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Proc. nº 419/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 20 de Outubro de 1987 deu entrada na Polícia Judiciária de Lisboa participação criminal contra A., casada, residente na Rua ----------- nº ------, em Lisboa, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, apresentada pelo portador desse cheque (sacado sobre o banco B., no valor de 43.310$00), C., com sede na Avenida -----------,
-----------.
Não foi nunca possível ouvir a participada, por se ter ausentado para parte incerta. Em 23 de Abril de 1992 foram os autos enviados ao Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, tendo sido entendido por este que o crime em causa havia passado a ser punido pelo disposto no art. 11º, nº 1, al. a), do Decreto-Lei nº 452/91, de 28 de Dezembro, dada a revogação do Decreto-Lei nº 14/84, razão por que se aplicaria o disposto no Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, e nos arts. 63º e seguintes do Código de Processo Penal de 1929, havendo, assim, lugar a distribuição dos autos para efeitos de organização de instrução preparatória.
Por despacho de fls. 40 a 43 dos autos, o Senhor Juiz do Tribunal de Instrução Criminal decidiu no sentido de não haver lugar a instrução preparatória, nos termos da legislação de 1975 aplicável, por considerar que o Decreto-Lei nº 454/91 estava afectado de inconstitucionalidade orgânica e não podia ser aplicado no presente caso, devendo ter-se por repristinado o anterior diploma regulador da tramitação processual, o Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro. Escreveu-se nesta decisão:
'Decorre do exame do preâmbulo do Decreto-Lei nº 454/91 de 28 de Dezembro, que este diploma regulamentador do uso do cheque e, por consequência, «instituição» legal definidora do ilícito de emissão de cheque s/provisão e seu regime, dimana do Governo no uso de autorização legislativa que foi concedida pela Assembleia da República através da Lei nº 30/91, de 20 de Julho, autorização essa válida pelo período de 90 dias.
Assim sendo, há que atentar na disciplina ínsita no art. 168º da Const. da Rep. Portuguesa, normativo este que versa a matéria sobre autorizações legislativas, o qual, no seu nº 4, claramente consagra a caducidade daquelas, entre outras razões, «com o termo da legislatura» para o qual foram concedidas.
Concatenando tais directivas com o modo e tempo como aconteceram, o termo da legislatura que gozava da faculdade de legislar obre a matéria em exame e da exclusiva competência da A.R. (vd. arts. 113/nº 2 e 168º/nº 1 al. c) da Const. da Rep. Portuguesa) e o início da nova legislatura durante a qual foi publicado e, consequentemente entrou em vigor o Dec.-Lei nº 454/91 de 28/12,
é-se tentado a afirmar, ter este surgido estando já caduca a autorização legislativa que o suportou'.
Considerando que a autorização legislativa havia caducado em 3 de Novembro de 1991 (a data do início de sexta legislatura ocorrera no dia 4 de Novembro do mesmo ano), o Senhor Juiz entendeu que o Decreto-Lei nº 454/91 estava afectado de inconstitucionalidade orgânica, porque a publicação do diploma autorizado seria o momento relevante para a existência do mesmo. Ora tal publicação só ocorrera em data posterior (28 de Dezembro de
1991). Neste despacho, louvou-se o seu autor no comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira ao art. 122º da versão originária da Constituição.
Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Agente do Ministério Publico, o qual foi admitido por despacho de fls. 46.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional. O Relator nomeou advogado oficioso à recorrida.
