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Processo n.º 294/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Benavente, em que é recorrente o Ministério Público e recorridas A. e outra, foi interposto recurso de constitucionalidade, da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos 164.º, alíneas d) e u), da Constituição, das normas do Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho, que criou a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE).
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1 - Não devendo a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) ser considerada, para efeitos constitucionais, “força de segurança”, não está incluído na reserva de competência absoluta da Assembleia da República, legislar nessa matéria (artigo 164º, alínea u) da Constituição).
2 - A reserva de competência absoluta da Assembleia apenas abrange o regime geral das forças de segurança, não estando aí incluída a matéria de organização e competência de cada força de segurança.
3 - Deste modo, mesmo que se entenda que a ASAE é uma força de segurança, o Governo, ao editar o Decreto-Lei nº 274/2007, de 30 de Julho (ao abrigo do artigo 198º, nº 1 alínea a) da Constituição) - que apenas se limitou a definir a organizar e a fixar as competências daquela Autoridade -, não invadiu a área de competência legislativa que a Constituição atribui à Assembleia.
4 - Pelo menos desde 1993 (artigo 31º, nº 2, do Decreto-Lei nº 14/93, de 18 de Janeiro e até 2004 (artigo 20º do Decreto-Lei nº 46/2004, de 3 de Março) que os Inspectores da Inspecção-Geral das Actividades Económicas (IGAE) eram expressamente considerados autoridade e órgão de polícia criminal.
5 - O Decreto-Lei nº 237/2005, de 30 de Dezembro (que revogou o Decreto-lei nº 46/2004), criou a ASAE e consubstanciou a concentração num único organismo de diversos serviços de competência e fiscalização, sendo um deles a IGAE, que foi extinta, tendo sido transferidas, sem qualquer alteração, para a ASAE, todas as competências anteriormente cometidas à IGAE.
6 - Assim sendo, seja por indicação expressa da lei ou por transferência de competências, primeiro os inspectores da IGAE e posteriormente os da ASAE, sempre detiveram, ininterruptamente, a qualidade de autoridade e órgão de polícia criminal.
7 - O artigo 15º do Decreto-Lei nº 274/2007, de 30 de Julho, enquanto confere poder de órgão e autoridade de polícia criminal à ASAE, não tem, pois, qualquer carácter inovatório, não sendo, por isso, organicamente inconstitucional, uma vez que não viola o artigo 164º, alínea u), da Constituição, ou qualquer outro preceito constitucional, designadamente as alíneas b) e c) do artigo 165º.
8 - Como consequência, dado que o artigo 3º, nº 2, alínea a)a), daquele diploma, apenas se limita a estender a competência fiscalizadora da ASAE à matéria relacionada com o jogo ilícito - matéria que, aliás, ainda se encontra inserida na vida económica – ,aquela norma não é organicamente inconstitucional, como também não o é a norma da alínea ab) do nº 2 daquele artigo 3º.
9 - Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
3. Os recorridos não contra-alegaram.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Delimitação do objecto do recurso
4. A sentença recorrida concluiu que o “Decreto-Lei n.º 274/2007, de 30 de Julho”, que cria a ASAE, é “organicamente inconstitucional”, por violação do artigo 164.º, alíneas d) e u), da Constituição, embora, nos respectivos considerandos, se refira apenas às normas do artigo 3.º, n.º 2, alíneas z), aa) e ab), e do artigo 15.º, do referido diploma legal.
Nas respectivas alegações, veio o representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional delimitar o objecto do recurso às normas dos artigos 3.º, n.º 2, alíneas aa) e ab), do citado Decreto-Lei n.º 274/2007 enquanto nelas se definem as atribuições da ASAE; e à norma do artigo 15.º do mesmo diploma, que estabelece que a ASAE é um órgão de polícia criminal.
Considerando que subjacente aos presentes autos está um processo de inquérito pela prática de crime(s) de “Jogo Ilegal de Fortuna e Azar”, cumpre delimitar o objecto do presente recurso às normas efectivamente desaplicadas pela decisão recorrida, ou seja, à apreciação da constitucionalidade orgânica das normas dos artigos 3.º, n.º 2, alíneas aa) e ab), e do artigo 15.º, todos do Decreto-Lei n.º 274/2007.
B) Apreciação do mérito do recurso
5. As alíneas aa) e ab) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007, definem as seguintes atribuições a prosseguir pela ASAE:
Alínea aa): «Desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, I. P.»;
Alínea ab): «Colaborar com as autoridades judiciarias nos termos do disposto no Código de Processo Penal, procedendo à investigação dos crimes cuja competência lhe esteja especificamente atribuída por lei.»
E o artigo 15.º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Órgão de polícia criminal” estabelece o seguinte:
«1 — A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
2 — São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código do Processo Penal:
a) O inspector -geral;
b) Os subinspectores -gerais;
c) Os directores -regionais, designados por inspectores-directores;
d) O director de serviço de planeamento e controlo operacional e os inspectores -chefes;
e) Os chefes de equipas multidisciplinares.»
A decisão recorrida considerou que o Decreto-Lei n.º 274/2007 é organicamente inconstitucional, na medida em que cria «um órgão de polícia criminal com competências próprias para inclusivamente deter cidadãos e lavrar autos de notícia,». Assim sendo, concluiu a sentença recorrida, quanto ao caso dos autos, que «os inspectores da ASAE que lavraram o auto de notícia e de apreensão, e que procederam a constituição de arguido, não o poderiam ter feito, por não terem poderes como órgão de polícia criminal». E, em consequência, declarou nulo o “Auto de Notícia e Apreensão” constante de fls. 2 dos autos e os demais actos dele resultantes.
A sentença recorrida justifica o juízo de inconstitucionalidade orgânica pela violação da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República sobre as matérias constantes das alíneas d) e u) do artigo 164.º da Constituição.
6. Refira-se, desde já, que a alínea d) do artigo 164.º da Constituição, cuja convocação a sentença recorrida não fundamenta minimamente, é uma norma constitucional alheia à questão em apreço, uma vez que a matéria nela abrangida respeita à organização da “defesa nacional” e à organização, funcionamento e disciplina das “Forças Armadas”.
Por outro lado, a sentença recorrida assenta no entendimento de que a ASAE é uma “força de segurança” e que as normas impugnadas integram necessariamente o âmbito da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea u) do artigo 164.º da Constituição. Para o efeito, a sentença apoia-se num conceito amplo de “forças de segurança” que afirma extrair-se do Acórdão n.º 304/2008 do Tribunal Constitucional.
A questão da inclusão da ASAE no conceito constitucional de “forças de segurança” foi objecto do Acórdão n.º 84/2010, secundado pelo Acórdão n.º 232/2010, respectivamente da 1.ª e da 3.ª Secções deste Tribunal Constitucional (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), tendo-se concluído no sentido de o conceito constitucional de “forças de segurança” não incluir a ASAE.
No citado Acórdão n.º 84/2010 lê-se o seguinte a este respeito:
«3.1. Esta visão ampla do conceito constitucional de “forças de segurança” não suporta, no entanto, que nele seja incluída a ASAE, diferentemente do sustentado pela decisão recorrida. Diferentemente da Polícia Judiciária, a ASAE não tem por missão secundária garantir a segurança interna, prevenindo crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos.
As atribuições constantes das alíneas z), aa) e ab) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 274/2007 – atribuições secundárias por referência à missão que está legalmente cometida à ASAE no n.º 1 do mesmo artigo e de que as outras alíneas do n.º 2 são expressão – são absolutamente estranhas à prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos, constitucionalmente consagrado no artigo 27.º Até mesmo a atribuição de desenvolver acções de natureza preventiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, já que tal não se traduz numa qualquer acção de protecção contra agressões ou ameaças de outrem, face ao disposto nos artigos 95.º a 101.º do Decreto-Lei n.º 10/95, de 19 de Janeiro (sobre a “dimensão positiva” do direito à segurança aqui pressuposta, cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 27.º, ponto II.).
Mais genericamente, é de concluir que a ASAE, ao prosseguir aquelas atribuições, não participa na função de garantir a segurança interna, que o artigo 272.º, n.º 1, da CRP comete à polícia (à polícia de segurança, por contraposição à polícia administrativa e à polícia judiciária). “Não podendo afirmar-se que conceito de segurança interna seja um «conceito constitucionalmente vazio», tem de reconhecer-se que a sua caracterização não se alcança por forma directa e definitória no texto constitucional” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. Sobre as dificuldades do conceito, cf. CATARINA SARMENTO E CASTRO, A questão das Polícias Municipais, Coimbra Editora, 2003, p. 294 e ss.). Mas já é alcançável de forma indirecta, ainda que não definitória, a partir do conceito constitucional de “forças de segurança”, uma vez que a função de garantir a segurança interna cabe, no âmbito da polícia, às forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 479/94. Na doutrina, cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 272.º, ponto IV. e JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 272.º, pontos VIII e XVIII).
3.2. A introdução da alínea u) no artigo 164.º da CRP, ocorrida por via da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, revela-se decisiva para delimitar o conceito de “forças de segurança” que encontramos em várias normas da Constituição e de que aquela mesma alínea é exemplo. Se “quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo, inequivocamente nela se (…) [contém] a definição dos serviços organizações ou forças que devem compor as forças de segurança”, é de concluir, então, que aquele conceito abrange apenas os serviços, organizações ou forças a que lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança atribua esta natureza (relativamente àquela alínea, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. E no mesmo sentido, cf. o Acórdão n.º 304/2008, infra ponto 4.). Em bom rigor, a delimitação do conceito constitucional de “forças de segurança”, à margem do elenco constante de lei parlamentar sobre o regime das forças de segurança, justifica-se apenas quando seja de apreciar do ponto de vista jurídico-constitucional a atribuição de tal natureza a certos serviços, organizações ou forças.
No momento da emissão do Decreto-Lei n.º 274/2007 a lei parlamentar em matéria de regime das forças de segurança não incluía a ASAE no elenco das forças e serviços de segurança (cf. artigo 14.º da Lei de Segurança Interna, Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, cujo elenco está agora no artigo 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto, nele não se incluindo a ASAE). Sendo certo que o princípio da reserva de lei contido no artigo 272.º, n.º 4, da CRP obriga a uma enumeração taxativa das forças de segurança (assim, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 557/89), há que concluir que o Governo não invadiu a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República ao emitir aquele Decreto-Lei.
3.3. Diga-se, por último, que é de todo irrelevante para a inclusão da ASAE no conceito constitucional de “forças de segurança” o que se dispõe nos artigos 15.º (Órgão de polícia criminal) e 16.º (Uso e porte de arma) do Decreto-Lei n.º 274/2007.
De acordo com o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal «órgãos de polícia criminal» são todas as entidade ou agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código. O que significa que se parte “da ideia de que o que define a actividade de um órgão, enquanto órgão de polícia criminal, é, não a sua qualificação orgânica ou institucional, mas sim a qualidade dos actos que pratica” (DAMIÃO DA CUNHA, O Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal no Novo Código de Processo Penal, Porto, Universidade Católica, 1993, p. 14). Assim se justificando, por exemplo, que alguns funcionários de justiça desempenhem, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal (cf. artigo 6.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça e alínea i) do Mapa I anexo ao Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto).
O uso e porte de arma, independentemente da respectiva licença, não é propriamente algo que seja exclusivo das forças de segurança. Por exemplo, também os magistrados judiciais e do Ministério Público e os oficiais de justiça têm este direito especial (artigos 17.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 107.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público e 63.º, alínea b), do Estatuto dos Funcionários Judiciais).»
Reiteramos aqui esta fundamentação, inteiramente aplicável ao caso em apreço, por dela não haver razão para divergir.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar organicamente inconstitucionais as normas do artigo 3.º, n.º 2, alíneas aa) e ab), do citado Decreto-Lei n.º 274/2007, enquanto nelas se definem as atribuições da ASAE e a norma do artigo 15.º do mesmo diploma, na parte em que prevê que a ASAE tem “poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal”, e quais dos seus órgãos têm poderes de autoridade, nos termos e para os efeitos do Código de Processo Penal;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da sentença recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 13 de Outubro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.