prevista no nº 2 do artº 70º da Lei nº 28/82 de 15.11 e, consequentemente, não admito o recurso interposto.
Not.
*'
3. É deste despacho que vem, pela A., deduzida a vertente reclamação, que se estriba, em síntese, na argumentação que já tinha aduzido aquando do requerimento por intermédio do qual pretendeu recorrer directamente para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa.
O Ex.mo Representante do Ministério Público em funções neste Tribunal opinou no sentido da improcedência da reclamação, pois que - concluiu -, de um lado, não se mostrarão 'esgotados os recursos ordinários possíveis, no que se refere à questão prévia dirimida no ponto IV da decisão instrutória' e, por outro, no que se prende com o enquadramento jurídico dos factos pelos quais a reclamante se acha pronunciada, isso 'não significa que se esteja a interpretar e aplicar o disposto no artigo 14º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras em termos de aplicar um duplo julgamento ou uma dupla penalização dos arguidos precisamente pelos mesmos factos jurídico-criminais, em violação do princípio 'ne bis in idem'.
Cumpre decidir.
II
1. Adiante-se desde já que a presente reclamação deverá lograr deferimento.
Na realidade, postamo-nos perante um caso de interpretação das disposições combinadas dos artigos 310º, nº 1, 399º e 400, nº
1, alínea e), todos do Código de Processo Penal, com vista, mais propriamente, a saber se de uma decisão instrutória na qual, em passos diferentes, por um lado, são resolvidas determinadas questões (qualificadas in casu como «de direito» - qualificação que se haverá que aceitar -) e, por outro, é pronunciado um determinado arguido, é possível, quanto aos pontos incidentes sobre aquelas questões, a interposição de recurso.
No despacho ora reclamado foi entendido que as cabidas normas processuais (maxime o nº 1 do artº 310º) não vedavam a impugnação da decisão instrutória no que concerne às aludidas questões e, consequentemente, por via do disposto no nº 2 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, não era admissível, fundado na alínea b) do nº 1 desse artigo, recurso directo dessa decisão para o Tribunal Constitucional.
Dados os termos em que a questão se nos depara, cumprirá, em primeira linha, realçar que compete inequivocamente a este Tribunal decidir se nos recursos concretos de fiscalização de constitucionalidade previstos na alínea b) do nº 1 daquele artº 70º a decisão a impugnar já não admite recurso ordinário. Isto, porém, não significa que, neste ponto, o Tribunal possa deixar de atender à interpretação que os tribunais da ordem judiciária 'comum' façam, de um modo constante a uniforme, das normas que regem a admissibilidade do recurso ordinário.
Todavia, de outro lado, não se poderá deixar de admitir que a perspectiva interpretativa seguida no despacho em reclamação, em face do teor dos preceitos legais já citados, não é de considerar insólita ou de todo em todo irrazoável (e sem que com isto, minimamente, se tente dizer que essa interpretação é aquela que deve ser a única ou, pelo menos, a mais correcta; cfr., em idêntico sentido ao sustentado no despacho reclamado, verbi gratia, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Abril de 1994, na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, II, 187 e segs.).
Simplesmente, uma outra perspectiva segundo a qual não pode haver recurso da decisão instrutória que pronuncie determinado arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, ainda que restrito à parte em que nela tenham sido equacionadas e decididas questões «de direito» - decisões que, directa ou indirectamente, não deixam de constituir esteio da pronúncia - não deixa, de igual sorte, de se suportar do texto dos citados preceitos.
Haverá, neste particular e por último, que assinalar que, e tanto quanto se saiba, não existe, ao nível dos tribunais da ordem dos tribunais judiciais, uma jurisprudência firme ou, ao menos, acentuadamente maioritária, que, indubitavelmente, perfilhe o entendimento que foi adoptado no despacho sub specie, conhecendo-se diversas situações em que foram sustentados entendimentos diversos daquele que baseia o despacho reclamado e o decidido no citado aresto do nosso mais Alto Tribunal da ordem dos tribunais judiciais.
