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Processo n.º 426/2009
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, foi proposta por A.,S.A. acção declarativa de condenação em processo sumaríssimo contra B., S.A. e C., S.A., na qual a autora pede a condenação solidária das rés no pagamento de indemnização por ter sofrido um acidente de viação, em virtude do colisão entre o seu veículo e um canídeo, ocorrido em auto-estrada de que é concessionária a primeira ré.
Por sentença do Tribunal Judicial de Paredes, a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo a primeira ré sido condenada a pagar à autora a quantia de € 748, 20, acrescida de juros legais e a segunda ré condenada a pagar à autora a quantia de € 1 940, 89, acrescida de juros legais.
É dessa sentença que B., S.A. interpôs o presente recurso de constitucionalidade.
Através dele pretende a recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas «[…] que se obtêm, pela interpretação, do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho (define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares) e, ainda, as constantes dos artigos 4.º a 12.º da mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações sistemáticas de implicação».
Notificada para o efeito, a recorrente veio apresentar alegações, concluindo do seguinte modo:
I – Quanto à matéria em discussão:
1ª No dia 26-Abril-2005, o veículo .., embateu num cão; houve danos materiais, sendo demandada a concessionária B..
2ª Verificou-se que a auto-estrada estava devidamente vedada e que a B. fizera as patrulhas regulamentares, nada tendo detectado de anormal.
3ª A 1ª Instância entendeu que a B., enquanto Ré, não ilidira uma presunção de culpa que, sobre ela, empenderia, condenando-a;
4ª Fazendo aplicação retroactiva da Lei n° 24/2007, de 18 de Julho, entretanto publicada, entendeu o Tribunal a quo que a discussão sobre a responsabilidade da B. perdera o interesse, condenando-a.
II – Quanto à Lei n°24/2007, de 18 de Julho:
5ª A B. é uma sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração de auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei n° 247-C/2008, de 30 de Dezembro.
6ª Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto-estrada do Norte), a Assembleia da República aprovou a Resolução n° 14/2004, de 31 de Janeiro (DR 1ª Série-A, N° 137, DE 3 1-Jan.-2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração das bases da concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a melhor informar os utentes da sua ocorrência.
7ª Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias: inconclusivas, por falta de disponibilidades orçamentais.
8ª Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois projectos de Lei: Projecto n° 145/X (PCP) e n° 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro (Decreto n° 122/X), o qual deu azo à Lei n° 24/2007, de 18 de Julho, destinada, no fundo, a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível pela negociação.
9ª A Lei n° 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem compensação.
10ª Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras, à suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro: também sem compensação.
11ª Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os derivados do atravessamento de animais) estabeleceu uma denominada “presunção de incumprimento”, contra as concessionárias: igualmente sem compensação.
III – Quanto aos juízos de inconstitucionalidade:
A – Primeiro fundamento: violação dos princípios do Estado de direito democrático e da separação de poderes (artigo 2°)
12ª A Lei n° 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto órgão superior da administração pública – 182° – incumbido da direcção da administração directa do Estado – 199°, d).
13ª Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a já referida Resolução n° 14/2004.
14ª A Lei n° 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na área própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e violando o artigo 2° da Constituição.
15ª Além disso, a Lei n° 24/2007, designadamente através do seu artigo 12°/1, veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre particulares.
16ª Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (202°/2), sob pena de se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos direitos (20°/1).
17ª A Lei n° 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2° da Constituição.
18ª Também o principio da protecção da confiança, num outro aspecto, seria violado por aquela Lei, enquanto põe em causa o particular mundo das empresas que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão obter e os custos em que vão incorrer.
B – Segundo fundamento: violação do princípio da igualdade (artigo 13°)
19ª O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade.
20ª O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio, distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional, emergente da violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal presunção (mais leve): artigos 799°/1 e 487°/1, do Código Civil.
21ª A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária: depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.
22ª No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando-se cumpridos os deveres específicos a cargo da B., apenas queda verificar se, com violação do dever genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é, pela natureza das coisas, aquiliana.
23ª A “presunção de incumprimento”, ao interferir (e na medida em que interfira) nessa questão, viola o artigo 13°/1, da Constituição. Sem conceder,
24ª A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade rodoviária: nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e nunca ad hominem.
25ª Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13°/1. Sem conceder,
26ª O artigo 12°/1 da Lei n° 24/2007 veio, de facto, fixar uma presunção de “não-cumprimento” (e, não, de culpa); com isso estabelece, de facto, um regime de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres, a concessionária ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação de puro risco.
27ª A responsabilidade pelo risco é expoliativa: só se admite em casos especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e acompanhamento por seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo-se o artigo 13°/1 da Lei Fundamental. Sem conceder,
28ª A Lei n° 24/2007, em vários dos seus preceitos, designadamente o artigo 12°/ 1, veio atingir selectivamente os direitos das concessionárias; fê-lo fora de quaisquer pressupostos tributários, violando, também por aqui, a igualdade prevista no artigo 13°/1, da Constituição.
C – Terceiro fundamento: violação da tutela da propriedade privada
29ª A recorrente B. detém um acervo patrimonial enquanto parte num contrato de concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela Constituição, por reconduzir-se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62°/1, da Constituição).
30ª A Lei n° 24/2007, em vários dos seus preceitos e, designadamente, no seu artigo 12°, veio atingir direitos patrimoniais pré-existentes, sem compensação: violou a propriedade privada.
31ª No caso do artigo 12° em causa, esse fenómeno mais flagrante se toma: foi criada, com referência a situações pré-existentes, uma situação objectiva de risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a violação do artigo 62°/1, da Constituição, surge apodíctica.
IV – Quanto à relevância nos autos:
32ª A Lei n° 24/2007 levou o Tribunal a abdicar da sua judicação: não atentou nos factos apurados, designadamente nos que traduziram, por parte da B., o cumprimento das suas obrigações.
33ª Além disso, a douta sentença recorrida fez, da Lei n° 24/2007, uma aplicação retroactiva, o que mais ampliou as apontadas inconstitucionalidades.
34ª A não se aplicar a Lei n° 24/2007, a saída para o litígio em discussão seria a inversa.
As recorridas não contra-alegaram.
A Relatora proferiu então o seguinte despacho:
Notifique o recorrente para, querendo, se pronunciar, num prazo de dez dias, sobre a eventualidade de o Tribunal Constitucional vir a conhecer do objecto do recurso apenas quanto à questão de constitucionalidade relativa à norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, por ter sido essa, e só essa, a norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
Ao despacho proferido pela Relatora, a recorrente não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
2. Apesar de, quer no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade quer nas suas alegações, a recorrente afirmar pretender a apreciação da constitucionalidade das normas «[…] que se obtêm, pela interpretação, do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho” e, ainda, das «constantes dos artigos 4.º a 12.º da mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente visadas, tenham relações sistemáticas de implicação», resulta da falta de resposta da recorrente ao despacho proferido pela Relatora que o objecto do presente recurso de constitucionalidade se cinge à norma constante do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.
Questão de constitucionalidade
3. Sobre a norma constante do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho já se pronunciou o Tribunal Constitucional, nos seus acórdãos n.º 597/2009, 629/2009 e 98/2010, qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que a não julgaram inconstitucional.
Também no acórdão n.º 596/2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, “em caso de acidente rodoviário em auto-estradas, em razão do atravessamento de animais, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não lhe deixou realizar o cumprimento”.
Não oferecendo a recorrente fundamentos adicionais relativamente àqueles que já foram apreciados pelo Tribunal Constitucional, nem se vislumbrando que outros possa haver, entende-se ser de manter o já decidido pelo Tribunal Constitucional.
III – Decisão
4. Nestes termos, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Outubro de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.