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Processo nº 782/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., B., C. e D., todos com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Julho de 1996, que, na parte que interessa, negou provimento a alguns recursos e considerou 'prejudicado o conhecimento' de outros recursos interlocutórios, por eles interpostos, em processo criminal instaurado no Tribunal de Círculo de Loulé, pelos crimes de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes e falsificação de documentos.
São estes os termos da interposição desses recursos de constitucionalidade:
- o recorrente A. invoca o 'art 70 - 1 - B) da Lei do Tribunal Constitucional e tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade do art 433 que conjugado com o art 410, ambos do CPP atentam contra os arts 6 - 1 da C.E.D.Homem, O ART 14 - 5 DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CÍVICOS E O ART
32 DA LEI FUNDAMENTAL e foram suscitadas a Fls 5196 - 5212'.
- o recorrente B. diz que a 'fls. 5 da sua notificação de recurso
(queria dizer motivação de recurso), o requerente invocou expressamente a inconstitucionalidade material do disposto no nº 6 do artº 135º do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro' (e acrescenta que essa 'arguição foi desatendida no acórdão do Supremo', apelando ao 'disposto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro').
- os recorrentes C. e D., representados pelo mesmo mandatário judicial, utilizam a mesma linguagem e, invocando 'o disposto no artº 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidos pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro', dizem o seguinte:
'Em conformidade com o disposto no artº. 75º-A do mesmo diploma, pretende-se ver aplicada a inconstitucionalidade do artº 433º do CPP de 1987, na medida em que dispõe que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, não permitindo assim que seja conhecido o reexame da matéria de facto, artº 327º do CPP de 1987, na medida em que dispõe que os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório e a valoração da prova deve ser examinada à luz daquele princípio, tendo o tribunal 'a quo' perfilhado a limitação ao contraditório por interpretação dos artºs 21º, 135º, nº 6 e 142º do Dec-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro e dos artºs 3º e 4º da Convenção Europeia do Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal; o artº 287º do Código Penal, por se fazer uma interpretação fora dos seus limites isto é, evitando excessos e sem invocar a proibição do excesso'.
2. No acórdão recorrido, na parte que pode relevar e se relaciona com a matéria de constitucionalidade, discreteou-se abundantemente do modo que se segue:
'IV. A questão litigiosa da constitucionalidade (ou da inconstitucionalidade) do artigo 433º do Código de Processo Penal não é nova. Já foi várias vezes apreciada, tanto por este Supremo Tribunal de Justiça como pelo Tribunal Constitucional. E sempre no sentido da conformidade constitucional do referido preceito. Cfr., entre outros: acórdão de 9.05.90, in B.M.J. 397, pág. 332; de
13.05.92, ibidem, 417, pág. 308; de 9.07.92, ib 419, pág. 589; de 7.10.92, ib.
420, pág. 204; de 26.05.94, in Colectânea de Jurisprudência, II - 2, pág. 233; e de 11.10.95, Proc. nº 45 540. Neste último, observou-se que, na esteira da implícita constitucionalidade do mesmo artigo 433º, e a propósito da eliminação do duplo grau de recurso, aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição e garantias de defesa do arguido se podiam ver o Prof. Figueiredo Dias, em conferências publicadas no B.M.J. 369, 18 e in 'Para uma nova justiça penal', Livraria Almedina, págs. 237 e segs.; Cunha Rodrigues e Gonçalves da Costa, in 'Recursos', na obra colectiva 'O novo Código do Processo Penal', Almedina, 1988, págs. 379 e segs e 401 e segs.; e também no sentido da constitucionalidade, daquele primeiro Autor, in 'Revisão Constitucional, Processo Penal e os Tribunais', pág. 51. Quanto ao Tribunal Constitucional podem ver-se, entre outros, os acórdãos nº 234/93, de 17.03.93, in Diário da República, 2ª S, de 2.06.93; nº 322/93, de 5.05.93, in Diário da República, 2ª S, de 19.10.93; e nº 141/94, de 26.01.94, in Diário da República, 2ª S, de
7.01.96.
Consequentemente, sendo desnecessárias mais desenvolvidas considerações, temos por infundada a alegação de inconstitucionalidade do artigo 433º do Código de Processo Penal, na esteira da jurisprudência que fica citada e que não vemos razões para abandonar.
Em abundanti, não deixaremos de dizer que nunca o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou violado o artigo 6º da Convenção Europeia pelo facto de as legislações internas dos diferentes Estados Partes se contentarem com um único grau de jurisdição, desde que sejam observados os requisitos da imparcialidade, da independência e da publicidade e do processo equitativo, exigidos naquele artigo.
Iguais princípios terão de ser respeitados, obviamente nos casos em que as legislações internas prevêem mais do que um grau de jurisdição. Mas ainda aqui não haverá violação mesmo no caso de ausência de debates públicos em segundo ou terceiro grau, desde que os tenha havido na primeira instância. E tratando-se de Tribunais de revista, como as Cassações existentes em vários países, sem competência para estabelecerem os factos, mas unicamente para interpretar as regras jurídicas litigiosas, nem sequer é obrigatória a comparência do interessado perante elas.
Certo que o artigo 2º do protocolo nº 7 à Convenção Europeia garante a qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação, como acontece com o artigo 14º, nº 5 do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos.
Mas logo aquele artigo dispõe que o 'exercício do direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei.
Assim, não impõe qualquer obrigação aos Estados membros de assegurarem em absoluto o duplo grau de jurisdição, podendo o legislador interno limiar o recurso à matéria de direito ou a esta e a certos pontos da matéria de facto, como se julgou no Acórdão nº 117/94, do Tribunal Constitucional.
Podemos, por isso, passar ao exame da questão seguinte, ou seja, a alegada violação dos artigos 32º da C.R.P. e 327º do Código de Processo Penal, por falta dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades espanholas em que foram ouvidas testemunhas.
(...)
O tema principal da arguição de violação reside, obviamente, na não comparência pessoal dos arguidos ao acto em que consistiu a execução da Carta Rogatória, que constitui também uma diligência probatória intercalada no curso da audiência de julgamento.
É indiscutível que o artigo 325º do Código de Processo Penal consagra o princípio da assistência do arguido à audiência, livre na sua pessoa e que a sua presença é obrigatória, salvo nos casos do artigo 334º, nºs 1 e 2, que não se verificam no presente processo.