Neste contexto, não se poderá, sem mais, asseverar que tal entendimento é pacífico e que, por conseguinte, este Tribunal haveria, necessariamente, de perfilhar a óptica de harmonia com a qual daquele despacho ainda havia recurso ordinário e que, nessa senda, o recurso desejado interpor estava vedado ex vi do nº 2 do artº 70º da Lei nº 28/82; e isto porque se não pode dizer que, de um lado, essa é a única interpretação que resulta do nº 1 do artº 310º do Código de Processo Penal, e, de outro, que essa mesma interpretação se acha consolidada no domínio da jurisprudência dos tribunais comuns, o que, se assim sucedesse, implicaria que os Tribunais das Relações sempre aceitariam conhecer dos recursos relativos a situações tais como a configurada na decisão instrutória proferida em 8 de Março de 1996.
Não poderá, por isso, afirmar-se que, no caso, se tinham esgotados os recursos ordinários.
2. Viu-se já que a ora reclamante, com o recurso que intentou interpor, visou a apreciação da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 14º e 26, números 1 e 2, do R.J.I.F.N.A..
Mister é, desta sorte, que se saiba se tais normativos foram aplicados na decisão desejada impugnar, não porque, considerando-a no seu todo, não deixasse de ter havido, num dos seus passos, um expresso juízo decisório sobre as questões de constitucionalidade levantadas àcerca dos mesmos normativos, mas sim porque, no tocante à parte em que nela se pronunciou a reclamante, e relativamente à subsunção jurídica aí efectuada, nenhuma referência é expressamente feita aos mesmos.
2.1. Ora, nesta maneira de colocar a questão, não poderá olvidar-se que a decisão instrutória, ao acolher na pronúncia a acusação deduzida pelo Ministério Público no que tange à arguida A., não deixou, de um lado, de ter como válida, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, uma interpretação dos números 1 e 2 do artº 26º do R.J.I.F.N.A. que conduza a que a
«faculdade» neles prescrita não implica, de modo necessário, um verdadeiro
«poder-dever».
Poderá, é certo, visualizar-se que o decidido nesta parte vem, ao fim e ao resto, a consubstanciar uma questão prévia ou incidental e que, por isso, não era vedado o recurso da decisão instrutória nessa mesma parte.
Contudo, menos certo não é que, ao se pronunciar a ora reclamante, se teve como válida, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, uma interpretação dos números 1 e 2 do aludido artº 26º segundo a qual, não obstante estar reposta a verdade fiscal, é possível ao Ministério Público deduzir ou não acusação. Interpretação essa que, no caso, aceitou a efectivação do juízo acusatório sem o qual não seria possível a dedução de pronúncia.
De outra parte, porque - tudo o indica - os mesmos factos indiciariamente imputados à A. serviram, na decisão de pronúncia, para que aí se qualificassem como integrando um crime de fraude fiscal e 35 contra-ordenações fiscais, então haverá de concluir-se que no raciocínio ínsito nessa decisão não deixou de estar presente uma interpretação do artº 14º do mesmo R.J.I.F.N.A. de molde a que, constituindo os mesmos factos, simultaneamente, crime e contra-ordenação, o respectivo agente deveria, indiciariamente, sofrer punição por um e outra.
É incontestável que da pronúncia, no que respeita a este particular, não se pode desde logo extrair que a ora reclamante venha a ser duplamente condenada pelos mesmos factos indiciariamente descritos, dupla condenação essa decorrente de tais factos virem a ser subsumidos ao cometimento de um crime de fraude fiscal e de 35 contra-ordenações fiscais.
Essa é, na verdade, uma questão a resolver em sede de julgamento.
No entanto, não se pode deixar passar em claro que, em prisma indiciário, a questionada interpretação do artº 14º do R.J.I.F.N.A. vai, no fundo, condicionar o processo até essa fase, com evidentes implicações no estatuto de arguida da ora reclamante.
Haverá, assim que concluir que houve, por banda da decisão pretendida impugnar - ainda que perspectivada somente na parte em que nele se pronunciou a reclamante - o acolhimento de uma interpretação normativa que, previamente à sua prolação, tinha sido questionada pela mesma reclamante do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional.
III
Em vista do que se deixou dito, defere-se a presente reclamação. Lisboa, 26 de Fevereiro de 1997 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa