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Proc. Nº 775/96 ACÓRDÃO Nº 177/97
PLENÁRIO
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - O Procurador-Geral Adjunto em exercício de funções como representante do Ministério Público neste Tribunal, veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 282º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo
10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, «enquanto interpretada no sentido de que incumbe aos tribunais de competência genérica o processamento das execuções tendentes à cobrança coerciva das dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, decorrentes de tratamentos consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho».
Para o efeito, invoca que tal norma foi já explicitamente julgada inconstitucional por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição da República Portuguesa, nos Acórdãos nºs 381/96, de
6 de Março (publicado no Diário da República, II Série, nº 163, de 16 de Julho de 1996), 590/96, de 17 de Abril, e 690/96, de 21 de Maio (não publicados).
2. - O Primeiro Ministro, notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, ofereceu o merecimento dos autos.
II - FUNDAMENTOS:
3. - Constata-se, com efeito, que a norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92 foi julgada inconstitucional nos arestos indicados e na dimensão mencionada no pedido, sem embargo de apenas os dois últimos acórdãos citados precisarem que o juízo de inconstitucionalidade incidiu sobre o regime aplicável a dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde resultantes de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de trabalho, em vez de dívidas hospitalares decorrentes de tratamentos consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho, como ficou exarado no Acórdão nº 381/96, citado.
A diferença entre as duas formulações não chega a ser discrepância, porque tem natureza meramente redaccional. Lidas, como devem ser, e como facilmente se depreenderá da exposição subsequente, têm as três decisões por referência necessária a mesma norma situada no mesmo contexto normativo. A expressão 'dívidas às instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de saúde', utilizada no pedido e nos dois Acórdãos mais recentemente prolatados, é, nesta perspectiva, não mais do que uma precisão da menção que no primeiro Acórdão é feita a dívidas hospitalares, sendo que na parte restante é inequívoco que há identidade de conteúdo e de sentido quanto ao julgamento de inconstitucionalidade que foi proferido.
É por essa razão que o Tribunal vai apreciar a constitucionalidade da norma na precisa dimensão do pedido. E também, diga-se desde já, acolhendo a orientação obtida em fiscalização concreta.
4. - O Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, conforme intenção declarada no respectivo preâmbulo, veio generalizar a todas as unidades de saúde públicas ('às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde', como refere o artigo 1º) a solução consagrada no artigo 6º da Lei nº 1981, de 3 de Abril de 1940, que atribuía força de título executivo às certidões de dívida pelo tratamento de doentes passadas pelos Hospitais Civis de Lisboa. Correspondeu assim a uma opção legislativa que terá visado a correcção dos 'insatisfatórios resultados' que teriam sido conseguidos com a aplicação do regime que anteriormente fora estabelecido pelo Decreto-Lei nº 147/83, de 5 de Abril, o qual do mesmo passo, foi revogado, tal como o artigo
6º da Lei nº 1981, e os artigos 41º a 44º do Decreto-Lei nº 46 031, de 27 de Abril de 1965 que regulavam a matéria anteriormente ao Decreto-Lei de 1983
(artigo 13º do Decreto-Lei nº 194/92).
Ainda que a título meramente informativo, importa referir que sobre a disciplina contida neste novo diploma já teve o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar, nomeadamente a propósito das normas contidas nos seus artigos 2º, 4º e 6º, para concluir sempre que as mesmas não violavam a Constituição (a este propósito, veja-se, por ser o de mais recente publicação, o Acórdão nº 118/96, in Diário da República, 2ª Série, de 7 de Maio de 1996, que acolhe a argumentação do Acórdão nº 760/95, in Diário da República, 2ª Série, de 2 de Fevereiro de 1996). Tratava-se aí, ditas as coisas em termos genéricos, de avaliar da conformidade à Lei Fundamental da atribuição do valor de título executivo às certidões de dívida passadas pelas autoridades hospitalares.
A norma que vem agora questionada tem porém outro objecto, a saber, versa sobre a determinação do foro competente para a cobrança executiva de tais dívidas e é do seguinte teor:
Artigo 10º
Foro competente para a execução
As acções de execução por dívida a que se refere o presente diploma são instauradas no tribunal da comarca em que se encontra sediada a entidade exequente.
É necessário ter em conta que esta norma não vem questionada na sua extensão plena. Apenas vem solicitada a apreciação da sua conformidade constitucional numa precisa dimensão: no segmento em que a norma é aplicável às dívidas resultantes de tratamento de sinistrados por acidente de trabalho, e na medida em que, quanto a esse tipo de dívidas, dela resulta que são competentes para julgar as acções de execução delas emergentes os tribunais de competência genérica.
5. - Antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 194/92, tais acções e as respectivas execuções eram da competência dos tribunais de trabalho, tendo em conta tanto o disposto na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro - LOTJ), como no Código de Processo de Trabalho (aprovado pelo Decreto-Lei nº 272-A/81, de 30 de Setembro).
Quanto àquela Lei (LOTJ), determina o seu artigo 64º, alínea c), que compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível,
'das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais', e na alínea d), estabelece-se a competência para aqueles tribunais conhecerem 'das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimentos de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais'.
Finalmente, de acordo com a alínea n), do mesmo artigo
64º da LOTJ, ao foro laboral (os tribunais do trabalho são tribunais de competência especializada - artigo 46º, nº 1 da LOTJ) compete conhecer 'das execuções fundadas nas suas [dos tribunais de trabalho] decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais', sendo entendimento corrente, por referência aos títulos executivos aqui mencionados, que se trata de títulos de que conste a existência ou a subsistência de um direito da natureza daqueles que se integram na esfera da competência declarativa dos Tribunais do Trabalho.
Por sua vez, e corroborando adjectivamente esta interpretação, a alínea e) do artigo 91º do Código de Processo de Trabalho considera títulos executivos no processo laboral as certidões de contas hospitalares decorrentes da prestação de assistência a lesados em acidentes de trabalho.
6. - Ora, através da norma constante do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, o legislador veio alterar a regra sobre repartição de competência material dos tribunais.
Com efeito, nos termos do que se dispõe na LOTJ -artigos
45º e 46º - os tribunais judiciais de 1ª instância 'organizam-se segundo a matéria, o território, a forma de processo e a estrutura' e, consoante a matéria das causa que lhes estão atribuídas, dividem-se em tribunais de competência genérica e de competência especializada, podendo, em casos justificados, ser criados tribunais de competência especializada mista.
Na data em que entrou em vigor o Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro (sem que até agora o sistema organizativo tenha sido alterado na parte que para aqui releva), os tribunais de competência genérica, funcionando como tribunal colectivo ou como tribunal do júri, tinham as competências fixadas nos artigos 79º e 82º da LOTJ; funcionando como tribunais singulares, competia-lhes, além do mais previsto no artigo 55º da LOTJ, preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal, executar as respectivas decisões e exercer as demais atribuições conferidas por lei. Quanto aos tribunais de competência especializada, cada um deles tinha a sua competência material definida na lei, estando a competência dos tribunais de trabalho definida nos artigos 64º a 67º da LOTJ (cfr. a alínea relevante para o caso em apreço, já atrás transcrita).
Correspondendo os tribunais de competência genérica aos tribunais que usualmente se identificavam como 'tribunais de comarca', e sendo a competência material daqueles tribunais e dos tribunais do trabalho as que ficam referidas, é manifesto que a norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92 veio alterar, de forma inovatória, a repartição de competência material entre a jurisdição comum, de competência genérica e a jurisdição laboral, de competência especializada.
Na verdade, a partir da sua entrada em vigor, execuções que anteriormente eram da competência dos tribunais do trabalho, passaram a ser da competência dos tribunais de comarca, que são os tribunais de competência genérica com jurisdição limitada à comarca. Estamos, portanto, em presença de uma alteração das regras de repartição da competência segundo a matéria entre os tribunais e importa saber se a ela poderia ter procedido o Governo da forma como procedeu.
A questão que assim se suscita, assinale-se de passagem,
é diferente daquela que constituiu o objecto do Acórdão nº 376/96 (publicado in Diário da República, 2ª Série, de 12 de Julho de 1996). Estava aí em causa o mesmo artigo 10º deste Decreto-Lei, mas enquanto aplicável a execuções derivadas de dívidas resultantes de tratamentos a sinistrados por acidentes de viação, não envolvendo qualquer alteração das regras de competência, designadamente, territorial.
7. - Dado que o Decreto-Lei nº 194/92 foi emitido ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, isto é, com invocação da competência concorrente do Governo, e, portanto, sem ser nos termos e ao abrigo de autorização legislativa, há que apurar se efectivamente a atribuição, pelo artigo 10º daquele diploma, de competência aos tribunais de comarca comuns ou de competência genérica para processarem as acções de execução por dívida emergente de tratamentos consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho representa o exercício de competência legislativa no respeito das normas constitucionais que regulam a respectiva repartição da tal competência entre o Governo e a Assembleia da República.
Vejamos.
Em causa está aqui a repartição de competência entre os tribunais de 1ª instância, e por isso dispostos horizontalmente sem que entre eles exista relação de supra-ordenação ou de subordinação. A competência segundo a matéria, que aqui foi objecto de intervenção legislativa, é o elemento que está na base da diferenciação das várias espécies de tribunais judiciais de 1ª instância, segundo o esquema organizatório disposto na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
Na verdade, segundo a matéria, os tribunais podem ser, em regra, tribunais de competência genérica - também imprecisamente designados por tribunais de comarca, precisamente aqueles que o legislador teve em vista no artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92 em apreciação - e de competência especializada (artigo 46º, nº 1, da LOTJ).
Sendo a competência genérica uma competência residual
(segundo o nº 3 deste artigo 46º 'quando a lei não dispuser em contrário, os tribunais judiciais de 1ª instância são de competência genérica' e segundo o artigo 53º 'as causas não atribuídas a outro tribunal são da competência do tribunal de competência genérica'), a atribuição de competências a tribunais de competência especializada não pode deixar de requerer a indicação explícita pelo legislador da correspondente espécie de tribunal - tribunais cíveis, tribunais criminais, tribunais de instrução criminal, tribunais de família, tribunais de menores, tribunais do trabalho, tribunais de execução das penas e tribunais marítimos, tantas são as categorias dos tribunais de competência especializada de 1ª instância estabelecidas pela LOTJ, nos artigos 56º a 70º. Na falta dessa indicação explícita, e por força da regra de competência residual, terá o intérprete de concluir que o legislador atribui competência aos tribunais de competência genérica, como sucedeu no caso da norma em apreciação. Por essa razão se pode afirmar sem receio de errar que o Decreto-Lei nº 194/92, ao referir-se a 'tribunais de comarca' procedeu à modificação do regime de repartição de competências dos tribunais segundo a matéria.
A jurisprudência constitucional sobre a delimitação das competências legislativas do Governo e da Assembleia da República na matéria de organização e competência dos tribunais vem seguindo, pelo menos quanto à definição da competência material dos diferentes tipos de tribunais, uma linha uniforme. Vem ela reafirmada no Acórdão nº 381/96, que reitera o que já tinha sido desenvolvido no Acórdão nº 805/93 (in Diário da República, Iª Série-A, de 4 de Janeiro de 1994) e que se retoma agora, de forma sintética.
Segundo essa orientação, e na formulação do Acórdão nº
271/92 (publicado in Diário da República, 2ª Série, de 23 de Novembro de 1992) tal delimitação é feita nos seguintes termos:
'[...] para editar normas que visem modificar as regras de competência material
(ou seja: para modificar as regras atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais) que o mesmo é dizer pelos diversos tribunais dispostos horizontalmente (no mesmo plano), sem que, por conseguinte, haja entre eles relação de supra-ordenação e subordinação, o Governo tem de estar munido de autorização legislativa.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que ela tem por objecto a definição de «competência dos tribunais», há-de incluir-se, aí, sem dúvida, a definição da competência dos tribunais (maxime, dos tribunais judiciais) ratione materiae'.
De acordo com esta jurisprudência, cabe na competência reservada da Assembleia da República toda a matéria de organização e competência material dos tribunais, não se circunscrevendo a reserva parlamentar apenas à definição das matérias em que as opções legislativas se revistam de especial relevância.
Assim, escreve-se no Acórdão nº 381/96: 'assente o carácter inovatório da regra atinente à definição do «foro competente para a execução», constante do citado artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, a sua evidente repercussão na delimitação da competência material dos tribunais de competência genérica, face a uma categoria de tribunais de competência especializada - os tribunais do trabalho -, é evidente a necessidade de a alteração legislativa introduzida constar de diploma credenciado por autorização parlamentar, sob pena de inconstitucionalidade orgânica'.
'A regra referente à fixação do foro materialmente competente para o processamento das execuções para cobrança de dívidas hospitalares representa, pois, uma opção autónoma e directa do legislador que nada tem a ver com o tema processual da determinação (e ampliação) dos pressupostos de exequibilidade do título. E sendo certo que tal opção pressupunha necessariamente a obtenção da indispensável credencial parlamentar, por força do estatuído no artigo 168º, nº1, alínea q), da Constituição da República Portuguesa, já que se veio inovar em sede de fixação ou determinação da competência em razão da matéria dos tribunais do trabalho, no confronto dos tribunais de competência genérica'.
A norma em apreciação, na medida em que é uma norma constante de Decreto-Lei emitido sem precedência de autorização legislativa e consagrando uma patente alteração das regras de definição da competência dos tribunais segundo a matéria, é necessariamente inconstitucional por inobservância da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, estabelecida na alínea q) do nº 1, do artigo 168º, da Constituição da República Portuguesa.
III - DECISÃO:
8. - Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, da norma constante do artigo 10º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, enquanto interpretada no sentido de que incumbe aos tribunais de competência genérica o processamento das execuções tendentes à cobrança coerciva das dívidas
às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, decorrentes de tratamentos consequentes a lesões sofridas por sinistrados em acidentes de trabalho.
Lisboa, 4 de Março de 1997 Vítor Nunes de Almeida Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Bravo Serra Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa