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Processo nº 113/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal de Justiça em que é recorrente o Banco P..., SA, e recorrido A..., SA., pelos motivos constantes da exposição oportunamente lavrada nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aqui dada por reproduzida, com a qual se concorda no essencial, não obstante a argumentação desenvolvida pelo recorrente na resposta, entende-se não se dever tomar conhecimento do recurso.
É certo defender o recorrente, na resposta oportunamente apresentada à exposição do relator, não dever interpretar-se a alínea i) do nº 1 do artigo 70º em termos que constituam subversão da atitude constitucional de
'simpatia' pelo direito internacional, como ocorrerá se, no sistema de recursos para o Tribunal Constitucional, este, por um lado, restringir o recurso ao caso de desaplicação da lei interna e, por outro lado, admitir a via de recurso quanto ao direito convencional mas já a excluir para o direito internacional decorrente de outras fontes, nomeadamente o direito internacional geral ou comum.
Se assim fosse, pondera-se, seria inconstitucional a referida norma da alínea i), face ao disposto no nº 1 do artigo 280º da Constituição - salvo uma interpretação constitucionalmente conforme, permitindo o recurso quando a questão tenha sido suscitada durante o processo e abranja, também, a desconformidade com normas internacionais não convencionais.
Independentemente de estas considerações apenas poderem encontrar eco num entendimento minoritariamente sustentado neste Tribunal - como o revela o acórdão nº 162/93, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 1993 - e, por conseguinte, não invocado na exposição, sem prejuízo da posição pessoal do relator, o certo é que, no caso concreto, há um ponto que o recorrente, na sua resposta, não logra infirmar, qual seja o de que a questão colocada ao Tribunal Constitucional o não foi atempadamente, mesmo na lógica do próprio recorrente.
Com efeito, nesta lógica, a questão estaria colocada em tempo devido no requerimento de arguição de arguição de nulidades porque o subsequente acórdão do Supremo teria conhecido dela. Porém, não foi isto que aconteceu, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça veio a considerar, no segundo acórdão proferido sobre a arguição de nulidades, que não ocorria qualquer omissão de pronúncia no seu anterior acórdão, razão por que veio a indeferir a referida arguição. Isto significa que este Alto Tribunal não decidiu da questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente. Quaisquer considerações que tenham, porventura, a ver com essa questão e que se encontrem no segundo acórdão constituirão, pois, e de forma insofismável, um obiter dictum. Eis quanto basta para não tomar conhecimento do recurso, como se preconizava na exposição do relator.
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1998 Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa Processo nº 113/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Exposição a que se refere o nº 1 do artigo 78º A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
1.- O Banco P..., S.A., com sede no Porto, recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 1 de Outubro de 1996, 'completado', pelo acórdão de 30 de Janeiro último, sobre arguição de nulidades do primeiro, ambos proferidos nos autos de acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que lhe moveu S..., S.A., com denominação posteriormente alterada para A.., S.A., com sede em Póvoa de Santa Iria.
O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e, 'subsidiariamente', ao abrigo da alínea i) do mesmo preceito, 'interpretada em conformidade com a Constituição'.
Nos termos do requerimento de interposição, o recurso tem por objecto 'a questão da violação do princípio constitucional da prevalência das convenções internacionais sobre a lei ordinária e da necessidade de esta respeitar aquelas pelo conjunto de todas as normas do Decreto-Lei nº
453/82, de 17 de Novembro, e em particular o seu artigo 7º, tal como foram interpretadas pelo douto tribunal a quo - isto é, no sentido de que não admitiriam o endosso de cheques por tesourarias das sedes das alfândegas e delegações aduaneiras extra-urbanas (tesourarias aduaneiras) - com base em deconformidade daquelas normas, na referida interpretação, com o artigo 14º da Lei Uniforme relativa ao Cheque, aprovada pela Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931, e de que Portugal é parte, conforme aprovação dada pelo Decreto-Lei nº 23 721, de 29 de Março de 1934 e ratificação efectuada por Carta de 10 de Maio de 1934 (Suplemento ao Diário do Governo, de 21 de Junho de 1934), em vigor na ordem interna portuguesa hoje por efeito do nº 2 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (questão que se encontra assim igualmente abrangida)'.
Acrescenta o recorrente ter suscitado as questões de constitucionalidade na arguição de nulidades do primeiro acórdão do Supremo,
'assinalando-se que na decisão sobre a referida arguição, e só nela, o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou sobre as mesmas questões'.
2.- O recurso foi admitido no Supremo por despacho do Senhor Conselheiro Relator, o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional - nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
Ora, assim sendo, entende-se que não pode conhecer-se do objecto do recurso, seja tendo este por base a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, seja respeitando à alínea i) do mesmo preceito.
O que se passará a justificar sucintamente (nº 1 do artigo 78º-A citado).
3.- No processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
De acordo com a jurisprudência sedimentada deste Tribunal, para a admissão de um recurso de constitucionalidade com base nesta alínea torna-se indispensável a congregação de vários pressupostos, entre os quais o da suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade e o da aplicação da norma questionada - no seu todo, num dado segmento ou numa determina interpretação - na decisão recorrida, de modo que tenha constituído um dos seus fundamentos.
4.- O Decreto-Lei nº 453/82, de 17 de Novembro, considerando
'o elevado volume de valores manuseado nas tesourarias aduaneiras, aliado às condições, nem sempre adequadas, de segurança daqueles serviços e às contingências a que estão sujeitos tais valores, quando objecto de passagem de fundos para a Caixa Geral do Tesouro', conjugadamente com a 'necessidade de proceder a pagamentos ou restituições de depósitos de quantias avultadas em datas não previsíveis, criando inúmeros problemas de liquidez, dificilmente ultrapassáveis (excertos do respectivo preâmbulo), fixou um novo regime de passagem para aquela Caixa dos fundos das tesourarias das sedes das alfândegas e delegações aduaneiras extra-urbanas, quer em moeda corrente, quer em cheque.
Entre as medidas decretadas a este respeito, avulta a prevista no artigo 7º do diploma, que assim dispõe:
'A emissão de cheques pelas tesourarias aduaneiras, que serão sempre nominativos, terá lugar:
a) Quando não existam na tesouraria disponibilidades de caixa suficientes para liquidar um documento de crédito apresentado a pagamento;
b) Para efeitos de realização das transferências previstas no nº 1 do artigo 3º.'
Criou-se, desse modo, um sistema de controlo contabilístico das receitas e despesas dos serviços que não permite pagamentos por endosso de cheques: o tesoureiro, caso não existam, de momento, disponibilidades de caixa para liquidar um documento de crédito apresentado a pagamento, deverá emitir cheques nominativos, não sendo, por conseguinte, admissíveis os pagamentos por endosso de cheques.
No caso vertente, a autora, ora recorrida, em 2 de Maio de 1988, emitiu três cheques, em nome do Tesoureiro da Alfândega de Setúbal, sacados sobre a sua conta de depósito à ordem aberta na agência do Banco ora recorrente que, no entanto, os endossou à ordem de um despachante alfandegário, o qual os creditou na própria conta.
Sendo a Alfândega de Setúbal uma delegação aduaneira extra-urbana, cujo tesoureiro não pode fazer pagamentos a terceiros, e constando do aludido artigo 7º que as tesourarias das Alfândegas não podem efectuar reembolsos através do endosso de cheques, só o podendo fazer por meio de cheques nominativos, sacados pela própria Alfândega à ordem dos interessados, o Banco pagou indevidamente esses cheques, na tese da recorrida, e, assim, deverá indemnizá-la correspondentemente.
A acção foi, no entanto, julgada improcedente na 1ª instância por decisão de 19 de Setembro de 1994 (fls. 310-v e segs.) e absolvido o réu do pedido, ponderando-se, então, que o artigo 7º em causa apenas impõe que os cheques emitidos pelas tesourarias aduaneiras sejam sempre nominativos, nada dispondo quanto ao processamento de reembolsos através do endosso de cheques, prática que não proíbe.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Junho de 1995, confirmou o decidido (fls. 355 e segs.).
