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Proc. nº 771/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. O Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional veio, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nº 3, da Constituição, e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, requerer a declaração, com força obrigatória geral, da «inconstitucionalidade da norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, de 24 de Janeiro, na parte em que fixa em valor superior ao do regime geral fixado na versão originária do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, os limites mínimo e máximo da coima aplicável à contra-ordenação dolosa, cometida por pessoa singular, consistente na abertura ou funcionamento de estabelecimento de apoio social, com fins lucrativos, não licenciado nem dispondo de autorização de funcionamento provisório», norma essa que já foi «julgada organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea d) da Constituição da República Portuguesa, através dos Acórdãos nºs 837/93, de 16 de Dezembro, 139/96, de 1 de Fevereiro e 140/96, de 7 de Fevereiro, todos da 1ª Secção».
2. Notificado para se pronunciar nos termos do artigo 54º da Lei nº 28/82, o Primeiro-Ministro veio a fazê-lo nos termos da resposta junta aos autos, concluindo que «uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral» daquela norma identificada se deveria circunscrever «à parte deste artigo em que se fixa, relativamente à infracção cometida com dolo por pessoa singular, um limite máximo aplicável de montante superior ao previsto na redacção originária do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro».
3. Cumpre apreciar e decidir o presente pedido.
II - FUNDAMENTOS
4. O artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, de 24 de Janeiro, dispõe o seguinte:
Constitui contra-ordenação punível com coima de 500 000$00 a 1
500 000$00 a abertura ou o funcionamento do estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização de fun- cionamento provisório, nos termos do artigo 16º.
Esta norma não diferencia entre pessoas singulares e colectivas, vindo, porém, questionada a sua constitucionalidade apenas na vertente aplicável às pessoas singulares.
5. O regime geral do ilícito de mera ordenação social consta do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, e pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, tendo estes dois diplomas procedido, além do mais, à alteração dos limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis às contra-ordenações.
O referido Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, constitui, assim, a lei-quadro das contra-ordenações, definindo o seu regime geral, incluindo os limites mínimo e máximo das coimas.
Na sua versão originária, dispunha o artigo 17º do Decreto-Lei nº 433/82 o seguinte:
1 - Se o contrário não resultar da lei, o montante mínimo da coima será de 200$00 e o máximo de 200 000$00.
2 - Se a lei, relativamente ao montante máximo, não distinguir o comportamento doloso do negligente, este só poderá ser sancionado até metade do montante máximo da coima prevista.
3 - As coimas aplicadas às pessoas colectivas poderão elevar-se até aos montantes máximos de:
a) 3 000 000$00 em caso de dolo;
b) 1 500 000$00 em caso de negligência.
O Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, alterou os números 1 e 3 daquele artigo, que passaram a ter a seguinte redacção:
1 - Se o contrário não resultar da lei, o montante mínimo da coima aplicável a pessoas singulares será de 500$00 e o máximo de 500 000$00.
.........................................
3 - Se o contrário não resultar da lei, as coimas aplicadas às pessoas colectivas poderão elevar-se até aos montantes máximos de:
a) 6 000 000$00 em caso de dolo;
b) 3 000 000$00 em caso de negligência.
E, finalmente, o Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, veio introduzir a seguinte redacção para o mencionado artigo
17º:
1 - Se o contrário não resultar de lei, o montante mínimo da coima aplicável às pessoas singulares é de 750$00 e o máximo de 750 000$00.
2 - Se o contrário não resultar de lei, o montante máximo da coima aplicável às pessoas colectivas é de 9 000 000$00.
3 - Em caso de negligência, se o contrário não resultar de lei, os montantes máximos previstos nos números anteriores são, respectivamente, de
375 000$00 e de 4 500 000$00.
4 - Em qualquer caso, se a lei, relativamente ao montante máximo, não distinguir o comportamento doloso do negligente, este só pode ser sancionado até metade daquele montante.
6. O artigo 168º, nº 1, alínea d) da Constituição reserva à competência exclusiva da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo.