Para reforçar a execução deste princípio o nº 2 do artigo 332º prescreve que 'o arguido que deva responder perante determinado tribunal, segundo as normas gerais da comparência, e estiver preso em comarca diferente pela prática de outro crime, é requisitado à entidade que o tiver à sua ordem.
Todavia, o citado nº 1 do artigo 325º contempla uma excepção: 'salvo se forem necessárias cautelas para prevenir o perigo de fuga ou actos de violência'. Já se tem entendido que a disciplina deste artigo é mero afloramento da disposição geral do artigo 140º (cfr. Maia Gonçalves, no 'Código do Processo Penal Anotado', 7º Ed., 1996 pág. 492, que sublinha, por isso, a sua dispensabilidade). Pode haver uma razão para isto: vincar a particular importância do princípio.
Mas é de toda a evidência que tal regime foi pensado para a realização de audiências em território português, onde a jurisdição dos tribunais nacionais não sofre qualquer contestação.
No que toca a actos a realizar em território estrangeiro, a soberania só pode sofrer limitações se as correspondentes ordens jurídicas nisso consentiram, pela via tratadística ou convencional ou por razões de cooperação internacional fundadas em interesses da reciprocidade. Quer isto dizer que nenhum tribunal português pode exigir de uma jurisdição estrangeira que aceite a comparência de um arguido detido numa diligência processual que lhe solicite.
Isto por um lado. Por outro, a possibilidade de assistência ao acto de execução da carta rogatória, das autoridades e das pessoas em causa, depende do consentimento da parte requerida (artigo 4º da Convenção Europeia de Auxílio Mútuo em Matéria Penal), logo a parte requerente não pode impor essa assistência. Segundo o relatório explicativo desta Convenção, a expressão
'assistir' significa 'estar presente' (ver a publicação com esse título, do Conselho da Europa, 1969).
Acresce que o artigo 11º da mesma Convenção, providenciando pela transferência de pessoas detidas, estabelece um outro princípio muito importante, o da possibilidade de recusa dessa transferência em diversos casos: a) se o detido não consentir; b) se a presença é necessária em processo penal em curso no território da parte requerida; c) se a transferência é susceptível de protelar a detenção; d) se outras razões imperiosas se opuserem à transferência para o território da parte requerente.
Claro que esta disposição prevê para a hipótese de haver uma parte requerente que solicita a comparência de uma pessoa detida para o seu território.
Mas não se vê que não possa aplicar-se na hipótese inversa: transferência de um detido para participar em acto processual no território da parte requerida. As razões de recusa podem verificar-se igualmente nesta hipótese, mas agora pela parte requerente, ou, melhor dizendo, se esta se vir confrontada com semelhantes motivos de recusa.
Um deles, porventura o mais importante, é a falta de consentimento do próprio detido.
O outro pode ser o perigo de fuga. Como se diz no referido 'Relatório explicativo', a derrogação prevista na alínea d) do artigo 11º é uma cláusula geral, logo pode abarcar a hipótese de perigo de fuga. E no caso dos autos, esse perigo não era de modo algum hipotético, mas real.
Acontece, como bem sublinha nas alegações a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que os arguidos recorrentes, não obstante entenderam que as suas presenças eram obrigatórias na diligência rogada, não requereram previamente a sua presença, daí que não tenha havido qualquer decisão do tribunal sobre esta questão concreta.
Se passarmos agora à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relacionada com esta questão, observamos o seguinte:
Quanto à comparência pessoal, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem não garante expressamente ao acusado o direito de estar presente no processo, embora tal direito decorra, pelo menos em determinadas circunstâncias, do princípio do direito a um processo equitativo. Mas tal direito de comparecer
'em pessoa' não é absoluto. Importa considerar o processo no seu conjunto (ou na sua globalidade) e a questão da comparência pessoal deve ser encarada a par dos outros direitos da defesa.
O princípio estabelecido no artigo 6º, 3, alíneas c) e d) da Convenção Europeia, suscitando uma série de problemas particulares, no que concerne ao respeito, pelas legislações internas, quanto à administração das provas, deve ser avaliado tendo em conta o conjunto do processo e as circunstâncias concretas de cada caso, em ordem a verificar se a igualdade de armas e o direito ao processo equitativo são respeitados.
A referida alínea d) do nº 3 do artigo 6º, consagrando o direito do acusado a interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das de defesa nas mesmas condições das primeiras, implica certamente o direito não só de assistir mas de ouvir e seguir os debates.
Mas a recolha de provas releva, antes de mais, das regras do direito interno, competindo às jurisdições nacionais apreciar os elementos probatórios recolhidos.
Assim, a tarefa dos órgãos de Convenção consiste em examinar se o 'processo no seu conjunto', incluindo o modo de apresentação das provas, reveste um carácter equitativo, sancionando toda a recusa abusiva ou arbitrária.
Deste modo, as referidas garantias não assumem uma natureza absoluta e o direito de citar e interrogar testemunhas de defesa e de acusação não implica que o acusado possa exigir a convocação de qualquer pessoa.
E se os elementos de prova devem ser produzidos em audiência pública, tendo em vista um debate contraditório, tal não impede a utilização de provas recolhidas na instrução do processo, desde que as regras do contraditório tenham sido observadas, no momento da produção da prova ou mais tarde.
A produção da prova, nomeadamente a testemunhal, deve, certamente, revestir um carácter contraditório, concedendo-se à defesa a possibilidade de contestar todo o elemento de prova produzido perante o tribunal e invocado por este para fundamentar a sua decisão, de modo a combater eficazmente as acusações que lhe são feitas.
Mas podem existir razões várias para que uma testemunha seja ouvida fora da presença da pessoa contra quem presta o seu depoimento, desde que o defensor esteja presente e a possa interrogar.
Aliás, a falta de comparência das pessoas pode derivar de razões admissíveis e o seu testemunho ser recolhido por carta precatória ou rogatória, desde que seja lido e aceite e desde que o acusado não conteste a sua veracidade ou se ele for corroborado por outros dados na posse do tribunal.
O próprio testemunho indirecto e, nomeadamente, o dos próprios elementos da polícia (agentes infiltrados ou outros) ou o dos seus informadores que queiram guardar anonimato, parece não violar a referida alínea d), desde que as garantias de defesa sejam asseguradas.
No caso dos autos, o princípio do contraditório foi regularmente observado e o processo, considerado na sua globalidade ou no seu conjunto, não pode ser razoavelmente criticado por ter menosprezado os cânones de um processo equitativo, da igualdade de armas, da imparcialidade e da independência do tribunal.
Releve-se, ainda nesta sede, que um dos mais significativos aspectos da valorização do princípio do contraditório consistiu no facto de os arguidos terem formulado as perguntas a fazer às testemunhas ouvidas no tribunal espanhol, a par da presença dos seus mandatários na diligência rogada.
E se é certo que o Código do Processo Penal, no seu artigo 318º, não se refere expressamente à carta rogatória para inquirição de testemunhas no curso da audiência de julgamento, não é menos certo que esta forma processual se impõe pela natureza das coisas e é a que, pela sua solenidade e pelas formalidades observadas no seu cumprimento, a que mais garantias oferece ao arguido.
E quanto à garantia da defesa relacionada com a participação do defensor, também não é despiciendo sublinhar, ainda que de forma abreviada, o que sobre o assunto tem sido ponderado na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
O direito à assistência de um defensor, consagrado no artigo 6, 3, c) da Convenção Europeia é alternativo da modalidade de auto-defesa ('se défendre lui-même').
Só que a auto-defesa ('l'avocat de soi-même') comporta o risco de se tornar ilusória, tendo em conta a inexperiência judiciária ou a tecnicidade das questões em causa, o que explica o dever do juiz de exigir a intervenção de um advogado constituído ou oficiosamente nomeado.
Em qualquer dos casos, a intervenção de advogado implica a obrigação, para o Estado, de tomar todas as medidas que assegurem a livre comunicação do advogado com o seu cliente.
Donde se deve concluir que a presença dos mandatários dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades espanholas constitui garantia sólida e suficiente de defesa eficaz, na justa medida em que ficaram assegurados todos os meios de controlo da correcção da inquirição e do contraditório.
E, como técnicos do direito, podiam fazer melhor do que os próprios representados. Claro que o modo de execução da carta rogatória é da exclusiva competência da autoridade judiciária do Estado rogado (artigo 3 da citada Convenção) sendo por isso a única competente para decidir se as testemunhas devem ou não depor sob juramento.
Também por este lado não se vê que tenham sido violados o artigo 32º da Constituição e as normas de direito ordinário na matéria, em particular as dos artigos 111º, 3, e 356º, 1, do Código do Processo Penal.
A questão seguinte é a da alegada violação do artigo 141º, 1 da Constituição da República, pelo artigo 135º do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro.
Convém recordar que este diploma obedeceu ao propósito de preencher uma lacuna no relacionamento com Estados estrangeiros, em tema de cooperação judiciária internacional, baseada no princípio da reciprocidade (artigo 4º). Este princípio vigora na falta de tratados, convenções e acordos internacionais vinculativos do Estado português ou na sua insuficiência (artigo 3º). E, como se diz no preâmbulo do diploma, baseou-se na experiência de outros países europeus que introduziram nas respectivas ordens jurídicas disposições destinadas a regular as diferentes formas de cooperação, todas subordinadas a um conjunto de princípios e disposições gerais comuns.
Aliás, os tratados, convenções e acordos internacionais nunca prevêm disposições específicas relativamente ao processamento interno das formas de cooperação, deixando, nesse aspecto, uma larga liberdade aos Estados partes.
E como também se diz no referido preâmbulo, o carácter subsidiário relativamente aos tratados e convenções implica o princípio da reciprocidade, concebida como acto político unilateral do Governo, enquanto instrumento de cooperação internacional.
Sendo condição de aplicação de qualquer tratado, a reciprocidade regulada no diploma vale especialmente para os casos de ausência do mesmo; e, uma vez que reflecte o princípio da igualdade entre os Estados, justificado está que se atribua a sua ponderação ao Governo, como responsável pela condução da política geral do País e pela negociação e ajuste das convenções internacionais.
A Convenção Europeia de Auxílio Mútuo em Matéria Penal, não contem, como é normal nesta sede, qualquer norma sobre quem é a entidade competente para solicitar ou dar cumprimento às formas de cooperação nela previstas. O compromisso das Partes Contratantes cinge-se a assegurar o auxílio judiciário mais lato possível em qualquer processo que vise infracções cuja repressão é, no momento em que ele é solicitado, da competência das autoridades judiciárias da Parte requerente (artigo 1º).
A própria Convenção Europeia de Extradição, que tem servido de paradigma para outras formas de cooperação internacional em matéria penal é muito clara quando diz que, salvo em disposição em contrário, a lei da Parte requerida é a única aplicável no processo de extradição.
O que é inversamente aplicável à parte requerente como é óbvio.
Daí que Decreto-Lei nº 43/91, muito impressivamente, tenha estatuído que o pedido de cooperação formulado por uma autoridade portuguesa é remetido ao Ministro da Justiça pelo Procurador-Geral da República ou por quem legalmente o substitua; e que se o Ministro da Justiça considerar admissível o pedido, o remeta ao Ministro da Justiça do Estado estrangeiro, pela via diplomática ou directamente se aquela primeira via não for exigida (artigo 20º). Esta normação
é aplicável a todas as formas de cooperação previstas no diploma.
Este artigo reflecte o princípio de que a cooperação internacional e seus requisitos, relevando do direito internacional público, são da competência do Governo. No entanto, porque os actos de cooperação são também de natureza jurisdicional, o nº 3 dispõe que a decisão do governo não vincula a autoridade judiciária, norma, com carácter geral, inspirada no direito extradicional
(artigo 24º, nº 4, do Decreto-Lei nº 437/75).
Mas não vale para a cooperação solicitada pelas autoridades portuguesas, como resulta do nº 5 do artigo, relativamente às quais a lei reserva o direito do Governo de ponderar as condições globais de política externa que escapam à competência das autoridades judiciárias.
Em tema de extradição, a forma clássica e mais antiga da cooperação judiciária internacional em matéria penal, o processo compreende duas fases: a administrativa e a judicial, sendo a primeira destinada à apreciação do pedido pelo Governo para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento ou se deva ser liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência (artigo 49º do Dec-Lei 43/91, cuja fonte foi o Decreto-Lei nº
437/75, artigo 24º). Nunca se discutiu, que se saiba, a desconformidade de tal preceito com a Constituição. E num acórdão do Tribunal Constitucional (nº
45/84, de 23 de Maio de 1984, publicado no B.M.J. nº 347, pág. 114) foi assim caracterizado o processo de extradição passiva:
'O procedimento de extradição passiva decorre em dois campos: no campo das relações internacionais e no campo da actividade interna do Estado requerido. Ao organizar o processo extraditivo no segmento que decorre no interior do Estado português, o Decreto--Lei nº 437/75, de 16 de Agosto, adoptou um sistema misto: entre uma série de actos que se desenvolvem em sede administrativa insere-se uma fase que se desenvolve em sede judiciária'.
Ora, a fase administrativa destina-se à apreciação do pedido de acordo com critérios de oportunidade e conveniência. Na sua apreciação, o Governo terá presentes os princípios de protecção dos interesses de soberania, da segurança, da ordem pública e outros interesses da República Portuguesa, constitucionalmente definidos (artigo 2º, nº 1, do DL 43/91).
Por seu turno, no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.87, publicado no B.M.J. nº 368, pág. 459, observou-se que a deliberação do Governo, no sentido de autorizar o prosseguimento do processo de extradição funda-se em razões de ordem política, de oportunidade e conveniência, só sendo sindicável no âmbito do contencioso administrativo, não vinculando por qualquer forma o tribunal.
Todas estas considerações são pertinentes para as restantes formas de cooperação internacional, incluindo a que de que se trata no presente processo.
E não se diga que o sistema ofende o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania estatuído no artigo 114º da Constituição.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a definição do princípio constitucional da separação e interdependência através de critérios orgânicos e funcionais - cada função básica é atribuída a um órgão ou titular principal - é importante para a cooperação da teoria do núcleo essencial, nos termos da qual a nenhum órgão de soberania podem ser reconhecidas funções atribuídas a outro
órgão. Isto significa que nenhum dos órgãos de soberania pode intrometer-se no núcleo essencial das funções pertencentes a outro órgão. A manifestação prática mais relevante deste princípio é a indisponibilidade essencial de funções pelo próprio legislador (cfr. 'Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., pág. 497).
Ora, dado que no sistema da cooperação judiciária internacional há, como vimos, um processo que releva, em parte, da função administrativa e, noutra parte, da função judicial, não pode dizer-se que o Governo, na condução da primeira fase, se intrometa na segunda em termos de esvaziar as funções materiais específica e principalmente atribuídas aos tribunais, que não dispõem de competência para decidir da cooperação de acordo com critérios de oportunidade e conveniência, relacionados com princípios de protecção de interesses de soberania, ordem pública e outros da República Portuguesa, constitucionalmente definidos.
E não podemos ser particularmente críticos neste domínio, quando tivermos em conta as legislações estrangeiras que serviram de modelo à nossa lei interna de cooperação judiciária internacional em matéria penal, como a lei suiça sobre entreajuda internacional nesta matéria [EIMP], de 10 de Março de 1981, em que a decisão sobre os pedidos de cooperação releva em primeiro lugar do Departamento Federal de Justiça e Polícia, justamente pela razão de que a aplicação da lei releva da soberania, da ordem pública e de outros interesses essenciais da Suíça
(artigos 1º, 2º e 17º); e como a lei italiana, em particular no que se refere
às rogatórias para o estrangeiro, requeridas pelos juízes e magistrados do Ministério Público, em que intervem o Ministro da Justiça, a quem são transmitidas, o qual pode não lhes dar seguimento se entender que possam comprometer a segurança e outros interesses essenciais do Estado (V. Código de Processo Penal, artigo 727º).
E, nestes Países, tanto quanto sabemos, o princípio da separação dos poderes entre órgãos de soberania também está consagrado.
Para terminar, observemos que o despacho autorizador do Ministro da Justiça, longe de constituir, no caso concreto, uma intromissão entorpecente da função judiciária, antes representou um modo de colaboração entre a Administração e a Justiça, sendo certo que a deslocação do tribunal a Espanha envolvia necessariamente despesas e dependia, finalmente, da vontade de cooperação das autoridades judiciárias rogadas, que desse modo se mostrou assegurada nas relações entre Governos. Se o resultado da diligência não foi favorável ao recorrente, é outra questão, que nada tem a ver com a legalidade do acto, da forma da sua transmissão e da intervenção do Ministro.
Segue-se que não foi violado o artigo 114º da Constituição nem o artigo 135º, nºs 3 e 6, do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, nem por
último, qualquer disposição da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal'.
3. Nas suas alegações, concluiu assim o recorrente A.:
'1 - A ausência/omissão na apreciação da prova contida nas cassetes com a gravação da prova recolhida em I Instância e a ausência do recorrente na sessão de julgamento realizada no S.T.J. constituem manifesta nulidade - Art. 668 - 1 - D) Cod. Proc. Civil - ex vi Art 4º Cod. Proc. Penal o que conduz à nulidade do acórdão sob recurso.
2 - O Art. 433 do C.P.P. ao visar exclusivamente o reexame da matéria de direito sem reapreciação da matéria de facto e reapreciação da declaração de culpabilidade viola grosseiramente as garantias de defesa sendo inútil/quase inexistente um recurso para um Tribunal Superior.
3 - Só um autêntico e total reexame da matéria de facto por parte do S.T.J. permitirá garantir plenamente o respeito pelo disposto no Art. 14 - 5 do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, o Protocolo nº 7 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Art. 32-1 da Lei Fundamental e, acima de tudo, respeitar a dignidade humana de quem recorre, base fundamental num Estado de Direito Democrático.
4 - O Artº 433 do C.P.P. é inconstitucional por violar as disposições supra'.
4. O recorrente B. apresentou alegações, concluindo que 'deve o presente recurso considerar como inconstitucional, o nº 6 do artigo 135º do dec-lei 43/91 de 22 de Janeiro, por violar do princípio da separação de poderes consagrada no artigo 114º da C.R.P. - devem os actos praticados no processo, conformados pela douta sentença recorrida, serem considerados como materialmente inconstitucionais'.
5. Nas suas alegações, os recorrentes C. e D., depois de enunciarem as questões ('A. O duplo grau de jurisdição' e 'B. A violação do princípio do contraditório)', concluiram deste modo:
'1º
Só através da reapreciação da prova o recorrente poderá ver reavaliados factos integradores dos crimes que lhe são imputados.
2º
O artº 433º do CPP apenas permite - exceptuadas as restrições do artº
410º, nos nºs 2 e 3 - o reexame da matéria de direito.
3º
No caso sub judice, a apreciação da matéria de facto não poderá ter lugar, uma vez que não foi feito registo de toda a prova produzida no julgamento.
4º
O Supremo não pode controlar se a motivação indicada para a formação de convicção do Tribunal Colectivo foi ou não merecedora de censura, como não pôde confrontar os depoimentos das testemunhas que serviram de fundamento à convicção do referido Tribunal.
Porém,
5º
O direito ao recurso em matéria de facto decorre da regra prescrita no artº 32º, nº 1 da Constituição, com a consequência de os factos poderem ser submetidos a nova apreciação por um Tribunal superior.
Assim,
6º
Com a redacção restrita do artº 433º do CPP, verifica-se inconstitucionalidade material desta norma por infracção da regra inscrita no artº 32º, nº 1 da Constituição.
Acresce que,
7º
Só com a declaração de inconstitucionalidade do artº 433º do CPP será possível o reexame da matéria de facto.
8º
O acórdão recorrido invoca uniformidade jurisprudencial para sustentar a constitucionalidade do artº 433º
Ora,
9º
A uniformidade jurisprudencial não significa um valor científico absoluto.
Aliás,
10º
O problema do duplo grau de jurisdição não mereceu jurisprudência uniforme, a não ser a propósito do artº 433º.
11º
O TC, sobre a mesma problemática, a propósito do artº 665º do CPP/29, firmou jurisprudência contrária, reconhecendo, com força obrigatória geral, o direito ao recurso, com reexame da matéria de facto.
12º
Essa orientação é, na sua argumentação básica, válida para a interpretação do artº 433º.
Além disso,
13º
O Tribunal ao valorar de forma privilegiada o depoimento da testemunha E., utilizando-o como meio de prova para a formação da sua convicção, utilizou um meio ilícito de prova.
Porquanto,
14º
Foi esse depoimento considerado a principal fonte inspiradora da acusação e da condenação.
15º
A produção e valoração com tal ênfase dessa prova deveria ter sido feita à luz do princípio do contraditório, um dos princípios fundamentais de audiência,
16º
Trata-se de um princípio que tem por base uma imposição constitucional
ínsita no artº 32º, nº 5, da Constituição e que tem a sua explicitação no artº
327º do CPP.
17º
A obtenção desse meio de prova - sem a presença do arguido na audiência -, desvirtua a participação activa da defesa, essência do fundamento do princípio do contraditório, limitando-o profundamente.
18º
O Tribunal Colectivo, com orientação ora confirmada pelo STJ, ao perfilhar a limitação ao contraditório nos termos descritos por interpretação dos artºs 21º, 135º, nº 6, e 142º, todos do Dec-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro e dos artºs 3º e 4º da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, com a desaplicação daquele princípio constitucional referido, pratica uma inconstitucionalidade material.
19º
Em audiência de discussão e julgamento o exercício do contraditório só poderá ser garantido com a presença pessoal do arguido em todas as diligências probatórias.
20º
A prova obtida por carta rogatória que não contemple a presença efectiva do arguido não respeita esse princípio.
21º
Sendo pois, a interpretação de tais normas, materialmente inconstitucional, por desaplicação do princípio do contraditório inscrito no artº 32º, nº 5 da Constituição.
22º
Deve assim ser declarada a inconstitucionalidade das normas indicadas, na interpretação do acórdão recorrido, com as legais consequências'.
6. Contra-alegou o Ministério Público, que começou por delimitar os presentes recursos 'a três questões de constitucionalidade já que, na respectiva alegação, os recorrentes C. e D. abandonaram a questão da pretensa inconstitucionalidade da norma constante do artigo 287º do Código Penal, referente à punição do crime de 'associação criminosa':
- a dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal.
- a do 135º do Decreto-Lei nº 43/91.
- a do artigo 327º do Código de Processo Penal, interpretado em articulação com os artigos 21º, 135º, nº 6 e 142º do Decreto-Lei nº 43/91, em termos de ser possível a dispensa da presença pessoal do arguido em diligência probatória realizada no estrangeiro mediante carta rogatória'.
E depois concluiu desta forma:
'1º
Não padecem de inconstitucionalidade as normas constantes dos artigos 410º e
433º do Código de Processo Penal, já que o sistema de recursos das decisões condenatórias do colectivo e os poderes cognitivos atribuídos ao Supremo Tribunal de Justiça em nada colidem com o princípio consignado no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
2º
Não representa qualquer intromissão ilegítima no exercício da função jurisdicional a circunstância de a realização de certo acto de produção de prova, mediante expedição de carta rogatória, ter sido precedido de autorização ministerial, concedida nos termos do artigo 135º do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro.
3º
Na verdade, tal diligência judicial processou-se com total autonomia e respeito pela independência do juiz, limitando-se o Governo - que deferiu prontamente a solicitação apresentada - a cooperar na sua realização prática, obtendo a indispensável autorização do Estado rogado e fornecendo os meios materiais para que a deslocação do tribunal se pudesse consumar.
4º
Não constitui preterição do princípio do contraditório a circunstância de o arguido não haver assistido pessoalmente a certo acto isolado de produção de prova, realizado em território estrangeiro, mediante carta rogatória, no qual esteve representado pelo seu defensor, e tendo participado pessoalmente nos restantes actos integradores da globalidade da audiência de discussão e julgamento.
Termos em que deverão ser julgados improcedentes todos os recursos interpostos'.
7. Com dispensa de vistos, nos termos do disposto no artigo 707º, nº
2, do Código de Processo Civil vigente, vêm agora os autos à conferência.
À partida importa delimitar o âmbito dos presentes recursos - tarefa a que também se prestou o Ministério Público nas suas contra-alegações - e, em consequência, apurar qual a norma ou quais as normas jurídicas que preenchem o objecto de tais recursos. Pois que, como se vai ver, não há exacta coincidência entre a vontade de recorrer manifestada por alguns recorrentes nos respectivos requerimentos de interposição dos recursos e o teor e as conclusões das subsequentes alegações que apresentaram.