Não obstante, tendo a autora recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça, este Alto Tribunal, por acórdão de 1 de Outubro de 1996
(fls. 405 e segs.), concedeu a revista e julgou a acção procedente, condenando o réu no pedido, tendo em conta, fundamentalmente, a proibição do pagamento de cheques por endosso, sendo estes nominativos por exigência daquela artigo 7º.
Ora, o Banco recorrido só no incidente de arguição de nulidades do acórdão - que viria a ser indeferido pela Conferência, em acórdão de 30 de Janeiro último (p. 442) - suscitou a questão de incompatibilidade do regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 453/82 com a Lei Uniforme sobre Cheques, particularmente o artigo 14º desta, em termos que assim condensa:
'[...] impunha-se que o Supremo Tribunal, que assumiu a posição de julgar inválido o endosso - no caso, completo e nominativo - dos cheques por virtude da proibição de endosso que o mesmo Supremo Tribunal entende existir no Dec.Lei nº 453/82, se pronunciasse sobre a conformidade ou desconformidade de tal interpretação com o disposto no artº 14º da Lei Uniforme sobre Cheques, ou seja, sobre a conformidade ou desconformidade entre uma norma interna e uma norma de direito internacional convencional.
Até porque, a existir desconformidade estaríamos no campo da ofensa do artigo 8º da lei Fundamental'.
Pretende o recorrente ter suscitado atempadamente a questão de inconstitucionalidade, ao arguir nulidades do primeiro acórdão do Supremo, por só então este Alto Tribunal se ter pronunciado sobre a matéria.
Será assim?
5.- Entende-se que não.
Constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que a suscitação de inconstitucionalidade normativa aludida na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 seja interpretada não em sentido formal, de modo a ser considerada tempestiva até à extinção da instância, mas sim em sentido funcional, tal que esse invocação possa ser conhecida e abordada pelo tribunal recorrido ao proferir a decisão sobre a matéria a que respeita a questão de constitucionalidade (cfr., por todos, o acórdão nº 155/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995).
A esta luz, o incidente de arguição de nulidades da decisão recorrida - tal como o pedido de aclaração desta, o requerimento de interposição de recurso ou as respectivas alegações - já não constitui - em princípio - momento oportuno de suscitação da questão (cfr. o citado acórdão e lugares nele referidos).
Admite-se, no entanto, que o recorrente ainda o possa fazer nesse momento se, porventura, não teve oportunidade de, na altura própria, equacionar a questão - o que sucederá em circunstâncias excepcionais ou anómalas, nomeadamente quando o tribunal aplique norma, ou uma sua interpretação, em sentido inesperado, de modo a poder dizer-se que o interessado não podia prever nem era exigível que o previsse (cfr., por todos, os acórdãos nºs. 479/89 e 595/96, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e 22 de Julho de 1996, respectivamente).
No caso vertente, é certo que o recorrente, ao interpor recurso para o Tribunal Constitucional, não descurou sublinhar que só suscitou a matéria de constitucionalidade ao arguir nulidades do acórdão recorrido pois só neste é que o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou nesta área.
Mas não tem razão.
Antes de mais - e independentemente de se apurar se a normação questionada foi efectivamente aplicada, questão que se deixa em aberto por não interessar abordá-la - considera-se que o recurso se cinge à norma do artigo 7º do Decreto-Lei nº 453/82, uma vez que a referência globalizante ao
'conjunto de todas as normas' deste diploma não se assume como meio idóneo de identificação precisa e perceptível do objecto do recurso (cfr., neste sentido, o já citado acórdão nº 155/95, além do acórdão nº 442/91, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 2 de Abril de 1992, e de outros, como os nºs.
605/96 e 607/96, inéditos).
Não interessa, no entanto, apelar ao expediente previsto no nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, pois, na verdade, a invocação pelo Supremo do artigo 7º - e do regime do diploma em que se insere - nada teve de surpreendente, bem se podendo dizer que a estratégia processual do recorrente devia ter contemplado a eventualidade de recurso para o Tribunal Constitucional, com atempada suscitação de uma problemática vinda já das instâncias.
Com efeito, já a Relação abordara o disposto no artigo
7º em causa, se bem que para se ponderar que não se proíbe expressamente o endosso de cheques pelo tesoureiro aduaneiro, numa interpretação que a ora recorrida entendeu desrespeitar essa mesma norma, como condensa na conclusão 22ª das respectivas alegações do recurso de revista. De resto, logo na petição inicial se alega que o réu, ora recorrente, sabia, ou devia saber, que as tesourarias das Alfândegas não fazem reembolsos através de endossos de cheques, mas apenas por cheques nominativos, ou seja, sacados pela própria Alfândega à ordem do interessado por tal resultar inequivocamente do artigo 7º do Decreto-Lei nº 453/82 (cfr. artigos 48º e 49º do petitório).
Não se crê, na verdade, em que medida o Supremo, ao conceder a revista, revogando o acórdão da Relação, por abraçar a tese da inadmissibilidade legal do pagamento de cheques por endosso (na circunstância), tenha assumido uma decisão-surpresa ou uma interpretação normativa que ao recorrente não era exigível prever.
Entende-se, por conseguinte e desde já, não se verificar o pressuposto da suscitação atempada, inviabilizando-se, assim, a admissibilidade do recurso com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
6.- O recorrente, porém, a 'título subsidiário' interpôs igualmente recurso com base na alínea i) do mesmo preceito, no aditamento da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, a qual permite recurso das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional ou a apliquem em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional.
A situação concreta não se integra, no entanto, na previsão legal.
O aditamento desta alínea ficou a dever-se, por um lado,
à conveniência experimentada pelo legislador em eliminar a divergência da jurisprudência das duas Secções do Tribunal Constitucional sobre a competência deste para conhecer da desconformidade entre direito internacional convencional e direito interno constante do acto legislativo [(cfr., a este propósito, J.M. Cardoso da Costa, A Jurisprudência Constitucional em Portugal, 2ª ed., Coimbra,
1992, pág. 27, nota 27; Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1995, págs. 322 e segs.; Inês Domingos e Margarida Meneres Pimentel, 'O Recurso de Constitucionalidade (espécies e respectivos pressupostos)' in - Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, pág. 439 e segs.; Guilherme da Fonseca e Inês Domingos - Breviário de Direito Processual Constitucional, Coimbra, 1997, pág. 61]. Por outro lado, afastou-se a via de recurso para o Tribunal Constitucional quando a decisão de um tribunal aplique norma de direito interno cuja desconformidade com convenção internacional haja sido suscitada por uma das duas partes no processo (cfr. autores citados e, v.g., acórdãos nºs. 170/92 e 185/92, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, e 162/93, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 10 de Abril de 1993).
Ou seja, como se ponderou no citado acórdão nº 170/92, na matéria de eventual contradição entre a norma legal e a convenção internacional, não cabe recurso nos termos previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, sendo apenas admissível recurso de acordo com a alínea i) do mesmo preceito legal quando haja recusa de aplicação da norma legal. O que, manifestamente, não se verifica no caso sub judice.
Logo, entende-se que também não pode conhecer-se do objecto do recurso, quando fundado este na mencionada alínea i). Mesmo que outra compreensão lhe seja dada, como a que flui dos acórdãos nºs. 61/91 e 100/92, entre outros, e dos votos de vencido apostos no acórdão 162/93, arestos publicados no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 1991, 18 de Agosto de 1992 e 10 de Abril de 1993, respectivamente: com base na alínea b) do nº 1 do artigo 70º por falta de suscitação atempada; com fundamento na alínea i) do mesmo preceito, pela fundamentação exposta e porque, de qualquer modo, sempre subsistiria o óbice da equacionação não oportuna da questão, à luz da alínea b).
Ouçam-se as partes nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.