Apresentaram alegações a entidade recorrente e a recorrida.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto sustentou que devia ser dado provimento ao recurso e formulou as seguintes conclusões na sua alegação:
'1º Para que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta que, antes de expirar o prazo da sua duração e antes do termo da legislatura da Assembleia da República que a concedeu, o Governo haja aprovado, em Conselho de Ministros, o correspondente decreto-lei, sendo irrelevante que este só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além daqueles termos;
2º Assim, o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, aprovado em Conselho de Ministros de 29 de Agosto de 1991, foi-o antes de expirado o prazo de autorização legislativa concedida pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho, e antes do termo da V Legislatura da Assembleia da República;
3º Não sofre, por isso, de inconstitucionalidade orgânica a norma do artigo
15º, alínea b), desse Decreto-Lei, na parte em que revogou o artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro'. (a fls. 70-71)
Por seu turno, o Exmo. Patrono da recorrida concluiu no sentido de ser negado provimento ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
'1ª - As autorizações legislativas concedidas ao Governo pela assembleia parlamentar caducam com o termo da legislatura (artigo 168º, nº 4 da Constituição);
2ª A caducidade da autorização legislativa implica a incompetência do Governo para legislar em matérias reservadas à Assembleia da República;
3ª A norma do artigo 15º, alínea b), do Decreto-Lei nº 454/91, na parte em que revogou o artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, padece de inconstitucionalidade por violação do disposto na alínea c), do nº 1, do artigo
168º da Constituição, já que o Governo não dispunha dos competentes poderes;
4ª Os decretos-leis devem ser assinados pelo Primeiro-Ministro e pelos Ministros competentes em razão da matéria (artigo 204º, nº 3 da Constituição da República);
5ª A Constituição não prevê nem admite delegação da competência de assinatura das leis;
6ª - O Decreto-Lei nº 454/91 é formalmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 204º, nº 3 da Constituição da República, por não conter a assinatura do Ministro da Justiça, que era, atento o conteúdo do diploma, competente em relação à matéria.' (a fls. 89-90)
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
4. Como põem em destaque recorrente e recorrida, apesar de o despacho do senhor Juiz de Instrução Criminal ter recusado a aplicação globalmente do Decreto-Lei nº 454/91 por entender que todo ele estava ferido de inconstitucionalidade, o objecto do presente recurso restringe-se à questão de invocada inconstitucionalidade de certa norma ou normas dele que foram objecto de efectiva desaplicação. Para o recorrente, o objecto restringe-se ao disposto na alínea b) do art. 15º do Decreto-Lei nº 454/91, na parte em que revogou o art. 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, visto ter sido esta a norma invocada pelo Ministério Público para fundar a pretensão de realização de instrução preparatória quanto ao facto criminoso participado. A recorrida, por seu turno, entende que o objecto do recurso deveria abranger também a norma incriminatória da conduta a si imputada, ou seja, o art. 11º,nº
1, alínea a), do mesmo diploma. Entende-se que parece assistir razão à recorrida pois, se não se considerasse a norma incriminatória nova, não teria sentido mandar instaurar instrução preparatória contra a participada, atendendo a que os arts. 23º e 24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro (o último na redacção introduzida pelo art. 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro) foram inplicitamente revogados por aquele art. 11º. Ainda que houvesse de aplicar-se a norma revogada à recorrida por ser a mais favorável (cfr. arts. 29º, nº 4, da Constituição e art. 2º do Código Penal), sempre haveria de ter-se em conta a norma incriminadora em vigor no momento de instauração da instrução preparatória.
Seja como for - como reconhece, aliás, a recorrida - a entidade recorrente pode restringir nas alegações o objecto do recurso, pelo que há-de entender-se que apenas constitui objecto do mesmo o art.
15º, alínea b),do Decreto-Lei nº 454/91.
5. Preliminarmente, importa referir brevemente os condicionalismos que rodearam a publicação do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro.
A Lei nº 30/91, de 20 de Julho, autorizou o Governo a legislar em matéria relativa à emissão de cheques sem provisão (art.
1º), tendo sido fixado pelo legislador parlamentar em oito alíneas o sentido e extensão da autorização (art. 2º). O art. 3º desta lei autorizou o Governo a considerar certas pessoas como autoras do crime de emissão de cheque sem provisão. O art. 4º, por último, estabeleceu que as autorizações legislativas concedidas tinham a duração de 90 dias.