Assim, é manifesto que os recorrentes C. e D., apesar de indicarem no acto de interposição do recurso de constitucionalidade a norma do artigo 287º do Código Penal de 1982, referente ao tipo legal do crime de associação criminosa, omitiram nas alegações qualquer referência à questão da inconstitucionalidade dessa norma, que, assim, desapareceu do objecto dos recursos de constitucionalidade por eles interpostos.
Basta atentar no enunciado das duas questões (a A. e a B.) que eles trataram nessas alegações para ver que abandonaram tal questão.
Depois, os mesmos recorrentes C. e D., não obstante a indicação nos requerimentos de interposição dos recursos de constitucionalidade da norma do artigo 327º do Código de Processo Penal de 1987, que consagra, em geral, o princípio do contraditório para as 'questões incidentais sobrevindas no decurso da audiência' (nº 1) e para os 'meios de prova apresentados no decurso da audiência' (nº 2), trataram a questão da inconstitucionalidade a ela ligada em termos que não cabem no tipo de recurso que utilizam (o da alínea b), do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82).
Na verdade, os recorrentes reportam-se desde início à 'não aplicação do artigo 327º' e, quando se debruçam nas respectivas alegações de recurso sobre a questão da 'violação do princípio do contraditório' (questão B.), enunciam-na nestes termos:
'Pretende o presente recurso ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dos artºs 21º, 135º, nº 6 e 142º do Dec-Lei nº 43/ /91, de 22 de Janeiro e dos artºs 3º e 4º da Convenção Europeia do Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, por desaplicação do princípio constitucional do contraditório inscrito no artº 32º, nº 5 da CRP'.
Ao acrescentarem de imediato que essa 'interpretação conduziu à não aplicação do artº 327º do CPP', o que parece estar subjacente no discurso dos recorrentes é um juízo de desrespeito dessa norma decorrente do acórdão recorrido, o que não pode reconduzir-se ao tipo de recurso da alínea b), que pressupõe a aplicação de uma norma arguida de inconstitucionalidade. Aqui no rigor das coisas, o que os recorrentes arguem é que a 'obediência ao princípio do contraditório' devia estender-se à 'presença dos arguidos na diligência em questão', residindo aí o 'tema principal da arguição de violação', mas sem qualquer relacionação com normas relevantes e pertinentes para o caso, nomeadamente as do Código de Processo Penal.
E o certo é que nas conclusões das alegações os recorrentes são bem mais explícitos, como se lê na conclusão 18º: 'O Tribunal Colectivo, com orientação ora confirmada pelo STJ, ao perfilhar a limitação ao contraditório nos termos descritos por interpretação dos artºs 21º, 135º, nº 6, e 142º, todos do Dec-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro e dos artºs 3º e 4º da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, com a desaplicação daquele princípio constitucional referido, pratica uma inconstitucionalidade material'.
Daí que também esteja fora do objecto dos recursos de constitucionalidade interpostos pelos recorrentes C. e D. a norma do artigo
327º do Código de Processo Penal, que não tem de ser convocada para o caso, nem a título de articulação com outras normas, como parece fazer crer o Ministério Público. O apelo a essa norma do artigo 327º serve só de parâmetro para aferir a pretensa violação do princípio constitucional do contraditório por parte de outras normas, aquilo que os recorrentes C. e D. chamam de 'desaplicação daquele princípio constitucional referido'.
8. Acresce que pode suscitar-se ainda um obstáculo de índole processual relativamente à pretensa questão de inconstitucionalidade levantada quanto àquelas normas dos artigos 21º, 135º, nº 6 e 142º do Decreto-Lei nº
43/91, e dos artigos 3º e 4º da Convenção Europeia do Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, interpretadas como foram como 'limitação ao contraditório', ou seja, como mais adequadamente regista o Ministério Público, interpretadas 'em termos de ser possível a dispensa da presença pessoal do arguido em diligência probatória realizada no estrangeiro mediante carta rogatória' (caso dos recursos interpostos pelos recorrentes C. e D.).
Referem-se aquelas normas à concretização de pedidos de auxílio, no quadro do auxílio judiciário geral em matéria penal, quando revistam a forma de carta rogatória para obtenção de meios de provas, disciplinando o artigo 21º os requisitos do pedido de cooperação internacional (distribuídos pelas alíneas a) a g) do nº 1, indo desde a indicação da 'autoridade de que emana' e da
'autoridade a quem se dirige' até à indicação de quaisquer 'documentos relativos ao facto'), contendo o artigo 142º a disciplina geral do processo de cooperação, com carácter remissivo para o Código de Processo Penal, para os artigos 231º e 232º, que disciplinam a recepção e cumprimento de cartas rogatórias, e prevendo o nº 6 do artigo 135º a possibilidade de autoridades judiciárias e de policia criminal portuguesas participarem 'em diligências que devam realizar-se no território de um Estado estrangeiro, mediante prévia autorização do Ministro da Justiça'.
Na posição dos recorrentes C. e D., pretende-se que seja 'apreciada a inconstitucionalidade da interpretação' daquelas normas do Decreto-Lei nº 43/91 e também dos artigos 3º e 4º da Convenção Europeia do Auxilio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, 'por desaplicação do princípio constitucional do contraditório inscrito no artº 32º, nº 5 da CRP', porquanto - é, em síntese, o discurso essencial dos recorrentes - se verificou a 'não comparência pessoal dos arguidos ao acto em que consistiu a execução da Carta Rogatória, que constitui também uma diligência probatória intercalada no curso da audiência de julgamento', para a recolha de depoimentos de duas testemunhas (diligência determinada por despacho judicial, com invocação das normas ora questionadas), sendo que a 'prova obtida por carta rogatória que não contemple a presença efectiva do arguido não respeita esse princípio' e tais depoimentos teriam sido até 'a principal parte inspiradora da acusação e da condenação' ('Sendo pois, a interpretação de tais normas, materialmente inconstitucional, por desaplicação do princípio do contraditório inscrito no artº 32º, nº 5 da Constituição' - é a afirmação fundamental dos recorrentes).
Contudo, no rigor das coisas, os preceitos questionados nada têm a ver com o pretendido juízo de inconstitucionalidade, porquanto:
- a norma do artigo 21º é meramente enunciativa de requisitos do pedido de cooperação internacional, em absoluto estranha à violação do princípio do contraditório;
- a norma do artigo 135º, nº 6, é apenas definidora de uma competência administrativa do Ministério da Justiça, atribuindo a este o poder administrativo de autorizar a deslocação ao estrangeiro de 'autoridades judiciárias e de polícia criminal portuguesa', também em absoluto estranha à mesma violação;
- a norma do artigo 142º rege para os pedidos de auxílio formulados por 'autoridades estrangeiras competentes para o procedimento Penal segundo o direito do respectivo Estado' (artigo 140º), inscrevendo-se na disciplina do processo de cooperação a que dão causa pedidos de auxílio provenientes de um Estado estrangeiro - e daí a remissão para os artigos 231º e 232º do Código de Processo Penal -, e, por isso, é totalmente estranha à ideia de violação do princípio do contraditório, nada tendo a ver com a carta rogatória posta em causa pelos recorrentes.
O que os recorrentes sustentaram e sustentam é que a 'obediência ao princípio do contraditório' enunciada no acto judicial devia estender-se à
'presença dos arguidos na diligência em questão', residindo aí o 'tema principal da arguição de violação', mas sem qualquer relacionação com normas relevantes e pertinentes para o caso, nomeadamente as do Código de Processo Penal.
Isso mesmo foi entendido no acórdão recorrido, ao analisar detalhadamente 'a alegada violação dos artigos 32º da C.R.P. e 327º do Código de Processo Penal, por falta dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades espanholas em que foram ouvidas testemunhas', aliás, sem passar pela ponderação das normas questionadas do Decreto-Lei nº 43/91 e da citada Convenção Europeia, e centrando toda a actuação na observância das regras do contraditório dentro do processo, 'no momento da produção da prova ou mais tarde'.
'Importa considerar o processo no seu conjunto (ou na sua globalidade) e a questão da comparência pessoal deve ser encarada a par dos outros direitos da defesa' - é como se enuncia no essencial no acórdão recorrido a questão a resolver.
Para depois se concluir em dois planos:
-'No caso dos autos, o princípio do contraditório foi regularmente observado e o processo, considerado na sua globalidade ou no seu conjunto, não pode ser razoavelmente criticado por ter menosprezado os cânones de um processo equitativo, da igualdade de armas, da imparcialidade e da independência do tribunal'.
-'Donde se deve concluir que a presença dos mandatários dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades espanholas constitui garantia sólida e suficiente de defesa eficaz, na justa medida em que ficaram assegurados todos os meios de controlo da correcção da inquirição e do contraditório'.
E daí afirmar-se no acórdão recorrido que 'não se vê que tenham sido violados o artigo 32º da Constituição e as normas de direito ordinário na matéria, em particular as dos artigos 111º, 3, e 356º, 1, do Código do Processo Penal'.
Não há, portanto, no acórdão recorrido, nenhum ponto de análise da interpretação de tais normas em conformidade com a Constituição, nem é enunciada nenhuma questão de inconstitucionalidade para resolver.
Em síntese: quando os recorrentes dizem que ao determinar-se a realização no estrangeiro de diligência probatória, por via de carta rogatória, sem a 'presença dos arguidos na diligência em questão', isso viola o princípio do contraditório e desrespeita o artigo 327º do Código do Processo Penal, não
é, todavia, a inconstitucionalidade desta norma que invocam, nem a dos artigos
21º, 135º, nº 6 e 142º, do Decreto-Lei 43/91, nem a dos artigos 3º e 4º da Convenção Europeia de Auxilio Judiciário Mútuo em Matéria Penal.
De tudo isto decorre que, quanto a tais normas, não se pode tomar conhecimento dos recursos dos recorrentes C. e D. (cfr. as conclusões 13º a 22º das suas alegações).
9. De tudo isto resulta ainda que o objecto dos presentes recursos de constitucionalidade é preenchido pelas normas seguintes:
- as dos artigos 410º e 433º, conjugadas entre si, do Código de Processo Penal (caso dos recursos interpostos pelos recorrentes A., C. e D.);
- a do 135º, nº 6 do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro (diploma que versa a cooperação judiciária internacional em matéria penal), invocada pelo recorrente B..
É, pois, por esta ordem que se passam a apreciar as questões de inconstitucionalidade reportadas àquelas normas.
10. A primeira questão - a que se relaciona com as normas conjugadas dos artigos 433º e 410º do Código de Processo Penal de 1987 - tem a ver com os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos penais e, como reconhecem os recorrentes nela interessados, não é nova no tratamento jurisprudencial que lhe tem sido dada neste Tribunal Constitucional.
Disso se dá noticia no acórdão recorrido, não interessando repetir a identificação dos acórdãos do Tribunal Constitucional que aí é feita (podendo ainda acrescentar-se, entre outros, os Acórdãos nºs 356/93, 443/93, 141/94,
170/94, 171/94, 172/94, 287/94, 399/94, 504/94, 635/94 e 55/95), e por esses acórdãos perpassa uma corrente jurisprudencial dominante - de que diverge o relator deste processo - no sentido da conformidade com a Constituição das normas questionadas do Código de Processo Penal.
Os recorrentes, que não deixam de conhecer 'a tradição jurisprudencial deste Tribunal Constitucional', sentem a dificuldade e, por isso, partindo da consideração de que a 'uniformidade jurisprudencial não significa um valor científico absoluto', apelam a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, 'sobre a mesma problemática, a propósito do artº 665º do CPP/29'.
Só que não é essa norma que é objecto do presente recurso e, de outra banda, a isso este Tribunal teve já oportunidade de responder, por exemplo, no citado acórdão nº 141/94, publicado no Diário da República, II Série, nº 6, de 7 de Janeiro de 1995, repetindo o que já se dissera no acórdão nº 322//93, publicado no mesmo Diário, nº 254, de 29 de Outubro de 1993.
Aí pode ler-se, quanto a 'saber se a solução que se achava consagrada no Código de Processo Penal de 1929, quanto ao recurso para a Relação dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, era (ou não) constitucionalmente legítima': 'E, em consequência, pelo Acórdão nº 401/91, ..., declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, o artigo 665º daquele Código, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de
1934. Isso, porém, não significa que este Tribunal tenha entendido que, constitucionalmente admissível, fosse apenas uma solução legal que, nos recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, previsse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso (na época, perante a Relação, hoje, perante o Supremo Tribunal de Justiça). Entre essa solução e o sistema que, então, vigorava - o qual, no entender maioritário do Tribunal, 'na prática e na grande maioria dos casos, reduz[ia] a zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto' - 'outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar' - ....
8. Pois - entende, agora, o Tribunal - um sistema de recurso que, justamente, não dá o flanco às críticas de que é alvo a apelação penal (de que, atrás, se deixou constância) e que, simultaneamente, preserva o núcleo essencial do direito ao recurso, em matéria de facto, contra sentenças penais condenatórias
- direito que decorre do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição - é, como vai ver-se, o que se acha consagrado no actual Código de Processo Penal, maxime, nos artigos 410º e 433º. Um tal sistema - um sistema de revista alargada - protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto); e, desse modo, defende-o do risco de uma sentença injusta. De facto, o recurso que, aqui, está em causa é o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos finais dos tribunais colectivos. Ora - (...) -, o tribunal colectivo (tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento) constitui, ele próprio, uma primeira garantia de acerto no julgamento da matéria de facto'.
Assim, não havendo motivo para divergir de tal entendimento, há apenas que remeter inteiramente para os fundamentos que o suportam e constam dos numerosos acórdãos proferidos sobre a matéria e concluir que as normas sub juditio, vistas isoladamente ou em conjugação entre si, não enfermam de desconformidade com normas ou princípios constitucionais.
Com o que improcedem as conclusões 2 a 4 das alegações do recorrente A. (e registe-se em todo o caso que a primeira conclusão, constituindo matéria de arguição de nulidade, com invocação do artigo 668º, nº 1, a), de Código de Processo Civil, não tem cabimento no âmbito do presente recurso de constitucionalidade) e as conclusões 1ª a 12ª das alegações dos recorrentes C. e D..
11. A segunda e última questão de inconstitucionalidade liga-se ao artigo 135º, nº 6, do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, norma que prevê a possibilidade de autoridades judiciárias e de policia criminal portuguesas participarem 'em diligências que devam realizar-se no território de um Estado estrangeiro, mediante prévia autorização do Ministro da Justiça', o que normalmente reveste a forma de carta rogatória, e que permite a reciprocidade relativamente à regra do nº 3 do mesmo artigo.
Na óptica do recorrente interessado B., tal norma é violadora 'do princípio da separação de poderes consagrada no artigo 114º da CRP', que permite 'a interferência de um órgão de soberania Governo, nas funções de um outro órgão de soberania Tribunais' ('Assim no acórdão de Loulé, ao enunciar expressamente que houve, uma deslocação de um órgão judicial, para a prática de um acto judicial, por tal ter sido autorizado pelo Senhor Ministro da Justiça sofre de uma inconstitucionalidade material, por ser materialmente inconstitucional, o teor do artigo do dec-lei que, lhe dá origem' - acrescenta ainda o recorrente).
Com essa mesma óptica foi confrontado o Supremo Tribunal de Justiça e proficientemente respondeu o acórdão recorrido, percorrendo o tema do auxílio judiciário geral em matéria penal, tal como vem regulado no Decreto-Lei nº
43/91, em termos que não interessa aqui repetir, nele concluindo-se pela conformidade do artigo 135º, nº 6, com a norma do artigo 114º, nº 1 da Constituição.
Estando apenas questionado pelo recorrente B. a conformidade daquela norma legal com o princípio constitucional da separação e interdependência dos
órgãos de soberania, é bom de ver que a 'prévia autorização do Ministro da Justiça', exigida no dito nº 6 do artigo 135º, não tem o significado de interferir com a realização em si da diligência que interessa às autoridades judiciárias e de polícia criminal portuguesas, revestindo normalmente a forma de carta rogatória e com um dos objectivos enunciados de modo exemplificativo no nº 2 do mesmo artigo.
Como 'acto de cooperação internacional, de âmbito intraprocessual, isto é, realizado no quadro de um processo penal instaurado no Estado requerente' (cfr. Manuel António Lopes Rocha e Teresa Alves Martins, Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Aequitas, 1992, pág. 198), a tal
'prévia autorização do Ministro da Justiça', que assenta no princípio da reciprocidade [artigos 4º, nº 1 e 135º, nº 3, b)], é exterior a esse acto de cooperação e alheio ao seu conteúdo e aos seus objectivos (é como que um visto que se exige diplomaticamente nas deslocações de cidadãos entre países).
A ideia de 'uma lógica de colaboração e articulação funcional' e o sentido constitucional de afastamento de 'um modelo de rígida sobreposição de
órgãos a funções' ( cfr. o Acórdão deste Tribunal Constitucional nº 1/97, inédito) servem perfeitamente para afastar in casu a apontada violação do artigo 114º, nº 1, da Constituição.
A competência administrativa do Ministro da Justiça, neste ponto de auxílio judiciário geral em material penal, não colide com a função jurisdicional que se inscreve no âmbito de um processo penal, porque não se pode detectar aí uma substituição funcional do juiz, no preciso espaço da sua actividade normal, nunca podendo dizer-se, como diz o recorrente, que 'foi o Senhor Ministro (...( o 'juiz' de uma prática de um acto judicial'.
Assim, e encurtando razões, tem de concluir-se que a norma do artigo
135º, nº 6, do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, não enferma de inconstitucionalidade, por violação do artigo 114º, nº 1, da Constituição, improcedendo a conclusão das alegações do recorrente B..
12. Termos em que, DECIDINDO:
a) Nega-se provimento aos recursos que têm por objecto a questão de inconstitucionalidade das normas conjugadas dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal vigente.
b) Nega-se provimento ao recurso que tem por objecto a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 135º, nº 6, do Decreto-Lei nº 43/91, de
22 de Janeiro, no tocante à violação do artigo 114º, nº 1, da Constituição.
c) Não se toma conhecimento dos recursos, na parte restante.
Lisboa, 5 de Março de 1997
Guilherme da Fonseca (vencido quanto à alínea a),
conforme declaração de voto junta ao Acórdão nº 141/94) Fernando Alves Correia Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida (vencido quanto à conclusão a) José de Sousa e Brito (vencido quanto à alínea a),
pelas razões da minha declaração de voto
no Acórdão nº 322/93) José Manuel Cardoso da Costa