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Proc. nº 792/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A... intentou no Tribunal do Trabalho de Cascais acção declarativa, sob a forma ordinária, contra S..., pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de 4.032.000$00 (quatro milhões e trinta e dois mil escudos), referente às retribuições de Março a Junho de 1993, às férias, à compensação pela caducidade do contrato de trabalho e à cláusula penal acordada, bem como a condenação no pagamento de juros vencidos (no valor de 370.800$00) e vincendos até ao respectivo pagamento, devidos por força do incumprimento pelo réu do contrato de trabalho a termo, vigente no período compreendido entre 1 de Setembro de 1992 e 30 de Junho de 1993.
O Tribunal do Trabalho de Cascais, por sentença de 26 de Maio de
1994, condenou a ré no pagamento do montante global de 1.440.000$00 (um milhão quatrocentos e quarenta mil escudos), correspondente a retribuições em falta, a férias e subsídio de férias, a compensação por caducidade do contrato e a juros vencidos e vincendos.
2. O S... interpôs recurso de apelação da sentença do Tribunal do Trabalho de Cascais de 26 de Maio de 1994 para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Nas alegações apresentadas, o recorrente sustentou a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 49.408, bem como das normas contidas nos artigos 44º a 47º e 50º, nº 4, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, quando aplicados ao caso dos autos, por violação do disposto no artigo 79º da Constituição.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 15 de Março de 1995, negou provimento ao recurso.
3. O S... interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Março de 1995 para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações apresentadas, o recorrente sustentou de novo a inconstitucionalidade da Lei Geral do Trabalho, por violação do artigo 79º da Constituição, afirmando também que o acórdão recorrido infringiu os artigos
113º, 114º, 205º e 206º da Constituição, em virtude de ter considerado o contrato celebrado entre o recorrente e o recorrido sujeito à Lei Geral do Trabalho.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 9 de Outubro de 1996, negou a revista, confirmando, consequentemente, o acórdão recorrido.
4. O S... interpôs recurso de constitu-cionalidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 1996, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
A relatora proferiu despacho, com fundamento no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, convidando o recorrente a indicar a ou as normas impugnadas, bem como a peça processual onde a questão de constitucionalidade normativa foi suscitada.
O recorrente respondeu, sustentando que suscitou a questão de constitucionalidade nas alegações dos recursos de apelação e de revista, e identificando como inconstitucionais o Decreto-Lei nº 49.408, o Decreto-Lei nº
305/95, de 18 de Novembro, e as normas contidas nos artigos 44º a 47º e 50º, nº
4, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, quando interpretadas no sentido de serem aplicáveis ao contrato de trabalho desportivo.
Posteriormente o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'1. A prática desportiva em Portugal, até à publica-ção da Lei de Bases do Sistema Desportivo - Lei 1/90 - estava enquadrada na Lei 2.104, de 30 de Maio de
1960.
2. Do disposto nas Bases II e V desta Lei resulta que o direito do trabalho não era aplicável às relações contratuais entre os praticantes amadores, ainda que subsidiados, e os respectivos Clubes desportivos.
3. Com a entrada em vigor da Lei 1/90, foi revogada a referida Lei
2.104 e prevista a publicação do regime contratual dos praticantes desportivos profissionais e equiparados, entendendo-se como profissionais aqueles que exercem actividade desportiva como profissão exclusiva ou principal (arts. 41, nº 1, al. i) e 14º, nº 3).
4. Tal regime viria a ser aprovado pelo DL 305/95, de 18 de Novembro, em cujo art. 1º, porém, é ignorado o referido requisito do exercício da actividade desportiva como profissão exclusiva ou principal.
5. As decisões dos autos consideram aplicável a Lei Geral do Trabalho
à relação contratual entre o recor-rente e um atleta de voleibol, modalidade desportiva não profissional, considerando-se nomeadamente aplicável o regime da compensação pela caducidade do contrato, prevista no art. 46º, nº 3 do DL
64A/89, de 27 de Fevereiro.
6. O art. 79º da Constituição, no âmbito dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, consagra os princípios do direito ao desporto para todos e da incumbência do Estado, em colaboração com as associações e colectividades desportivas, da promoção, estímulo e apoio da prática desportiva.
7. O exercício da prática desportiva, no âmbito das modalidades não profissionais e o direito do desporto para todos são incompatíveis com a respectiva aplicação da Lei Geral do Trabalho, nomeadamente do DL 49.408 e
64-A/89, em particular dos seus artigos 44º a 47º e 50º, relativos aos condicionamentos legais dos contratos de trabalho a termo, sua renovação e conversão em contratos sem termo, requisitos de caducidade e compensação pela sua cessação.
8. Verifica-se, pois, uma inconstitucionalidade ma-terial das referidas normas, enquanto aplicáveis às relações contratuais dos praticantes desportivos não profissionais, por violação do artigo 79º da Constituição.
9. Por sua vez, o DL 305/95, de 18 de Novembro, nomeadamente o seu art. 1º, viola o princípio constitu-cional da supremacia hierárquica das Leis de Bases e da correspondente subordinação dos Decretos-Leis de desen-volvimento, pelo que deverão também ser declarados inconstitucionais.'
O recorrido, por seu turno, contra-alegou, propugnando a improcedência do recurso.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Delimitação do objecto do recurso
6. O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição do Decreto-Lei nº 49.408, dos artigos 44º, 45º, 46º,
47º e 50º, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, e do artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro.
Relativamente ao primeiro diploma, importa ter presente que o recorrente não identificou em momento algum do processo qual a norma ou normas que entende serem violadoras da Constituição.
Com efeito, tanto nas alegações perante o Tribunal da Relação de Lisboa como nas alegações apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça o recorrente limitou-se a sustentar a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº
49.408 e da Lei Geral do Trabalho, nunca precisando qualquer norma desse diploma.
Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que o recorrente tenha suscitado uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo.
Ora, uma questão de constitucionalidade só se considera suscitada de modo adequado durante o processo, quando o recorrente identifica com precisão a ou as normas que entende serem inconstitucionais, quando indica as normas ou princípios constitucionais que considera violados e quando apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade suscitada. Assim, não se pode considerar, em princípio, que uma questão de constitucionalidade normativa é suscitada durante o processo de modo adequado, quando se indica como globalmente inconstitucional todo um diploma ou todo um sector normativo (cf., entre outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
O Tribunal Constitucional não tomará consequentemente conhecimento do objecto do recurso relativamente ao Decreto-Lei nº 49.408, em virtude de não se verificar o referido pressuposto processual consistente na suscitação durante o processo de uma questão de constitucionalidade normativa.
7. No que respeita ao artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro, importa referir que tal norma não foi efectivamente aplicada no presente processo.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, fez referência a esse diploma apenas para reforçar a adequação da qualificação como contrato de trabalho (desportivo) do contrato celebrado em 1992 entre o recorrente e o recorrido operada pelo Tribunal recorrido. As normas constantes dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro, foram assim invocadas pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas para demonstrar, como mero obiter dictum, que o entendimento acolhido pelo Tribunal do Trabalho de Cascais e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, segundo o qual o contrato de trabalho desportivo se rege, ainda que subsidiariamente, pelo regime geral da relação individual de trabalho, terá obtido explícita consagração legal.
Resulta pois que tais normas não foram efectivamente aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça aos factos passados em 1993, não constituindo, nessa medida, o fundamento normativo da decisão recorrida.
Ora, o presente recurso, tendo sido interposto ao abrigo do artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, apenas pode ter por objecto normas que tenham sido efectivamente aplicadas como seu fundamento determinante da decisão recorrida.
Não tendo o Supremo Tribunal de Justiça feito aplicação da norma contida no artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro, o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto do recurso relativamente a essa norma, pois qualquer decisão que viesse a ser tomada não teria utilidade no processo.
8. Ainda relativamente ao artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/95 refira-se que o recorrente sustenta que tal norma viola o disposto na Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei nº 1/90).
Ora, tal questão, configurada nestes termos, consubstancia uma questão de legalidade normativa, e não de constitucionalidade normativa, que apenas seria sindicável no âmbito de um recurso interposto ao abrigo da alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, se estivesse em causa uma lei de valor reforçado.
Porém, o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que só pode ter por objecto questões de constitucionalidade normativa.
Assim, também por esta razão, o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto do presente recurso no que respeita à violação da Lei de Bases do Sistema Desportivo pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro.
9. O recorrente pretende, por último, que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 44º, 45º,
46º, 47º e 50º, nº 4, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
Porém, resulta das alegações do recurso de constitucio-nalidade, bem como da estratégia processual adoptada, que o que o recorrente considera violar a Constituição é a aplicação nos presentes autos da norma que consagra o direito do trabalhador à compensação pela caducidade do contrato (artigo 46º, nº 3, do referido diploma). As restantes normas invocadas não são abrangidas pela pretensão do recorrente, pois não serviram de fundamento legal à parte da decisão recorrida que o recorrente impugna com o presente recurso de constitucionalidade.
