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Processo n.º 237/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., Lda., Recorrente nos presentes autos em que figura como Recorrida a Fazenda Pública, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial que deduziu contra o acto de liquidação de contribuição especial, efectuada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, no montante global de € 8 533,40, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Suscitou então a inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento Anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, conjugado com os artigos 57.º, n.º 1 e 60.º, da Lei Geral Tributária, quando interpretados no sentido de que a intervenção de um perito do contribuinte na comissão referida nesse artigo é suficiente para se considerar preenchido o princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.
2. Por acórdão de 3 de Fevereiro de 2010, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, entendendo que, tendo a Recorrente indicado perito que interveio na comissão de avaliação prevista no artigo 4.º, n.º 1, daquele diploma, e na medida em que qualquer intervenção posterior seria totalmente inócua quanto à liquidação final pois da mesma nunca poderia resultar alteração da matéria colectável, não se encontrava violado o direito de participação na formação da decisão administrativa.
Lê-se o seguinte na referida decisão:
“Como se vê, à face do regime previsto neste artigo, o contribuinte tem intervenção no procedimento de fixação da matéria colectável através da participação, por si ou seu representante, na comissão de avaliação.
Por outro lado, uma vez determinada a matéria colectável, constituída pela diferença de valores referida no art. 2.°, o cálculo da Contribuição Especial é efectuado através da aplicação da taxa adequada prevista no art. 10.º, não havendo possibilidade legal de ser utilizado como valor da matéria colectável qualquer outro valor.
Nestas condições, como bem se constata no acórdão recorrido, a intervenção do contribuinte antes da liquidação seria completamente inócua, pois dela nunca poderia resultar a alteração da matéria colectável.
Designadamente a ponderação dos elementos atinentes à avaliação que refere a Recorrente terá de ser efectuada no âmbito da avaliação, em que são ponderáveis, além dos factores especialmente indicados, «quaisquer outros elementos susceptíveis de influírem no valor dos prédios [alínea g) do n.º 2 do art. 6.°].
Neste contexto, prevendo-se uma forma de intervenção do contribuinte na formação da decisão através da participação na comissão de avaliação e não havendo qualquer utilidade em admitir uma nova intervenção antes da liquidação, por não poder ser alterado o valor sobre que deve incidir a taxa, é de concluir que a única forma de participação dos interessados na formação da decisão que se prevê é a que é assegurada ao contribuinte na comissão de avaliação, pois vigora no procedimento tributário um princípio geral de proibição de prática de actos inúteis, que aflora no n.º 1 do art. 57.° da LGT.”
3. Vem agora interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), com o seguinte objecto:
“O presente recurso tem por fundamento a inconstitucionalidade, por violação do artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) – e, consequentemente, do princípio da participação dos cidadãos – das disposições constantes do n.º 1 e 2 do artigo 4.º do Regulamento Anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, conjugadas com os artigos 57.º, n.º 1 e 60.º do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), quando interpretados no sentido de que a intervenção de um perito do contribuinte na comissão referida nesse artigo é suficiente para se considerar preenchido o princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.”
4. Notificada para produzir alegações, a Recorrente concluiu as mesmas do seguinte modo:
“1. Resulta dos factos provados que a liquidação de contribuição especial foi efectuada pelo Administração Fiscal, exclusivamente, com base em elementos, totalmente, exteriores à vontade da Recorrente. De facto, todos os elementos constantes do termo de avaliação a fls. 10 a 14 do apenso da reclamação graciosa foram trazidos pela Administração Tributária, limitando-se o contribuinte a indicar um perito para estar presente nessa avaliação. Resulta, assim, dos autos que em todo o procedimento nunca foi concedido ao contribuinte qualquer oportunidade de ser ouvido previamente à liquidação, sendo certo que a Recorrente só teve conhecimento dos termos da avaliação no dia em que foi notificada para proceder ao pagamento da contribuição especial. (cfr. fls. 17, 18 e 21 do apenso da reclamação graciosa).