O Decreto-Lei nº 454/91, diploma autorizado, veio a ser publicado em 28 de Dezembro de 1991. Do texto do mesmo consta que foi aprovado em Conselho de Ministros em 29 de Agosto de 1991, achando-se assinado pelo Primeiro Ministro, pelo Ministro das Finanças e pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, tendo sido promulgado pelo Presidente da República em 13 de Dezembro de 1991 e referendado pelo Primeiro Ministro, em 16 do mesmo mês e ano.
Tendo o decreto em causa sido enviado para promulgação ao Presidente em 11 de Setembro de 1991, solicitou este em 13 do mesmo mês ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva de constitucionalidade de certas normas dele constantes. O Tribunal Constitucional não se pronunciou pela inconstitucionalidade de nenhuma das normas questionadas, através do Acórdão nº 371/91, proferido em 10 de Outubro desse ano (publicado no Diário da República, II Série, nº 284, de 10 de Dezembro de 1991, isto é, dois meses depois de proferido).
Por último, importa ter presente que a última sessão do plenário da Assembleia da República da V Legislatura ocorreu no dia 20 de Junho de 1991, tendo-se realizado eleições para deputados à Assembleia da República em 6 de Outubro de 1991, cujos resultados foram publicados no Diário da República, I Série-A, nº 249, de 29 de Outubro de 1991, tendo reunido a Assembleia da República na primeira sessão da VI Legislatura em 4 de Novembro do mesmo ano (cfr. art. 176º, nº 1, da Constituição e Diário da Assembleia da República, VI Legislatura, I Série, nº 1, de 5 de Novembro de 1991).
Dos elementos indicados, resulta pois que o diploma autorizado foi aprovado em Conselho de Ministros dentro do prazo de duração da autorização legislativa e antes do termos da V Legislatura (3 de Novembro de 1991), mas a promulgação, a referenda e a publicação ocorreram já após o decurso do prazo concedido pelo art. 4º da Lei nº 30/91 e após o início de nova legislatura.
6. Relativamente à norma desaplicada pelo despacho recorrido, ela foi tida por inconstitucional por já não se achar em vigor à data da publicação a autorização legislativa concedida para o efeito. O patrono da recorrida considera que a norma em causa é ainda formalmente inconstitucional por o diploma autorizado se não achar assinado pelo Ministro da Justiça mas antes pelo Secretário de Estado Adjunto do mesmo, não estando prevista na Constituição a possibilidade de delegação neste caso.
Começar-se-á por analisar o primeiro fundamento da invocada inconstitucionalidade.
7. Desde já se deixa afirmado que carece de razão o Senhor Juiz recorrido ao sustentar que o diploma autorizado sofre de inconstitucionalidade orgânica por se ter já verificado a caducidade da autorização legislativa no momento da publicação do decreto-lei em causa, sendo o momento de publicação o único momento relevante para determinar a existência de um diploma legislativo.
Antes de tudo, importa pôr em relevo que o Senhor Juiz recorrido deu por assente que, antes da publicação de um diploma legislativo, o mesmo se havia de ter por inexistente para todos os efeitos jurídicos, baseando-se no nº 4 do art. 122º da versão originária da Constituição, que determinava que a falta de publicidade dos actos jurídicos implicava a respectiva inexistência jurídica. É o que resulta da invocação do comentário de Gomes Canotilho e de Vital Moreira à versão originária da Constituição de 1976.
Ora, a partir da primeira revisão constitucional
(Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro) o art. 122º, nº 2, da Lei Fundamental passou a estabelecer que a falta de publicidade dos actos de conteúdo genérico dos órgãos de soberania previstos no artigo anterior - entre os quais se contam as leis e os decretos-leis - implica tão só a sua ineficácia jurídica e não mais a inexistência jurídica. Tal alteração reveste-se de especial importância na matéria de autorizações legislativas e, por isso, a doutrina que considerava, face ao texto da versão originária, atendível o momento de publicação passou a admitir que não seria exigível que a publicação do diploma autorizado ocorresse durante a vigência da lei de autorização (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1ª ed., Coimbra, 1978, pág. 336, e 2ª ed., vol. 2º, Coimbra, 1985, pág. 205; JJ Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 865).
Dando por adquirido que não resulta actualmente da Constituição que só seja atendível o momento da publicação do diploma autorizado para aferir se o mesmo foi elaborado dentro do prazo de vigência da correspondente autorização legislativa [acrescente-se que, mesmo na vigência da versão originária da Constituição de 1976, a jurisprudência da Comissão Constitucional se alterou pois que, tendo começado por considerar que a publicação dum diploma legislativa reunia em si o elemento constitutivo e o elemento conclusivo do respectivo processo de formação, veio, a partir do acórdão nº 212, a chamar a atenção para que não se devia confundir 'a natureza da sanção cominada para a falta de publicação [inexistência jurídica] com a natureza ou carácter [constitutivo] da mesma publicação' - in Apêndice ao Diário da República, de 16 de Abril de 1981, pág. 21], todavia a questão em apreciação não se acha automaticamente resolvida pois que, no caso sub judicio, apenas a aprovação em Conselho de Ministros e o envio para promulgação ocorreram enquanto se mantinha em vigor a correspondente autorização legislativa, que caducou em Outubro de 1991, antes do termo da V Legislatura (3 de Novembro do mesmo ano).
8. O Tribunal Constitucional firmou já jurisprudência, em ambas as suas secções de forma unânime, sobre o momento relevante a que há-de atender-se para saber se o diploma autorizado foi elaborado durante o prazo de vigência da autorização legislativa correspondente. Sendo em abstracto sustentável que o momento relevante pudesse ser o de aprovação em Conselho de Ministros, o de envio ao Presidente da República para promulgação, o da promulgação, o de referenda ou o da publicação, o Tribunal considerou que o momento atendível havia de ser o de aprovação em Conselho de Ministros (vejam-se os Acórdãos nºs 150/92, da 2ª Secção, e 121/93, da 1ª Secção, achando-se até agora publicado apenas o primeiro, in Diário da República, II Série, nº 172, de 28 de Julho de 1992). Escreveu-se no primeiro destes arestos, explicitando-se os fundamentos da solução propugnada:
'Por um lado, não constituindo a promulgação um acto de conpetência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria.
Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta (com admissão da prova em contrário).
Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo de autorização legislativa «existe» para o efeito de se considerar respeitado esse prazo, como «existe» qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas'.
Acrescente-se que, no caso sub judicio, o diploma em causa foi enviado para promulgação ao Presidente da República muito antes de ter caducado a autorização legislativa pelo decurso do prazo, tendo o atraso na promulgação e subsequente publicação ficado a dever-se ao pedido de fiscalização preventiva de certas normas do mesmo e ao inexplicável atraso na publicação do acórdão do Tribunal Constitucional que recaiu sobre tal pedido.
Não havendo novos argumentos ou razões ponderosas para alterar o ponto de vista referido, remete-se para a doutrina constante dos mesmos acórdãos, reafirmando-se que o momento relevante para saber se foi utilizada uma autorização legislativa durante o prazo de vigência da mesma é o da aprovação em Conselho de Ministros do diploma autorizado.
9. A recorrida, exprimindo embora reservas sobre a bondade desta orientação do Tribunal Constitucional, considera que, no caso sub judicio, se deve atender prevalentemente ao disposto no nº 4 do art. 168º da Constituição, de onde decorreria que, ainda que o diploma autorizado tivesse sido aprovado em Conselho de Ministros dentro do prazo de vigência da lei de autorização legislativa, o subsequente termo da legislatura teria de implicar a caducidade da autorização, privando de credencial parlamentar o diploma do Governo. Segundo sustenta, o iter processual dos decretos-leis emitidos a coberto de autorização legislativa só estaria perfeito, e as respectivas normas válidas e eficazes, 'se entre a publicação da autorização e a publicação do diploma delegado não ocorrer algum facto ou o decurso do tempo causadores de caducidade do procedimento legislativo' (a fls. 81). Ora, uma vez que a promulgação, a referenda e a publicação do diploma autorizado ocorreram após o início de nova legislatura, todo o procedimento legislativo estaria posto em causa por força da caducidade estatuída no art. 168º, nº 4, da Constituição. A relação fiduciária entre certo Governo e determinada Assembleia já não se verificaria nos momentos da promulgação, referenda e publicação do decreto-lei elaborado por Governo que entretanto cessara funções.
Não pode concordar-se com esta posição da recorrida.
Como resulta da orientação unânime da jurisprudência deste Tribunal, a referida relação fiduciária tem de existir no momento de aprovação em Conselho de Ministros do diploma autorizado. O subsequente início de uma legislatura implica a demissão do Governo (art. 198º, nº 1, alínea a), da Constituição) mas não afecta a validade ou eficácia dos decretos autorizados, aprovados pelo Governo demitido e ainda não promulgados.
Contra este ponto de vista, não pode argumentar-se com a ideia de que a solução seria gravosa para o novo Governo, que poderia não concordar com o texto do diploma autorizado, aprovado pelo anterior Governo, ou com a oportunidade de publicação de tal legislação. De facto, a existência e, portanto, a entrada em vigor de tal diploma dependem sempre da vontade política do novo Governo, uma vez que a referenda tem de ser concedida pelo Governo em funções no momento da promulgação do acto como decreto-lei pelo Presidente da República, podendo discutir-se se é constitucionalmente lícita neste caso específico a recusa de referenda, por se tratar de um diploma legislativo emanado de outro Governo, invocando-se razões objectivas que justificam a reapreciação do mérito do mesmo (sobre a problemática do instituto da referenda, vejam-se Parecer nº 5/80 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 11º vol., pág. 140 e segs.; Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, policop. págs. 443 e segs.; J. P. Vieira Duque, A Referenda Ministerial, in Revista Jurídica, nºs 11 e 12, págs 143 e segs.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 606 a
609).
A verdade é que nada há na Constituição que proíba que a referenda seja feita por Governo diverso do que aprovou certo diploma. Decorre do art. 143º da Constituição que a referenda deve ser aposta pelo Governo em funções no momento da promulgação de um diploma como lei ou decreto-lei. Foi o que aconteceu no caso em apreciação.
10. A recorrida sustenta ainda que a norma desaplicada pelo tribunal recorrido e que constitui objecto do presente recurso
é inconstitucional do ponto de vista formal, por o decreto-lei em causa ter sido assinado pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça, em vez de ser assinado pelo próprio Ministro da Justiça. Para fundamentar tal juízo, afirma que o art. 203º, nº 1, alínea d), da Constituição confere ao Conselho de Ministros a competência para aprovar os decretos-leis, do mesmo modo que a Lei Fundamental estabelece que esse órgão é constituído pelo Primeiro-Ministro, pelos Vice-Primeiros-Ministros, se os houver, e pelos Ministros (art. 187º, nº
1) e que os decretos-leis e os demais decretos do Governo são assinados 'pelo Primeiro-Ministro e pelos Ministros competentes em razão da matéria' (art. 204º, nº 3). Do conjunto destas normas decorreria que, em caso algum, poderia um Secretário de Estado assinar um decreto-lei em substituição do competente Ministro, visto não poder 'ser admitida uma delegação de competências, dadas as atribuições que competem a cada Ministro (...), o carácter precário que caracteriza o assento em Conselho de Ministros dos Secretários de Estado e a injunção da Lei Fundamental de que as leis sejam assinadas pelos Ministros'. (a fls. 86 dos autos). A possibilidade que a Constituição contempla no seu art.
188º, nº 2, de os Ministros serem substituídos na sua ausência ou impedimento por um Secretário de Estado não abrangeria os casos de exercício da função legislativa, devendo ter-se qualquer delegação da competência legislativa por constitucionalmente inválida, atento o disposto no art. 114º, nº 2, da Constituição.