Assim, só com observância desse regime geral, e dos limites aí definidos, pode o Governo modificar, criar ou eliminar contra-ordenações e estabelecer as coimas a elas aplicáveis.
Este Tribunal tem-se debruçado detalhadamente sobre a questão das competências respectivas do Parlamento e do Executivo em matéria do ilícito de mera ordenação social, desde o Acórdão nº
56/84, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 3º, págs. 153). Designadamente, no Acórdão nº 74/95 (Diário da República, II Série, nº 135, de
12 de Junho de 1995), pode-se ler:
Conforme já exposto no citado Acórdão nº 56/84 (Diário da República, 1ª Série, de 9 de Agosto de 1984), o Tribunal entende que o Governo tem competência (concorrente com a da Assembleia da República) para definir, alterar e eliminar contra-ordenações, e bem assim para modificar a sua punição; porém, é matéria da competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social [artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição, na actual redacção], isto é, sobre a definição da natureza do ilícito contra-ordenacional, a definição do tipo de sanções aplicáveis às contra- ordenações e a fixação dos respectivos limites e das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação concreta de tais sanções (coimas).
Ora, como tais limites se encontram fixados no artigo 17º, nº
1, do Decreto-lei nº 433/82, o Governo só mediante autorização legislativa parlamentar pode estabelecer coimas com valores mínimos inferiores aos limites mínimos aí previstos, ou com valores máximos superiores aos limites máximos aí previstos. Pode, porém, estabelecer valores mínimos superiores àqueles limites mínimos, desde que, evidentemente, sejam inferiores aos correspondentes limites máximos.
7. A questão que importa apreciar no presente processo é, pois, a de saber em que medida o Governo, sem autorização legislativa, podia, de acordo com a Constituição, fixar os concretos montantes mínimo e máximo da coima aplicável à contra-ordenação prevista no artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89. Questão esta que, quanto aos problemas jurídicos que pode suscitar, já foi apreciada numerosas vezes, como se viu, a propósito de vários diplomas que fixaram limites superiores aos constantes do Decreto-Lei nº 433/82.
Conforme exposto, o Tribunal reafirma que o Governo tem competência - concorrente com a da Assembleia da República -, para definir, alterar e eliminar contra-ordenações, e bem assim para modificar a sua punição; mas só mediante autorização legislativa parlamentar pode estabelecer coimas com valores mínimos inferiores aos limites mínimos previstos na lei-quadro, ou com valores máximos superiores aos limites máximos nela fixados. Já pode, contudo, sem necessitar de autorização parlamentar, estabelecer valores mínimos superiores aos limites mínimos da lei-quadro, desde que inferiores aos correspondentes limites máximos.
8. Pois bem, aquando da publicação do Decreto-Lei nº 30/89, de 24 de Janeiro, do qual consta a norma em apreciação, no seu artigo 27º, encontrava-se em vigor a versão originária do Decreto-Lei nº
433/82; e, como se viu, nesta versão, impunha-se o limite mínimo de 200$00 e o limite máximo de 200 000$00 para as coimas aplicáveis às pessoas singulares.
Ora, a norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89 estipula um limite mínimo de 500 000$00 e um limite máximo de 1 500 000$00, valores, portanto, ambos significativa- mente superiores ao limite máximo constante da lei-quadro, na versão vigente à data da publicação do referido Decreto-Lei nº 30/89.
Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, os limites da lei-quadro passaram a situar-se em 500$00 e 500 000$00. Ou seja, passou o montante mínimo estabelecido para a contra-ordenação criada pelo Decreto-Lei nº 30/89 a coincidir com o limite máximo previsto na lei-quadro, sendo que este se mantinha em valor inferior ao do montante máximo fixado naquele decreto-lei, para a mesma contra- -ordenação.
Finalmente, as alterações introduzidas no regime geral das contra-ordenações, em 1995, fixaram aqueles limites em 750$00 e
750 000$00. Continuando o limite máximo da coima prevista pelo artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89 a situar-se bastante acima (o dobro) deste limite máximo determinado pelo regime geral, o respectivo limite mínimo passou a encontrar-se já dentro daquela moldura.