II. O artigo 60.° da L.G.T. transpôs para o procedimento tributário o princípio constitucional da participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes dizem respeito, expresso no artigo 267.° n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. Assim, nos termos da referida norma, mormente do disposto no artigo 60.º n.º 1 a), da L.G.T., a Administração Fiscal antes de liquidar a contribuição especial deve ouvir o contribuinte.
III. Pretendeu, assim, o legislador constitucional que o administrado — neste caso o contribuinte - fosse ouvido por parte da Administração quando existisse um projecto de decisão, o qual seria apresentado ao administrado para que este pudesse, se não concordasse com o mesmo, apresentar as suas razões de discórdia, as quais seriam objecto de apreciação por parte da Administração, a qual, só depois de analisar a bondade dos argumentos apresentados, daria a sua decisão definitiva. Tal direito do administrado tem por intenção que este não seja confrontado com uma decisão que lhe é desfavorável sem que tenha, por qualquer modo, exercido o contraditório sobre a posição pretendida por parte da Administração.
IV. O Tribunal a quo, no seu douto acórdão, considerou que a audição prévia no processo de liquidação de contribuição especial é realizada através da intervenção do contribuinte ou do seu representante na comissão de avaliação a que alude o art. 2.°, 4.° e 6.° do Regulamento da Contribuição Especial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 43/98, sendo que tal intervenção estaria a coberto da expressão do artigo 60.° da L.G.T. que refere ‘sempre que a lei não prescrever em sentido diverso’.
Ora, tal interpretação é totalmente contrária, quer à ratio do artigo 267.° n.º 5 da CRP, quer à ratio do próprio princípio da participação do administrado nas decisões ou deliberações que lhe disserem respeito, já que a ‘alegada’ audição prévia nunca pode ser realizada numa fase de instrução do procedimento, mas apenas numa fase de pré-decisão.
É, assim, inconstitucional, por violação do artigo 267.° n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, a disposição inserta no n.º 1 e 2 do artigo 4.° do Regulamento Anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, conjugado com os artigos 57 n.º 1 e 60.° do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), quando interpretados no sentido de que a intervenção de um perito do contribuinte na comissão referida nesse artigo é suficiente para se considerar preenchido o princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.
Assim sendo, o douto acórdão recorrido fez uma incorrecta e inconstitucional interpretação e aplicação da lei aos factos, mormente, o disposto no artigos 267.° n.º 5 da CRP, o artigo 60.° n.º 1 e n.º 4 e 16.° n.º 1 da LGT.
V. In casu a liquidação impugnada, quer abstracta quer objectivamente, podia ser contestada através do exercício do direito de audição pela Recorrente, já que só esta poderia aferir correctamente, a título de exemplo, sobre o valor m2 de construção - em 1994 e à data do pedido de licenciamento -, sobre a área de construção efectivamente edificada, o n.º de fogos efectivamente edificados, a volumetria de construção efectivamente edificada, elementos estes que, apenas, constam do alvará de construção sob a forma de previsão, sendo estes, habitualmente, alterados em função da obra efectivamente edificada.”
A Recorrida Fazenda Pública não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A Recorrente invoca a inconstitucionalidade do juízo normativo resultante da leitura conjugada dos artigos 4.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento Anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, e dos artigos 57.º, n.º 1 e 60.º da Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, doravante LGT). Na realidade, a disposição do último preceito citado que integrou a ratio decidendi da decisão recorrida é apenas o n.º 3, impondo-se assim, nesta medida, a delimitação do objecto do recurso.
6. Vejamos o teor dos referidos preceitos legais:
Regulamento da Contribuição Especial
(Anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março)
Artigo 4.°
Determinação da matéria colectável
1 — A avaliação referida no n.º 2 do artigo 2.º ficará a cargo de uma comissão constituída pelo contribuinte ou seu representante e por dois peritos nomeados pela Direcção-Geral dos Impostos de entre os incluídos nas listas distritais.
2 — Um dos peritos nomeados pela Direcção-Geral dos Impostos terá apenas voto de desempate, devendo conformar-se com qualquer dos laudos apresentados.
[…]
LGT
Artigo 57.º
Prazos
1 - O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de seis meses, devendo a administração tributária e os contribuintes abster-se da prática de actos inúteis ou dilatórios.
[…]
Artigo 60.º
Princípio da participação
1 – […]
2 – […]
3 – Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado.
Vem questionada a interpretação destas disposições segundo a qual a intervenção de um perito do contribuinte na comissão referida no artigo 4.º do Regulamento da Contribuição Especial é suficiente para se considerar preenchido o princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.
7. A contribuição especial foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, com o objectivo de tributar a valorização de que beneficiaram os prédios rústicos e terrenos para construção situados nas zonas envolventes à CRIL, CREL, CRIP, CREP e respectivos acessos, bem como à travessia ferroviária do Tejo e outros investimentos. O valor sujeito a contribuição resulta da aplicação da fórmula prevista no referido artigo 2.º, n.º 1 do Regulamento. Por outro lado, os valores que servem de base a essa fórmula resultam de avaliação a cargo de comissão constituída pelo contribuinte ou representante por si nomeado e por dois peritos da administração tributária (cfr. artigos 2.º, n.º 2 e 4.º do mesmo diploma).
8. Tendo sido realizada a referida avaliação, em que teve assento perito indicado pela Recorrente, foi este posteriormente notificado da liquidação da contribuição, sem que lhe tivesse sido facultado qualquer mecanismo (posterior) de participação no procedimento que conduziu a tal resultado. Do mesmo modo, não foi a Recorrente notificada do projecto de decisão final. Invoca, assim, aquela, a violação do artigo 267.º, n.º 5 da Constituição, na medida em que não terá sido assegurada a sua participação na tomada de decisão final que a ela diz respeito e que resultou na liquidação do encargo tributário.
O tribunal recorrido, no entanto, entendeu que a participação dos administrados não passará, em todas as circunstâncias, pela notificação aos mesmos do projecto de decisão final com o convite para se pronunciarem sobre o respectivo teor. Poderá assim o legislador prever – como, aliás, efectivamente prevê –, em determinados casos, outros meios de participação os quais darão cumprimento à injunção constitucional do artigo 267.º, n.º 5, transposta, no campo tributário, pelo artigo 60.º da LGT. Por outro lado, se uma participação posterior no procedimento for totalmente inócua, isto é, desprovida de capacidade de produzir alterações na decisão final, e já tendo tido o contribuinte oportunidade prévia de intervir no referido procedimento, deve aquela ser negada atento o princípio geral da proibição de actos inúteis.
9. Nos termos do artigo 267.º, n.º 5, da Constituição, “O processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.” Esta disposição constava do n.º 4 do mesmo preceito na versão do texto fundamental anterior à Revisão Constitucional de 1997.
A relevância atribuída pela Constituição à participação dos administrados na formação das decisões que lhes dizem respeito reflecte a mudança de concepção da Administração Pública que se operou na segunda metade do século XX. De uma Administração de autoridade e impositiva, o paradigma evoluiu para a Administração de cooperação, sublimando-se o papel interventivo e constitutivo do administrado, que deixa, assim, de ser um mero objecto da actividade administrativa.
Sérvulo Correia (“O direito à informação e os direitos de participação dos particulares no procedimento e, em especial, na formação da decisão administrativa”, in Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, 9/10, Janeiro – Junho, 1994, pp. 149 e seguintes) destaca a dupla missão da participação dialógica dos administrados: uma missão funcional, pela qual se efectiva a intervenção do administrado na prossecução do interesse público, e uma missão garantística, inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe um procedimento administrativo orientado para a efectiva participação dos cidadãos na formação das decisões que a eles dizem respeito. O papel do administrado não pode, deste modo, ser funcionalizado, impondo-se um modelo de Administração de concertação e aberta por oposição a uma Administração de imposição e fechada (cfr. Jorge Miranda, “O direito de informação dos administrados”, in O Direito, ano 120, III-IV, Julho-Dezembro, 1988, p. 457). Tal missão garantística visa, fundamentalmente, assegurar a “possibilidade de comunicar à Administração as informações e os argumentos que, do ponto de vista do particular, justificam que a decisão venha a conformar-se com os seus interesses.” (Sérvulo Correia, ob. cit., p. 150).
10. Esta participação dos administrados na formação das decisões que lhes dizem respeito tem sido objecto de diferentes qualificações por parte da doutrina. Enquanto que alguns autores lhe atribuem a natureza de direito fundamental (por exemplo, Sérvulo Correia, ob. cit., pp. 156-157; Vasco Pereira da Silva, Em busca do acto administrativo perdido, 1996, pp. 426 e seguintes) outros falam apenas de um princípio de participação enquanto injunção legiferante (por exemplo, Mário Aroso de Almeida, “Os direitos fundamentais dos administrados após a Revisão Constitucional de 1989”, in Direito e Justiça, volume VI, 1992, pp. 293 e 303; Pedro Machete, A audiência dos interessados no procedimento administrativo, Universidade Católica Editora, 1995, pp. 511 e seguintes).
A qualificação da figura não se afigura, no entanto, essencial à resolução da questão que agora se nos apresenta. Com efeito, o que importa é aferir se da Constituição decorre a necessidade de garantir, em qualquer procedimento administrativo, que todo o administrado deve ser notificado do projecto de decisão acompanhado do convite para se pronunciar ou, dito de outro modo, o dever de o legislador consagrar o direito de audiência prévia relativamente a qualquer decisão administrativa. Não se trata, é certo, de alternativas perfeitamente equivalentes. Com efeito, embora relacionados, o direito de audiência prévia não se confunde com o princípio ou direito de participação tal como decorre do artigo 267.º, n.º 5 da Constituição. Esta é, no entanto, a conclusão a que pretende chegar a Recorrente sob a invocação do parâmetro constitucional da participação dos administrados. De facto, a Recorrente sustenta a intenção do legislador constitucional em assegurar que o administrado seja ouvido pela Administração quando exista projecto de decisão, podendo, por essa via, exercer o contraditório em caso de discordância.
11. É de assinalar que ao legislador na conformação do “direito” de participação: “não pode ser deixado passar em claro que, conquanto a Constituição, no já referido n.º 5 do artigo 267.º, imponha que o processamento da actividade administrativa haverá de garantir a participação dos cidadãos na formação das decisões que lhe disserem respeito, a concretização desse ‘direito’ é relegada para a lei.”
Com efeito, a Constituição encarregou o legislador de (através de “lei especial”), assegurar a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.
No que se refere à actividade da Administração em geral, tal normação especial consta do Código de Procedimento Administrativo (CPA), que estabelece, no artigo 100.º que “concluída a instrução, e salvo o disposto no artigo 103.º, os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informados, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.” Em determinadas situações, no entanto, pode ser dispensada a audiência dos interessados, como prevê o artigo 103.º, n.º 2: são os casos em que estes já se pronunciaram no procedimento sobre as questões que importam à decisão e sobre as provas produzidas, e em que os elementos constantes do procedimento conduzem a uma decisão favorável aos interessados.
Constata-se que no procedimento administrativo não se estabelece a regra absoluta de audição do administrado prévia à decisão final (e acompanhada do projecto de decisão). Compreende-se que assim seja. Com efeito, da garantia de participação constante do artigo 267.º, n.º 5 da Constituição não resulta o conteúdo normativo que é sustentado pela Recorrente. A participação no processo decisório pode assumir diversas formas, cabendo ao legislador ordinário, no âmbito da margem de conformação que lhe cabe, e observado o dever constitucional de garantir a participação do administrado, regulá-las e concretizá-las. Note-se que esta concretização legislativa não pode ir ao ponto de esvaziar de sentido útil a imposição constitucional. Como salienta Freitas do Amaral, referindo-se ao papel determinante do legislador nesta área, “a própria Constituição, no artigo 267.º, n.º 4 [actual n.º 5], é clara ao dizer que caberá a uma lei especial assegurar – assegurar, e não apenas regulamentar – a participação dos cidadãos (...).” (“Direitos fundamentais dos administrados”, in Nos dez anos da Constituição, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986, p. 17). Mas garantir a participação dos administrados não significa convidá-los, em todo e qualquer procedimento, a pronunciarem-se sobre o projecto de decisão administrativa, através da audiência prévia. Significa sim que ao administrado é concedida a oportunidade de intervir no procedimento, assistindo a essa participação a capacidade de influenciar aquela que virá a ser a decisão ou deliberação final.
