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Processo n.º 518/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. E..., D..., M... e I... propuseram uma acção ordinária contra MB..., J..., A..., L..., V... e AP... no Tribunal Judicial da comarca de Viana do Castelo, pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhes a quantia de
12.000.000$00 ou, subsidiariamente, a de 8.542.683$00 - valor, este último, correspondente ao do imóvel prometido vender à data da promessa de venda, devidamente actualizado ao tempo da propositura da acção - e, em qualquer dos casos, juros, à taxa legal, a partir da citação.
A acção foi julgada improcedente quanto à 1ª Ré, mas procedente quanto aos restantes Réus, que, assim, foram condenados no pedido principal nela formulado - ou seja: a pagar aos Autores a quantia de 12.000.000$00, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa anual de 15%.
A sentença não conheceu do pedido subsidiário, pois, procedendo o pedido principal, ficou o mesmo prejudicado.
Os Réus apelaram da sentença, tendo a Relação do Porto concedido provimento parcial ao recurso, reduzindo o montante da condenação para
800.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação, à taxa legal.
Pediram, então, revista os Autores e os Réus, tendo aqueles sustentado, inter alia, que o acórdão da Relação, não se tendo pronunciado sobre o pedido subsidiário por eles formulado, apesar de ter julgado improcedente o pedido principal, enfermava de nulidade, por omissão de pronúncia.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 9 de Janeiro de 1997, negou a revista, tendo decidido que o acórdão da Relação, não obstante se não ter pronunciado sobre o pedido subsidiário, apesar de ter julgado improcedente o pedido principal, não enfermava de omissão de pronúncia.
Os Autores (recorrentes) arguiram, então, a nulidade deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 9 de Janeiro de 1997), sustentando que, na parte em que nele se decidiu que o acórdão da Relação não enfermava de omissão de pronúncia, 'não foi especificado o fundamento de direito em que se baseou a decisão (nenhum normativo foi citado para a justificar), nem tão-pouco se conseguiu apresentar fundamentação, sem tautologia, que justifique a decisão proferida'.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Abril de 1997, desatendeu a reclamação, com fundamento em que a decisão reclamada - a decisão de que não houve omissão de pronúncia por parte da Relação - se encontrava fundamentada, de facto e de direito: o pedido subsidiário não foi submetido à apreciação da Relação (fundamento de facto); e tal pedido só podia ser submetido
à apreciação da Relação através do recurso subordinado (fundamento de direito).
2. Os Autores recorrentes interpuseram, então, recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da 'inconstitucionalidade da norma do artigo
682º do Código de Processo Civil (praticamente idêntica à redacção inicial), na
interpretação extensiva que o acórdão de 9.1.97 (por forma subentendida, claro, mas explicitada ter-lhe servido de fundamento no acórdão de 30.4.97, que o completou) consagrou'.
O recurso não foi admitido, por despacho do Conselheiro relator, de
5 de Junho de 1997, com fundamento no facto de 'a norma do artigo 682º do anterior Código de Processo Civil não ser inconstitucional, ou seja, não violar quaisquer dos direitos fundamentais consagrados na nossa Constituição, nomeadamente os indicados pelos recorrentes'.
3. É contra este despacho que foi apresentada a presente reclamação.
Os reclamados disseram que a reclamação é totalmente infundamentada.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal pronunciou-se no sentido de que a reclamação deve ser indeferida.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos.
5. Pretendem os reclamantes ver admitido o recurso, que interpuseram ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do artigo 682º do Código de Processo Civil (versão anterior à reforma de 1995), interpretado em termos de a Relação, no caso de julgar improcedente o pedido principal, apenas ter que apreciar o pedido subsidiário formulado pelo Autor, se este tiver interposto recurso subordinado da sentença da 1ª instância, que julgou procedente aquele pedido.
Pois bem: para que deva ser admitido um recurso da mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, necessário é que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que este Tribunal aprecie sub specie constitutionis; e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado como sua ratio decidendi.
No presente caso, não restam dúvidas de que, no acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, aplicou o mencionado artigo 682º, com o sentido e alcance aqui sub iudicio, ao decidir que a Relação, apesar de não ter conhecido do pedido subsidiário não obstante ter julgado improcedente o pedido principal, não cometeu omissão de pronúncia.
Na verdade, a decisão da inexistência de nulidade, por omissão de pronúncia, assentou em que os Autores não interpuseram, como deviam, recurso subordinado, com vista a que, 'no caso de procedência do recurso dos Réus', esse pedido fosse apreciado: 'a Relação - afirmou tal aresto - só apreciou (...) as questões submetidas pelos Réus no seu recurso, de sorte que não podia ser apreciada, como o não foi, a da condenação dos Réus no pedido subsidiário'. E, no acórdão de 30 de Abril de 1997, ao decidir a reclamação por nulidades apresentada contra o acórdão de 9 de Janeiro de 1997, especificou: 'daqui a nossa expressa posição no sentido da interpretação extensiva do artigo 682º do Código de Processo Civil anterior, de sorte a parte vencedora poder provocar a apreciação de fundamentos (pedidos) não apreciados'.