9. Nos arestos que sustentam o presente pedido de declaração de inconstitucionalidade considerou-se que a norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, «ao fixar limites para a coima ali considerada, em oposição ao que se achava definido no regime geral», consubstanciava uma dupla viciação, coexistindo naquela norma os vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade, «resultante este último da ofensa à norma constitucional que define a competência legislativa da Assembleia da República».
Traduzindo-se esta numa situação de inconstitucionalidade orgânica, concluem não ser possível aqui uma constitucionalização parcial superveniente, «e assim sendo, a norma do artigo
27º do Decreto-Lei nº 30/89, haveria de ser avaliada quanto à sua legitimidade constitucional, em função do parâmetro legal e constitucional existente na data da sua aprovação, concretamente o que se contém na versão originária do Decreto-Lei nº 433/82, e no artigo 168º, nº 1, alínea d) da Constituição».
E, assim, decidiram julgar inconstitucional aquela norma, «na parte em que fixa em valor superior ao do regime geral fixado na versão originária do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, os limites mínimo e máximo da coima aplicável à contra-ordenação dolosa cometida por pessoa singular consistente na abertura ou funcionamento do estabelecimento de apoio social com fins lucrativos, não licenciado nem dispondo de autorização de funcionamento provisório».
10. Entenderam, portanto, os invocados acórdãos da 1ª Secção deste Tribunal, como se assinalou no Acórdão nº 40/97, da
2ª Secção (ainda inédito), que «para ajuizar se determinada norma legal é inconstitucional por violação da mencionada alínea d) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, o parâmetro de referência tem que ser a lei-quadro do ilícito de mera ordenação social na versão em vigor à data da sua edição».
Contudo, já no Acórdão nº 157/96, também da 2ª Secção, (igualmente inédito), se ponderava que quem se ativesse «ao facto de a lei-quadro ser simples parâmetro mediato ou interposto de validade - e não lei a que cumpra definir o órgão competente para a fixação do montante das coimas», propenderia a considerar «relevante, para o efeito de saber quais os montantes que devem servir de parâmetros de referência, o momento da prática da respectiva infracção».
E foi este último o entendimento que prevaleceu no citado Acórdão nº 40/97 e, bem assim, no Acórdão nº 41/97 (2ª Secção, inédito).
É que, com efeito, não se trata de qualquer constitucionalização superveniente de uma norma ferida de inconstitucionalidade orgânica, mas tão-só de verificar a existência de uma inconstitucionalidade que deriva da violação de uma norma interposta. Assim sendo, tal inconstitucionalidade há-de ser necessariamente aferida, em cada momento, em função da norma interposta então vigente.
11. Procedendo-se a tal aferição, no tocante ao limite máximo, e conforme o já exposto (cfr. 8., supra), verifica-se que o mesmo - 1 500 000$00 - é sempre superior ao limite máximo previsto na lei-quadro, em qualquer das suas versões. Com efeito, este era de 200 000$00 à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 30/89, tendo passado para 500 000$00 em 1989, e, finalmente, para 750 000$00 em 1995.
Aassiste-se, portanto, aqui, ao transbordar pelo Governo da sua competência legislativa, por exceder o limite máximo previsto na lei-quadro, com a consequente inconstitucionalidade da norma nesta parte.
12. Já quanto ao limite mínimo, verifica-se que, face à versão originária da lei-quadro, vigente à data da publicação da norma em causa, constante do Decreto-Lei nº 30/89, esse limite mínimo - 500 000$00 - era superior ao limite máximo estabelecido nessa mesma lei-quadro - 200 000$00.
Assim, o Governo, embora pudesse estabelecer o limite mínimo da coima em valor superior ao estipulado na lei-quadro, foi além da sua competência legislativa na medida em que, ao estabelecer esse limite mínimo, excedeu o limite máximo da coima prevista no regime geral. É que, na verdade, e como é óbvio, nunca o montante daquele limite mínimo poderá exceder o do limite máximo, já que neste encontra uma fronteira inultrapassável. Daqui resulta a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, na fase que antecede a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 356/89.
Tal limite mínimo veio a igualar o limite máximo constante da lei-quadro, entre 1989 e 1995, por força das alterações introduzidas no mencionado regime geral. Dir-se-ia, face a esta verificação, que se poderia aplicar o limite mínimo constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº
30/89, já que, não sendo superior, mas igual, ao limite máximo aplicável (500
000$00), daí apenas decorreria como consequência a aplicação de uma coima de montante não variável, sendo certo que a jurisprudência deste Tribunal, plasmada nos Acórdãos nºs 83/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18º vol., págs...) e 441/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., págs. 643), tem sido a seguinte:
[...] dos princípios constitucionais da justiça, igualdade e proporcionalidade «não decorre necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegi- timidade constitucional de todas as chamadas penas fixas», não existindo assim um obstáculo constitucional a uma sanção contra-ordenacional dessa natureza.
Só que, mesmo sem se questionar uma tal jurisprudência - questão que aqui se deixa em aberto -, a verdade é que, in casu, a possibilidade de aplicação de uma sanção não variável implicaria uma frontal contradição com a vontade expressa do legislador no artigo 30º do Decreto-Lei nº 30/89, onde se estabelecem os critérios para a graduação e determinação, em concreto, dos montantes das coimas. Também, pois, nesta fase, antecedente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 244/95, se verifica a inconstitucionalidade da norma em causa.
Finalmente, com a última versão da lei-quadro - isto é, desde 1995 -, o limite mínimo previsto pelo artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89 passou a estar abaixo do valor do limite máximo, sendo sempre de montante superior ao limite mínimo da lei-quadro, pelo que deixou de se verificar qualquer inconstitucionalidade da norma nesta fase, posterior à vigência desta última versão da lei-quadro.
13. A evolução dos limites mínimo e máximo da lei-quadro deixa prever a possibilidade de outras alterações futuras. E, para além disso, como se viu, houve momentos em que a aplicação do limite mínimo constante do Decreto-Lei nº 30/89 seria gerador de uma situação de inconstitucionalidade e outras em que já o não seria.
Desta forma, a declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada não há-de ser feita em função de cada uma das anteriores versões da lei-quadro de que consta a norma interposta com que aquela necessariamente tem de ser confrontada, mas em função da norma interposta em vigor à data da prática da infracção a que ela deva ser aplicada.
III - DECISÃO
14. Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do preceituado na alínea d) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, da norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, de 24 de Janeiro, enquanto aplicável a pessoas singulares, mas tão-só na parte em que ela, ao cominar a coima da contra-ordenação que define, fixa o seu limite máximo em montante superior ao limite máximo estabelecido na respectiva lei-quadro, na versão vigente à data da prática da correspondente infracção, e fixa o seu limite mínimo em montante igual ou superior a este último limite máximo.
Lisboa, 4 de Março de 1997 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra José Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Fernando Alves Correia Antero Alves Monteiro Diniz (vencido, nos termos da declaração junta) Maria Fernanda palma (vencida, em parte, quanto à fundamentação e quanto à decisão, remetendo, no essencial, para a declaração de voto do Senhor Conselheiro Monteiro Diniz) Alberto Tavares da Costa (vencido, parcialmente por adesão à doutrina consignada, entre outros, no Acórdão nº
441/93) Armindo Ribeiro Mendes (vencido, em parte, quanto à fundamentação e quanto à decisão, remetendo, no essencial, para as razões da jurisprudência da 1ª secção que votei, e que se acham reafirmadas na declaração de voto do Ex.mo Senhor Conselheiro Monteiro Diniz) Vítor Nunes de Almeida (vencido, em parte, quanto à fundamentação e à decisão, pelos fundamentos constantes do acórdão da 1ª secção sobre a matéria e referidos no Acórdão) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de Voto
1 - Talqualmente foi sustentado e decidido nos Acórdãos nºs 837/93, de 16 de Dezembro e 139/96, de 1 de Fevereiro, de que o signatário foi relator, mantenho o entendimento de a norma do artigo
27º do Decreto-Lei nº 30/89, de 24 de Janeiro, na parte em que fixa em valor superior ao do regime geral fixado na versão originária do Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, os limites mínimo e máximo da coima aplicável à contra ordenação dolosa cometida por pessoa singular consistente na abertura ou funcionamento de estabelecimento de apoio social com fins lucrativos, não licenciado nem disposto de autorização de funcionamento provisório, ser inconstitucional por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea d) da Constituição.
Considerando desnecessário acrescentar à fundamentação aduzida naqueles arestos, maxime no Acórdão nº 837/93, argumentos acrescidos, transcreve-se, de seguinte, o essencial das razões que suportaram tal entendimento.
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2 - Escreveu-se assim:
'Ao tempo da aprovação do Decreto-Lei nº 30/89, vigorava ainda a versão originária do Decreto-Lei nº 433/82, nos termos da qual, os limites da coima aplicável a contra-ordenação dolosa cometida por pessoa singular, haviam de se situar entre os montantes de 200$00 e de 200.000$00, vindo estes quantitativos a ser alargados para 500$00 e 500.000$00 pelo Decreto-Lei nº
356/89, já vigente na data da comissão do facto contra-ordenacional aqui controvertido.
Ora, porque a ampliação quantitativa dos limites prescritos no regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social se projecta na própria dimensão da competência legislativa concorrencial do Governo, importaria averiguar se tal alteração implicaria a 'constitucionalidade superveniente', total ou parcial de normas que se apresentavam como inconstitucionais face ao regime geral existente na data da sua aprovação, em ordem a determinar-se, se as normas postas em crise haveriam de ser constitucionalmente contrastadas através da interferência do Decreto-Lei nº
433/82, na sua versão originária ou na sua actual redacção.
A questão é, de algum modo, similar à que se coloca quando uma revisão constitucional faz desaparecer a desconformidade entre uma norma de direito ordinário anterior e o precedente texto constitucional, e foi já objecto de pronúncia por parte deste Tribunal no Acórdão nº 408/89, Diário da República, II série, de 31 de Janeiro de 1990.
Neste aresto, a propósito desta específica matéria, consignou-se, nomeadamente, o seguinte:
'É incontestável que, se a norma legal em causa tivesse violado as normas constitucionais vigentes na altura em matéria de forma e de competência legislativa, seguramente que essas normas teriam nascido inconstitucionais, e inconstitucionais continuariam a ser, mesmo que uma revisão constitucional viesse a alterar as regras constitucionais pertinentes. Em matéria de forma e competência, as alterações constitucionais só são relevantes para o futuro, isto é, só relevam para os actos normativos posteriores; os actos normativos anteriores continuam a ser constitucionalmente válidos ou inválidos de acordo com as normas constitucionais vigentes à data deles; nem se tornam inconstitucionais, se o não eram; nem deixam de ser inconstitucionais, se o eram;'
E mais adiante
'Quando, porém, se trata de aferir a legitimidade constitucional do conteúdo das normas jurídicas (ou seja, a constitucionalidade material), os dados da questão alteram-se radicalmente. Do que se cuida então é de saber se a Constituição consente as soluções contidas na norma em questão; o que importa averiguar é se o que a norma estipula é permitido pela Constituição, independentemente da natureza formal, da autoria, da origem e da data da norma. O facto de uma norma ter nascido materialmente conforme à Constituição não impede que ela passe a ser inconstitucional, se a Constituição vier a ser alterada de modo a tornar a norma incompatível com ela (era conforme à Constituição, mas deixou de o ser); inversamente, o facto de uma norma ter nascido materialmente inconstitucional não veda que a inconstitucionalidade desapareça (era inconstitucional, mas deixou de o ser), se e a partir do momento em que a Constituição for alterada de modo a permitir a solução contida na referida norma (supondo, evidentemente, que ela continua em vigor, não tendo ela caducado, ou sido revogada ou declarada inconstitucional com força obrigatória geral). Na primeira hipótese, haverá uma inconstitucionalidade superveniente; na segunda, uma constitucionalização superveniente. Nem uma nem outra têm naturalmente efeitos retroactivos: a inconstitucionalidade superveniente não invalida a norma para o passado (ela continua a não ser inconstitucional nesse segmento temporal) e a constitucionalização superveniente não convalida a norma desde a origem (ela continua a ser inconstitucional no período decorrido até à alteração constitucional que a validou)'.