11. Não se aceita esta posição da recorrida.
Na verdade, não resulta da Constituição qualquer limitação ou restrição funcional relativamente aos substitutos do Primeiro-Ministro ou dos Ministros. O art. 188º, nº 1, da Constituição estabelece que, não havendo Vice-Primeiro-Ministro, o Primeiro-Ministro 'é substituído na sua ausência ou no seu impedimento pelo Ministro que indicar ao Presidente da República ou, na falta de tal indicação, pelo Ministro que for designado pelo Presidente da República'. E o nº 2 do mesmo artigo contém uma norma idêntica, prevendo que cada Ministro seja substituído na sua ausência ou impedimento pelo Secretário de Estado que indicar ao Primeiro-Ministro ou, na falta de tal indicação, pelo membro do Governo que o próprio Primeiro-Ministro designar.
Acresce que, diferentemente do que sucede com os actos do Presidente da República interino - em que a Constituição exclui certos actos da competência do Presidente interino ou condiciona a sua prática à audição do Conselho de Estado (art. 142º) - não se estabelece qualquer condicionamento à prática de actos pelo Vice-Primeiro Ministro em substituição do Primeiro-Ministro ou pelo membro do Governo substituto de certo Ministro havendo a notar que, em caso de morte ou de impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro, tais factos acarretam a demissão do Governo (art. 198º, nº 1, c), da Constituição) e, em consequência dessa demissão, a capacidade do Governo fica limitada aos actos de gestão corrente (art. 189º, nº 5, da Constituição). Daquele silêncio da Constituição, deverá retirar-se que a participação em Conselho de Ministros quanto à aprovação de decretos-leis não está reservada ao Primeiro-Ministro ou aos Ministros competentes em razão da matéria, podendo ocorrer a intervenção dos substitutos de qualquer desses membros do Governo.
Não se vê, por isso, qualquer base para a afirmação da recorrida de que não pode ser admitido um exercício de competências pelos substitutos como se se tratasse dos substituídos, dado o carácter precário do assento em Conselho de Ministros dos Secretários de Estado (cfr. art. 187º, nº 3, da Lei Fundamental) visto que a matéria de substituição tem assento na própria Constituição e o nº 3 do art. 204º desta deve ser lido à luz do disposto no art. 188º da mesma Lei Fundamental. Por outro lado, a existência dos preceitos dos nºs 1 e 2 deste art. 188º, sem a correspondente estatuição de quaisquer restrições de capacidade nas situações de ausência ou impedimento temporário há-de seguramente constituir credencial suficiente para a prática de actos da competência do substituído pelo seu substituto, sem que possa falar-se em sentido próprio de uma delegação de competências e haja de fazer-se apelo, por isso, ao disposto no nº 2 do art. 114º da Constituição (cfr. Jorge Miranda, Funções cit, págs. 80-81; G. Canotilho e Vital Moreira, Constituição cit., págs.
739-740). De facto, a delegação de competências sempre requereria um acto do titular do órgão delegante, ao passo que a substituição depende apenas da verificação dos pressupostos previstos na norma.
A Constituição não prevê nenhuma forma ou requisito de publicidade para a indicação do substituto de um Ministro, quer tal indicação provenha do próprio substituído ou do Primeiro-Ministro. No caso concreto, porém, a assinatura aposta no diploma aprovado em Conselho de Ministros do referido Secretário de Estado, conjuntamente com a do Primeiro-Ministro e de outro Ministro do Governo, há-de valer seguramente como indício externo e, nessa medida, forma de publicidade da substituição, dado o carácter solene da assinatura e a menção da mesma no Jornal Oficial (neste sentido, veja-se o Acórdão nº 386/93 deste tribunal, in Diário da República, II Série, nº 232, de 2 de Outubro de 1993).
Tanto basta para que se conclua que não ocorre in casu qualquer inconstitucionalidade formal respeitante ao momento de aprovação do diploma.
II
12. Nestes termos e pelos fundamentos referidos, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo ser reformulado de harmonia com o julgamento sobre as questões de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Luís Nunes de Almeida