Na verdade, os artigos 44º e 45º contêm regras procedimentais relativas ao prazo do contrato, que não têm aplicação no presente caso.
Por outro lado, o artigo 47º regula a conversão do contrato de trabalho a termo em contrato de trabalho sem termo. Porém, no caso em análise não se colocou a questão de uma qualquer conversão.
Por último, o artigo 50º contém as normas relativas à caducidade do contrato de trabalho a termo incerto. Ora, sendo o contrato de trabalho celebrado entre o recorrente e o recorrido um contrato de trabalho a termo certo, facilmente se constata que tais normas também não poderiam ter aplicação no caso em apreciação.
A única norma que foi efectivamente aplicada no presente processo é a norma contida no artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, pelo que o Tribunal Constitucional só procederá à apreciação da conformidade à Constituição dessa norma.
10. Fica assim limitado o objecto do presente recurso à apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
B Apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro
11. O recorrente sustenta que a interpretação da norma contida no artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, no sentido de o direito à compensação por caducidade do contrato de trabalho ser também reconhecido ao praticante desportivo, é inconstitucional, por violação do artigo
79º da Constituição.
12. O artigo 79º da Constituição, no seu nº 1, consagra um direito genérico à cultura física e ao desporto.
No seu nº 2, o referido preceito constitucional estabelece determinadas incumbências do Estado em matéria de desporto (promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto, tudo em colaboração com as escolas e com as associações e colectividades desportivas).
Ora, o reconhecimento do direito à compensação por caducidade do contrato a um atleta que celebrou com um clube desportivo um contrato pelo período de 10 meses não colide com o preceituado no artigo 79º da Constituição.
Com efeito, o exercício de tal direito não tem a virtualidade de afectar, ainda que minimamente, o direito ao desporto, constitucionalmente consagrado, dado que não inviabiliza, de forma alguma, a subsistência dos clubes desportivos.
Haveria inconstitucionalidade se uma norma estabelecesse um encargo desprovido de fundamento com dignidade constitucional que, por ser de tal forma insuportável, comprometesse em absoluto o associativismo desportivo.
Por outro lado, trata-se de um encargo inerente à actividade desenvolvida pelos clubes justificado por valores com dignidade histórico-constitucional - os da relação entre a pessoa e o trabalho.
Assim, a norma em apreciação concebe um direito do atleta por causa da sua actividade laboral perfeitamente compatível com a actividade dos clubes, que de forma alguma impede a função social de promoção e de desenvolvimento do desporto exercida pelas associações desportivas não se verificando qualquer violação do direito ao desporto consagrado no artigo 79º, nº 1, da Constituição.
Refira-se ainda que o preceito agora impugnado foi aplicado nos presentes autos numa dimensão normativa razoável, racional e proporcional aos valores acordados no contrato celebrado entre o recorrente e o recorrido (o valor das mensalidades auferidas pelo recorrido era de 240.000$00, sendo o montante devido a título de compensação por caducidade do contrato de
160.000$00), o que corrobora o entendimento segundo o qual a interpretação do artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, acolhida pela decisão recorrida não colide com o preceituado no artigo 79º, nº 1, da Constituição.
Por outro lado, a norma contida no artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, também não colide com as incumbências do Estado estabelecidas no artigo 79º, nº 2, da Constituição.
Com efeito, o direito do atleta a uma compensação por caducidade de um contrato qualificado como de trabalho a termo não impede de forma alguma a promoção, o estímulo, a orientação e o apoio por parte do Estado da prática e da difusão da cultura física e do desporto, em virtude de não existir qualquer conexão necessária entre o exercício de tal direito e uma eventual limitação do cumprimento das referidas incumbências do Estado.
13. Há assim que concluir que o presente recurso deve ser decidido no sentido de não se julgar inconstitucional a norma contida no artigo 46º, nº
3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
III Decisão
14. Em face do exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relativa-mente ao Decreto-Lei nº 49.408;
b) não tomar conhecimento do objecto do recurso relativa-mente à norma contida no artigo 1º do Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro;
c) não tomar conhecimento do objecto do recurso relativa-mente às normas contidas nos artigos 44º, 45º, 47º e 50º, nº 4, do Decreto-Lei nº
64-A/89, de 27 de Fevereiro;
d) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1998 Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves (votei o acórdão se bem que considerando que aí se toma o artigo 79º da CRP. é que um direito - à uma política social - de promoção do Desporto - mesmo constitucionalmente prevista. José Manuel Cardoso da Costa