12. Sobre a audição do contribuinte, prévia ao acto de liquidação, já se pronunciou este Tribunal Constitucional precisamente a propósito da alteração legislativa que culminou na actual redacção do artigo 60.º, n.º 3 da LGT. Esta redacção, introduzida pela Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio, prevê a dispensa da audição do contribuinte antes da liquidação sempre que este tenha sido ouvido em qualquer das fases de procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1 do mesmo preceito, a não ser em casos de invocação de factos novos sobre os quais ainda não se tenha pronunciado. No caso então em apreço, a contribuinte não tinha tido oportunidade de se pronunciar depois de elaborado o relatório dos serviços da inspecção tributária, tendo, no entanto, exercido o direito de audição antes da elaboração do mesmo. Entendeu o Tribunal que, perante a ausência de factos novos ou diversos ou de novas questões de direito ou novas diligências, não se encontrava afectado o “conteúdo mínimo da garantia de participação concretizado na efectivação do direito de audição.” (Cfr. Acórdão n.º 353/2005, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Julho de 2005)
13. Ora, previamente ao acto de liquidação cuja validade a Recorrente impugna, teve lugar a comissão prevista no artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento da Contribuição Especial, a qual procedeu à fixação da matéria colectável. Resulta dos autos que nessa comissão teve assento, e participou, um perito indicado pela Recorrente. Uma vez determinada a matéria colectável, constituída pela diferença de valores referida no artigo 4.°, o cálculo da contribuição especial é efectuado através da aplicação da taxa adequada prevista no artigo 10.º, não havendo qualquer possibilidade legal de ser utilizado como valor da matéria colectável qualquer outro valor. A liquidação resulta, assim, de meras operações de cálculo em função do valor da matéria colectável apurado pela comissão.
Significa isto que a intervenção do contribuinte em momento anterior à liquidação e posterior ao funcionamento da comissão seria, como assinala o acórdão recorrido, completamente inócua, pois dela nunca poderia resultar qualquer alteração da matéria colectável. Por outro lado, a ponderação dos elementos atinentes à avaliação que são especificados pela Recorrente é efectuada no âmbito da avaliação (e não em momento posterior), em que são ponderáveis, além dos factores especificados, “quaisquer outros elementos susceptíveis de influírem no valor dos prédios” [artigo 6.º, n.º 2, alínea g)].
14. O lugar atribuído pela Constituição à participação dos administrados na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito não permite inferir qualquer dever fundamental de “ouvir” o contribuinte, notificando-o do projecto de decisão, quando dessa audição nenhum efeito útil poderá advir ao nível de eventual alteração ou modificação das mesmas e quando, no procedimento, o mesmo teve oportunidade de intervir, em nome próprio ou através de representante por si designado.
Deste modo, prevendo-se uma forma de intervenção do contribuinte na formação da decisão através da participação (em nome próprio ou através de representante) na comissão de avaliação e não havendo qualquer utilidade em admitir uma nova intervenção antes da liquidação, pelo facto de a mesma não ter a capacidade de produzir qualquer alteração ou modificação na mesma, não fere a garantia de participação prevista no artigo 267.º, n.º 5 da Constituição, a interpretação segundo a qual a participação em tal comissão assegura o cumprimento da injunção constitucional, sendo de evitar qualquer outra forma de participação posterior atendendo ao seu carácter inútil e à proibição geral, constante do artigo 57.º, n.º 1 da LGT, da prática de actos inúteis.
III – Decisão
15. Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 12 de Outubro de 2010.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes (subscrendo a declaração feita pelo Senhor Conselheiro Pamplona de Oliveira) – Carlos Pamplona de Oliveira – Com a declaração que junto. – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto o presente aresto, sem prejuízo de entender que deveria ter ficado bem expresso o entendimento de que o que se afirma a propósito da imposição constitucional da participação dos administrados na formação das decisões administrativas tem cabimento no domínio da actividade discricionária típica da administração e não, como no caso presente, no domínio da prática estritamente vinculada de actos tributários.- Carlos Pamplona de Oliveira.