Assim, em conformidade com a doutrina deste aresto, no capítulo da competência e da forma dos actos normativos, a norma constitucional relevante é aquela que vigora na data da sua formação, outrotanto não sucedendo já no tocante ao seu conteúdo material em que o parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma controvertida. O facto de a norma ter nascido materialmente conforme à Constituição não obsta que ela passe a ser inconstitucional, se a Constituição vier a ser alterada de modo a tornar a norma incompatível com o seu texto
(inconstitucionalidade superveniente); inversamente, o facto de uma norma ter nascido materialmente inconstitucional não veda que a inconstitucionalidade desapareça, se e a partir do momento em que a Constituição for alterada de modo a permitir a solução contida na referida norma (constitucionalização superveniente).
Contra a solução adoptada naquele aresto, a propósito da constitucionalização superveniente de normas materialmente inconstitucionais, pronunciou-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 3ª edição, pp. 277 a 279, com base no entendimento de que 'revisão constitucional supõe precedência e permanência da Constituição. Se as normas decretadas por revisão extraem a sua validade da Constituição (ou dos princípios constitucionais), dela hão-de também extraí-la as normas da lei ordinária, por maioria de razão. Mudando a norma constitucional sem que se afecte a norma legislativa antecedente (que com ela continua conforme), nenhum efeito se regista: a norma legislativa era válida e válida continua - à face da Constituição como um todo. Inversamente, se a norma legislativa era contrária à Constituição antes da revisão (embora não declarada inconstitucional) e agora fica sendo conforme à nova norma constitucional, nem por isso é convalidada ou sanada: ferida de raiz, não pode apresentar-se agora como se fosse uma nova norma, sob pena de se diminuir a função essencial da Constituição' (cfr. ainda sobre esta matéria, Rui Medeiros, Valores jurídicos negativos da lei inconstitucional, in O Direito, 1989, pp. 522 e 523 e Miguel Galvão Teles, Inconstitucionalidade pretérita, in Nos Dez Anos da Constituição, 1987, pp. 335 e 336).
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3 - Entende-se, aliás na esteira da jurisprudência deste Tribunal, que a violação por parte de actos normativos do Governo, sem autorização parlamentar, do regime geral de punição dos ilícitos contra-ordenacionais a que se refere o artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição, se traduz em inconstitucionalidade orgânica e não já em inconstitucionalidade material.
Com efeito, a norma do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, ao fixar limites para a coima ali considerada, em oposição ao que se achava definido no regime geral, contrariou não só a lei quadro definidora deste regime, mas e em simultaneidade, a norma da Constituição que define a competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Aquele preceito, acaba assim por ser portador de uma dupla viciação já que, em concurso ideal, nele coexistem os vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade, resultante este último da ofensa à norma constitucional que define a competência legislativa da Assembleia da República.
E, caracterizando-se esta situação, manifestamente como uma situação de inconstitucionalidade orgânica, há-de dizer-se, e é essa a lição unânime da doutrina, não ser possível verificar-se aqui uma constitucionalização parcial superveniente, na decorrência das alterações entretanto introduzidas na lei-quadro de punição do ilícito contra-ordenacional.
E assim sendo, a norma do artigo 27º do Decreto-Lei nº 30/89, haveria de ser avaliada quanto à sua legitimidade constitucional, em função do parâmetro legal e constitucional existente na data da sua aprovação, concretamente o que se contem na versão originária do Decreto-Lei nº 433/82, e no artigo 168º, nº 1, alínea d) da Constituição.'
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3 - Continuando a ter por bem fundada a argumentação de que se deixou transcrição, não se acompanha a solução adoptada no presente acórdão dela se dissentindo.