Mas, terão os reclamantes suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade do mencionado artigo 682º do Código de Processo Civil, na interpretação que se deixou indicada?
A inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal se faz em termos e em tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão, e de ser obrigado a decidi-la.
Ora, como os recursos visam a reapreciação de questões decididas pelo tribunal recorrido, e não o julgamento de questões novas, isso significa que a questão da inconstitucionalidade deve ser suscitada, em regra, antes de proferida a decisão de que se recorre. Só em casos de todo anómalos e excepcionais, em que a parte não teve oportunidade processual da suscitar essa questão antes de proferida decisão sobre a matéria a que ela respeita, se admite que a mesma seja levantada em momento posterior. É o que sucederá, nomeadamente, quando a parte é surpreendida com a aplicação de uma norma jurídica que era absolutamente impensável que fosse ser convocada para o julgamento do caso; ou quando a decisão faz uma interpretação inteiramente insólita da norma que esse julgamento convoca. Em hipóteses desse tipo, com efeito, não é exigível que, com anterioridade à prolação da decisão de que se recorre, a parte suscite a inconstitucionalidade da norma aplicada ou da interpretação que dela foi feita. E, tal não lhe sendo exigível, há que dispensar o recorrente do cumprimento do respectivo ónus.
No presente caso, não foi suscitada, durante o processo, a inconstitucionalidade da interpretação, que atrás se apontou, do mencionado artigo 682º do Código de Processo Civil. Os ora reclamantes só suscitaram essa inconstitucionalidade no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal. Antes disso - recte, na reclamação por nulidades do acórdão de 9 de Janeiro de 1997 -, apenas disseram que, tendo eles 'direito a ver apreciadas pelos tribunais as questões que lhes submeteram', foram violados os artigos 20º e 205º da Constituição. Ou seja: disseram ter sido violado o direito de acesso aos tribunais, mas não imputaram essa violação a nenhuma norma legal. Designadamente, não sustentaram a inconstitucionalidade da apontada interpretação do referido artigo 682º. E eles sabiam muito bem que tinha sido essa a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça para concluir que o acórdão da Relação não enfermava de omissão de pronúncia. Sabiam tal, porque é esse normativo que trata do recurso subordinado, e, no acórdão de que então reclamavam, afirmara-se que 'deviam os Autores ter interposto recurso subordinado para apreciação de tal questão (a questão do pedido subsidiário), no caso de procedência do recurso dos Réus'.
Será, então, caso de considerar os reclamantes dispensados do ónus de suscitar a inconstitucionalidade da referida interpretação do artigo 682º, durante o processo? E, sendo caso disso, deverá entender-se que essa inconstitucionalidade, suscitada apenas no requerimento de interposição do recurso, ainda o foi em momento que deve ser havido como processualmente adequado?
Como sublinha o Ministério Público no seu visto, é, no mínimo, duvidoso que, considerando os reclamantes inconstitucional a aludida interpretação do artigo 682º, sobre eles não impendesse o ónus de suscitar essa inconstitucionalidade, nas alegações da revista.
É que, ao sustentar que o acórdão da Relação cometera omissão de pronúncia pelo facto de julgar improcedente o pedido principal e não passar ao conhecimento do pedido subsidiário, eles não podiam deixar de entender que uma interpretação da lei que não impusesse à Relação o conhecimento deste último pedido era inconstitucional. E essa lei, no caso, só podia ser o referido artigo
682º. Na verdade, se a Relação, no caso de julgar improcedente o pedido principal, não dever conhecer do pedido subsidiário, não se vê - dir-se-á - que outra solução legal pudesse haver que não passasse pelo recurso subordinado. Ora, este tipo de recurso estava regulado nesse artigo 682º.
Mas, suposto que os reclamantes não tinham o ónus de suscitar, nas alegações da revista, a inconstitucionalidade da mencionada interpretação do artigo 682º - o que, repete-se, é duvidoso -, a verdade é que podiam tê-lo feito na reclamação por nulidades, pois já atrás se disse que eles sabiam que, mesmo sem o mencionar expressis verbis, o acórdão de que então reclamavam havia aplicado esse artigo 682º.
Se esta argumentação for procedente, não se verificam os pressupostos do recurso, uma vez que a inconstitucionalidade da norma que constitui o seu objecto terá sido suscitada em momento processualmente inadequado. Num tal caso, não se verificando os pressupostos do recurso, devia, logo por aí, a reclamação ser indeferida.
