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Proc.Nº 373/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - O Ministério Público junto do tribunal judicial da Comarca de Tomar deduziu acusação, em processo comum e pelo tribunal singular, contra J... e contra JS..., pela prática, em co-autoria material, de um crime previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 50º, nº1, do Decreto-Lei nº 251/92, de 12 de Novembro, e 31º, nº10, da Lei nº 30/86, de 27 de Agosto.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso da produção da prova foi lavrado um despacho em acta, segundo o qual tinham sido referidos factos que podiam configurar uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação. No mesmo despacho, e após referir tais factos, a juíza determinou que eles se comunicassem, desde logo, aos arguidos, nos termos do artigo 358º, nº1, do Código de Processo Penal (adiante, CPP), para, querendo, requererem um prazo para preparação da sua defesa.
Os arguidos, não se conformando com tal decisão, dela interpuseram logo recurso, sem prescindirem do prazo de defesa, que requereram que fosse de 7 dias, apenas lhe tendo sido concedidos 2, com o fundamento de que os factos referidos mais não eram do que meras concretizações factuais do que consta da acusação, à excepção do que respeitava ao diálogo dos arguidos com os guarda florestais no momento em que foram interceptados.
Concluído o julgamento, veio a ser proferida a sentença que condenou os arguidos como co-autores do crime de que haviam sido acusados.
2. - Entretanto, os arguidos apresentaram a motivação do recurso interposto, tendo aí suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 358º do CPP, na parte em que permite que o tribunal repute como verdadeiros factos desfavoráveis aos arguidos antes de lhes dar oportunidade de os contradizer, por violação do artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
Proferida a decisão condenatória, os arguidos logo interpuseram recurso ordinário, na acta, tendo renovado, neste recurso, os argumentos conducentes, na sua perspectiva, à inconstitucionalidade do artigo
358º do CPP.
Subidos os autos à Relação de Coimbra, os recursos foram apreciados pelo acórdão de 14 de Março de 1996, que negou provimento a ambos.
Quanto à questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes, a Relação entendeu que o preceito questionado não violava o artigo
32º da Constitutição, em qualquer dos seus aspectos.
3. - Inconformados com o assim decidido, os arguidos interpuseram recurso do acórdão da Relação para o Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 358º, do CPP, na parte em que directamente confere ao juiz poderes para seleccionar contra o arguido novos factos surgidos na audiência de julgamento.
Neste Tribunal foram produzidas as pertinentes alegações, tendo os recorrentes formulado as seguintes conclusões:
'1- O poder atribuído ao juiz pelo artº 358º do CPP de fundamentar o juízo condenatório em factos estranhos que ele próprio pode seleccionar na audiência de julgamento, diminui as garantias de defesa quanto a esses factos e contraria, nessa medida, o princípio constante do nº1 do artº 32º da CRP nos termos do qual o processo penal assegurará todas as garantias de defesa;
Na verdade,
2. - Implícita à declaração de terem surgido, na audiência, novos factos desfavoráveis ao arguido, está óbvia e necessariamente, a convicção do juiz relativa à veracidade desses mesmos factos que o arguido terá naturalmente, a maior dificuldade em desfazer;
3. - Verifica-se, por outro lado, manifesta e indesejável confusão entre os actos de acusar e de julgar, transformando-se o julgador em acusador e vice-versa, o que só por si, constitui também grave atentado às garantias de defesa constitucionalmente consagradas;
Finalmente,
4. - Ao remeter para momento posterior a oportunidade de defesa está o artigo em causa a fazer tábua rasa do princípio do contraditório, que pressupõe que o juízo sobre a veracidade de um facto seja sempre e necessariamente posterior à oportunidade de defesa e contradição;
5. - Por esta via o artigo em causa ofende o princípio do contraditório que o nº5 do referido artigo 32º da CRP, manda observar na fase do julgamento;
6. - A capa da alteração não substancial não esconde a importância destes novos factos, porque é a própria lei que os classifica de relevantes para a decisão da causa - citado artigo 358º do CPP.'
Pelo seu lado, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal apresentou alegações nas quais, depois de proceder à delimitação do objecto do recurso, formulou o seguinte quadro de conclusões:
'1. A matéria factual que é imputada ao arguido na acusação deverá ser suficientemente descrita, a fim de, por um lado, permitir ao arguido defender-se convenientemente, e, por outro, fornecer ao tribunal os elementos necessários à prolação de uma decisão justa.
2. Nem toda a alteração dos factos produz uma alteração do objecto do processo, mantendo-se este idêntico se a modificação dos factos se traduzir numa alteração não substancial.
3. Assim, pode o tribunal, com inteiro respeito pelo disposto nos nºs
1 e 5 do artigo 32º da Constituição, investigar autonomamente e integrar no processo factos que não constam da acusação, desde que, nos termos do artigo
358º, nº1, do Código de Processo Penal, comunique a alteração ao arguido e lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
4. - Deverá, pelo exposto, negar-se provimento ao recurso, na parte impugnada.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
4. - A questão que vem suscitada tem a ver, segundo os recorrentes, com a interpretação do artigo 358º do CPP feita nas instâncias, na parte em que confere directamente ao juiz poderes para seleccionar contra o arguido novos factos surgidos na audiência de julgamento.
De acordo com a acusação, os arguidos, no dia 2 de Dezembro de 1993, pelas 9h,30, no local denominado Pedreira de Mármore, freguesia de Beselga, área da comarca de Tomar, zona sujeita ao regime cinegético especial(_) 'andavam no exercício da caça aos tordos, utilizando para o efeito um leitor de cassetes «LOCkVÖGEL», com uma cassete com chilrear de aves como chamariz.'
Durante o julgamento, a senhora juíza, em despacho registado na acta, considerando que, na audiência, haviam sido referidos factos que considerou novos, mas que todavia, de acordo com tal despacho, apenas constituiam uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, deu cumprimento ao preceituado no nº1 do artigo 358º do Código Processo Penal (CPP)
- comunicação da alteração aos arguidos e concessão do prazo considerado estritamente necessário para a preparação da defesa.
Com tal decisão se não conformaram os arguidos, dela tendo interposto recurso, como se referiu, tendo suscitado nas alegações do recurso a inconstitucionalidade da norma do artigo 358º do CPP, na parte em que permite que o juiz seleccione, na audiência, novos factos desfavoráveis aos arguidos, para fundamentar a sua condenação ou o agravamento da conduta delituosa sob apreciação.
A Relação, no acórdão pelo qual negou provimento ao recurso, não só considerou que os factos ditados para a acta não podiam considerar-se factos novos, por já estarem contidos na acusação, como também considerou que, ainda que se entendesse que os considerados novos factos constituíam alteração da matéria da acusação, esta seria sempre não substancial. Conclui depois o acórdão que não ocorre qualquer violação do artigo 32º da Constituição, fundamentando assim o seu entendimento:
'Ao cumprir o ritualismo processual conferido na parte final do artigo 358º, supra citado, não está o julgador a considerar provados tais factos, mas apenas a considerá-los indiciados, dando aos arguidos a possibilidade de se defenderem deles sem alteração do ilícito criminal já definido.'
Os arguidos, porém, continuam a defender que tal selecção de factos feita na audiência, pelo juiz, viola as garantias de defesa dos arguidos e também o princípio do contraditório.
Será, de facto, assim?
Vejamos.
O artigo 358º do CPP, incluído no Capítulo da produção de prova, tem seguinte redacção:
Artigo 358º
(Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
A norma que vem questionada não corresponde integralmente ao preceito do nº 1 do artigo 358º do CPP; de facto, de acordo com o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, os recorrentes pretendem apenas ver apreciada a conformidade constitucional daquele nº1, na parte em que directamente confere ao juiz poderes para oficiosamente seleccionar novos factos surgidos na audiência de julgamento.
De acordo com o preceituado no artigo 283º do CPP, existindo indícios de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra o identificado agente. Da acusação devem constar, sob pena de nulidade, diversos elementos, destacando-se agora de entre esses elementos a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, definem e fixam o objecto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág,145) é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, ou seja, os princípios segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente); e - mesmo quando o não tenha sido - deve considerar-se irrepetivelmente decidido.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.
O processo penal admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.
A este respeito os artigos 358º e 359º do CPP, que regulam esta matéria, distinguem entre «alteração substancial» e «alteração não substancial ou simples» dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP. Neste preceito se estabelece que, para efeitos do disposto no presente Código, '(...) considera-se alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis'.
O artigo 359º rege para esta alteração substancial, determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso(nº1), salvo se, havendo acordo entre o Ministério Público, arguido e o assistente na continuação do julgamento e o conhecimento dos factos novos não acarretar a incompetência do tribunal(nº2), concedendo-se então ao arguido, sob requerimento, um prazo para preparação da defesa (nº3).
Ao invés, se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, tal que não determine uma alteração do objecto do processo, então o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação e que tenham relevo para a decisão do processo. A lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358º, nº1, parte final).
Assim, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados «ex novo» e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
5. - Aqui chegados, impõe-se deixar desde já bem claro que está fora dos poderes de cognição deste Tribunal, que se pronuncia sobre normas, apreciar a forma como a decisão recorrida procedeu à qualificação dos factos para os subsumir na norma aplicável.
Ponto firme de partida é assim o de que a decisão recorrida, que negou provimento a recurso ordinário de julgamento proferido na primeira instância, entendeu que os factos referidos na audiência, e que originaram a aplicação da norma constante do artigo 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou não eram factos novos ou, a considerarem-se como novos, não implicariam uma alteração substancial da acusação.
Mas, tendo sido assim, logo se deu aos arguidos a oportunidade processual de organizarem a sua defesa quanto a esses factos então especificados. Nessa perspectiva, não se vê como possam ter sido feridos os direitos de defesa e do contraditório, sendo até lícito deduzir-se que esses mesmos direitos ganharam em consistência. Com efeito, não tendo havido alteração do objecto do processo e tendo-se mantido a acusação, os referidos factos poderiam, sem mais, ou seja, sem os elementos adicionais que o contraditório posterior viesse a revelar, porventura no sentido de infirmar a sua procedência, contribuir de imediato para a formação da convicção do julgador. Na decisão recorrida não se encontra, portanto, uma interpretação inconstitucional da norma questionada, devendo improceder o recurso. III - DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa,1998.02.05 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa