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Processo n.º 234/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A., Lda., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com o seguinte fundamento:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto nas alíneas b) e g), do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Já nos termos do disposto na alínea g) do mesmo, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Quando interpostos ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, os recursos de constitucionalidade têm de respeitar um conjunto de requisitos específicos, sem os quais deles se não poderá tomar conhecimento.
Em primeiro lugar, é necessário que o objecto do recurso seja uma norma (em si mesma ou numa sua interpretação), tal como que tal norma (ou dimensão interpretativa questionada) tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Em segundo lugar, torna-se necessário que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de forma que a intervenção do Tribunal Constitucional se possa fazer, verdadeiramente, em via de recurso.
E, em terceiro lugar, é mister que tenha havido o prévio esgotamento dos recursos ordinários.
Já quando interposto o recurso ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o único pressuposto processual exigido é o de ter a norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional sido efectivamente aplicada na decisão recorrida, i. é impõe-se que haja identidade de objecto, devendo a norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional coincidir com a norma que tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Compulsados os autos, verifica-se que a norma contida na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2007, de 12 de Fevereiro), na redacção introduzida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março, que foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos n.ºs 490/09 e 608/09, qualquer deles disponível em www.tribunalconstitucional.pt, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, não foi efectivamente aplicada na decisão recorrida.
Aliás, a aplicabilidade da mesma ao caso dos autos é expressamente afastada pelo Tribunal a quo ao afirmar (a fls. 177) que:
Como é sabido, o Cód. do Trabalho foi revisto pela Lei n.° 7/2009, de 12 de Fevereiro, que entrou em vigor no dia 17, seguinte. Consta do seu Art.° 12.° a respectiva norma revogatória, que tem por objecto, com várias excepções, as Leis n.°s 99/2003, de 27 de Agosto e 35/2004, de 29 de Julho, isto é, o RGCO não foi revogado.
Sendo embora certo que a matéria das contra-ordenações laborais foi objecto de alterações, como se vê do Art.° 12°, n.° 1, al. a) e n.° 3, al. e) da Lei n.° 7/2009, de 12 de Fevereiro, de vários artigos do Cód. do Trabalho de 2009 e da Lei n.° 107/2009, de 14 de Setembro, a verdade é que se trata especificamente de matéria relativa às contra-ordenações laborais e não do RGCO.
Aliás, não faria sentido que a lei de aprovação do Cód. do Trabalho revogasse um regime geral que é aplicável para além das fronteiras do direito do trabalho como são, por exemplo, as contraordenações ao Cód. da Estrada.
De resto, também não foi revogado, seja pela Lei n.° 7/2009, de 12 de Fevereiro, seja pela Lei n.° 107/2009, de 14 de Setembro, o Decreto-Lei n.° 273/2003, de 29 de Outubro.
Assim e sem necessidade de mais considerações, improcede a primeira conclusão do recurso.
Assim, não se verifica, in casu, o pressuposto processual de efectiva aplicação na decisão recorrida da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, pressuposto esse sem a verificação do qual, como já se disse, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso, tenha este sido interposto ao abrigo do disposto na alínea b) ou antes ao abrigo do disposto na alínea g), qualquer delas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2. Notificada dessa decisão, A., Lda. veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
1. Nos autos de recurso supra mencionados, foi proferida decisão sumária nos termos do artigo 78-A, n.° 1 da Lei do Tribunal Constitucional.
2. Ora, salvo o devido respeito, tal decisão olvidou diversos aspectos e argumentos do recurso apresentado pela Recorrente.
3. A aqui Recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento nas alíneas b) e g) do artigo 70 da Lei 28/82 de 15 de Novembro,
4. Tendo por objecto a apreciação da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009, considerada, de forma incorrecta, na decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional no acórdão n.° 490/2009, de 28 de Setembro.
5. Reitera-se que a supra referida norma, foi já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.° 490/09 e 608/09, por violação do principio da segurança jurídica, inerente ao principio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2 da Constituição.
6. Todavia, entendeu esse Tribunal Constitucional, na decisão sumária de que se reclama, que tal norma não foi aplicada na decisão recorrida.
7. Ora, tal entendimento, meramente linear, não estará, em nosso entender, correcto, senão vejamos,
8. A aqui Recorrente foi condenada em coima por violação de normas sobre higiene, segurança e saúde no trabalho,
9. mais concretamente, por ter violado o disposto no art.° 67 do DL n.° 41.821 de Agosto de 1965, conjugado com o n.° 1 do art.° 8 do DL n.° 441/91 de 15 de Novembro, o que constitui contra ordenação muito grave nos termos do DL 273/2003, conjugado com o art.° 620, n.° 4 alínea b) e art 622 do Código de Trabalho.
10. Ora a norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código do Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009, e cuja inconstitucionalidade se suscitou e suscita, prevê a revogação do preceituado nos artigos 272 a 280 e 671, sobre segurança, higiene e saúde nos trabalho, na parte não referida na actual redacção do código, ou seja,
11. Revoga grande parte do preceituado relativamente aos princípios gerais sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, aos serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho, à inspecção, aos acidentes de trabalho,
12. E, com extrema relevância para o caso sub judice, revoga o artigo 671 do antigo Código de Trabalho que estipulava a responsabilidade contra ordenacional nos casos de segurança, higiene e saúde no trabalho..
13. Tudo isto a significar que se deve entender, sem dúvida, que a entrada em vigor do Código de trabalho, mormente da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009 fez falecer, por completo, a contra ordenação que foi aplicada à aqui Recorrente.
14. Todavia, e ao invés disso, foi considerado vigente em relação à aqui Recorrente aquele art.° 12 e, consequentemente, aplicada contra ordenação à aqui Recorrente, daí que, após o esgotamento dos recursos ordinários, interpusesse recurso para o Tribunal Constitucional, por haver, assim, manifesta inconstitucionalidade na consideração do
art.° 12.
15. Na verdade, com a interpretação feita pelo Tribunal da Relação foi posta, manifestamente em causa o princípio da segurança jurídica, constitucionalmente consagrado.
16. O princípio da segurança jurídica assume-se como princípio classificador do Estado de Direito Democrático, e implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas, a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica.
17. Por outro lado, acresce que uma das decorrências do princípio da legalidade é que não há crime/contra ordenação sem uma lei anterior ao momento da prática do facto que declare esse comportamento como crime ou contra ordenação, e estabeleça para ele a correspondente sanção.
18. Em Direito Penal e contra ordenacional vigora, portanto, a lei do momento da prática do facto, donde o princípio geral nesta matéria é de que as leis penais mais favoráveis aplicam-se sempre retroactivamente.
19. Deste modo, tendo sido revogado o regime contra ordenacional sobre as regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, através da entrada em vigor da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009,
20. Há manifesta inconstitucionalidade daquela quando se interpreta e aplica em sentido contrário, como aconteceu no caso sub judice, aplicando coima à Recorrente.
21. Tal preceito nunca poderia ter sido aplicado à aqui Recorrente pura e simplesmente porque o legislador entendeu, com a entrada em vigor daquele preceito legal, que tais factos não mereciam sanção.
22. Acresce que o ordenamento jurídico português é visto como um todo, constituído por um conjunto de normas jurídicas plasmadas em decretos lei, regulamentos, lei, portarias.
23. Deste modo, falecendo com a revogação da norma da alínea a) do n.° 3 do artigo 12 do Código de Trabalho, na redacção conferida pela declaração de rectificação n.° 21/2009, de 18 de Março de 2009, o regime das contra ordenações sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho,
24. Necessariamente cai por terra todo o demais preceituado sobre esta questão,
25. Pelo que não faz sentido e é inconstitucional o fundamento de facto e de direito com que a aqui Recorrente é condenada.
26. É inconstitucional, assim se devendo declarar, a norma do art.° 12 quando interpretada como erradamente se fez na decisão, no sentido de que não revogou o regime contra ordenacional em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho.
27. Deste modo, deve conceder-se provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
3. O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamante vem reclamar da decisão sumária por discordar do fundamento nela oferecido para o não conhecimento do objecto do recurso – o de não ter a norma cuja conformidade com a Constituição se pretende ver apreciada sido efectivamente aplicada na decisão recorrida.
Porém, na sua reclamação, a reclamante não logra demonstrar a efectiva aplicação da norma questionada pela decisão recorrida.
O que a reclamante critica é a aplicação da norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, entendendo que nela deveria antes ter sido aplicada a que pela reclamante vem questionada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Ora, o Tribunal Constitucional é incompetente para sindicar a correcção da aplicação do direito infra-constitucional pelo tribunal a quo, não lhe cabendo tomar posição sobre qual das normas – a efectivamente aplicada pela decisão recorrida ou a que a reclamante entende que nela deveria ter sido aplicada – seria aplicável à situação dos autos.
Assim, confirma-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do objecto do recurso.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Setembro de 2010. – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.