6. Se, porém, houver de considerar-se que, no caso, a questão da inconstitucionalidade foi suscitada em momento processualmente adequado - e, assim, que devem ter-se por verificados os pressupostos do recurso -, mesmo assim, a reclamação deve ser indeferida.
Na verdade, a reclamação só seria de deferir, se o recurso não pudesse ter sido rejeitado.
Tal não acontece, porém.
No despacho reclamado, o recurso não foi admitido - recorda-se - pelo facto de 'a norma do artigo 682º do anterior Código de Processo Civil não ser inconstitucional, ou seja, não violar quaisquer dos direitos fundamentais consagrados na nossa Constituição, nomeadamente os indicados pelos recorrentes'.
Ora, o artigo 76º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional preceitua que, no caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, ao apreciar-se a admissão do recurso - o que compete fazer ao tribunal que proferiu a decisão de que se recorre -, deve o requerimento de interposição ser indeferido, quando ele, recurso, for manifestamente infundado.
É certo que, no despacho reclamado, não se afirmou, expressamente, que o recurso era manifestamente infundado. Esse é, porém, o seu real sentido.
Com efeito, o indeferimento não assentou numa razão formal - recte, no facto de 'os recorrentes só levantarem a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 682º do anterior Código de Processo Civil no (...) requerimento de interposição de recurso' -, pois o despacho afastou expressamente tal fundamento. Assentou, sim, numa razão substantiva - a saber: na circunstância de
'a norma do artigo 682º do anterior Código de Processo Civil não ser inconstitucional, ou seja, não violar quaisquer dos direitos fundamentais consagrados na nossa Constituição, nomeadamente os indicados pelos recorrentes'.
Pois, o recurso interposto é, sem margem para dúvidas, manifestamente infundado, uma vez que a sua improcedência é, a um primeiro exame, evidente, ostensiva (Cf., sobre o conceito de recurso manifestamente infundado, os acórdãos nºs 269/94 e 501/94, publicados no Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994 e de 10 de Dezembro de 1994, respectivamente).
É que, interpretar o referido artigo 682º do Código de Processo Civil em termos de a Relação, no caso de julgar improcedente o pedido principal, apenas ter que apreciar o pedido subsidiário formulado pelo Autor, se este tiver interposto recurso subordinado da sentença da 1ª instância que julgou procedente aquele pedido, não elimina o direito de acesso aos tribunais, nem torna o seu exercício particularmente oneroso.
Como sublinha o Ministério Público, 'não constitui obviamente limitação gravosa e desproporcionada ao direito de acesso à justiça o facto de se impor à parte vencedora o ónus de suscitar, a título subsidiário, na sua alegação, a apreciação de questão que o tribunal de 1ª instância considerou prejudicada, em consequência de haver julgado procedente o pedido principal deduzido pelo autor - mas sendo evidente que tal procedência, não sendo definitiva, podia perfeitamente vir a ser posta em causa aquando do julgamento da apelação'.
A interpretação feita pelo acórdão recorrido - diz o mesmo Magistrado - 'traduz, de algum modo, uma 'antecipação' da solução que veio a ser legislativamente consagrada através do preceituado no n.º 1 do artigo 684º-A do Código de Processo Civil, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro'. E acrescenta: 'o que, eventualmente se poderia considerar como violador do direito de acesso aos tribunais - entendido como implicando o direito das partes a verem solucionadas todas as pretensões que deduzirem em juízo - seria o entendimento de que, em nenhuma circunstância, a parte que formulou o pedido subsidiário cuja apreciação ficou prejudicada pela solução dada ao litígio, na 1ª instância, teria oportunidade de suscitar e 'provocar' a sua apreciação, a título eventual, pela 2ª instância (interpretação que radicaria numa
leitura puramente 'literal' do artigo 682º e na inexistência do regime presentemente consagrado no n.º 1 do artigo 684º-A do Código de Processo Civil). Pelo contrário, a interpretação 'funcional' do preceituado naquele artigo 682º, em termos de facultar à parte vencedora o pedido de apreciação eventual do pedido subsidiário, não apreciado em 1ª instância, revela-se perfeitamente compatível com o direito consagrado no artigo 20º da Constituição - sendo (...) evidente que não pode inferir-se desta norma constitucional que, uma vez formulada certa pretensão na petição inicial, ela será apreciada oficiosamente em todas as instâncias ou graus de recurso, sem que à parte incumba qualquer
ónus de 'recolocar' a necessidade da sua eventual apreciação, face à nova composição que venha a ser dada ao litígio'.
Nada havendo a acrescentar a esta doutrina, que se tem por inteiramente correcta, é óbvio que o recurso é manifestamente infundado; e que, por isso, nenhuma censura merece o despacho reclamado que indeferiu o requerimento de interposição do mesmo.
7. Conclusão: a reclamação tem, assim, que ser indeferida.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação e condenam-se os reclamantes nas custas, com cinco unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1998 Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida