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Proc. Nº 414/91 Sec. 1ª Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1º - A., por si e como representante de sua filha menor B. propôs uma acção sumária emergente de acidente de viação contra C. e outros, acção que correu termos pela comarca de Vagos, tendo o julgamento sido anulado por acórdão da Relação de Coimbra, de 12 de Abril de 1988, para ser ampliada a matéria de facto.
Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por decisão de 17 de Janeiro de 1989, foi negado provimento ao recurso.
2. - Repetido o julgamento, na audiência de
20 de Outubro de 1989, o advogado do co-réu C. e mulher pediu o seu adiamento, através de telegrama em que dava conta, nos termos que ficaram exarados na respectiva acta de audiência (fls210),'da sua impossibilidade de comparência à base de deputado' o mandatário da autora manifestou oposição a esse pedido, invocando que o julgamento já tinha sido adiado uma vez. O juiz, porém, deferiu-o com fundamento no preceituado no artigo 13º da Lei nº 3/85.
3. - Desta decisão interpuseram as autoras recurso de agravo para a Relação e, tendo sido proferida decisão no sentido da absolvição dos réus, as autoras interpuseram recurso da sentença, tendo apresentado as alegações respeitantes ao agravo e à apelação.
Relativamente ao agravo, as autoras invocaram, para pedir a anulação do despacho recorrido, a inconstitucionalidade do artigo 13º da Lei nº 3/85, de 13 de Março, por entenderem que viola o princípio da igualdade ínsito no artigo 13º da Constituição.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 6 de Novembro de 1990, julgou improcedente o agravo e a apelação, confirmando a decisão recorrida.
As autoras interpuseram recurso de revista para o STJ quer quanto à matéria do agravo quer quanto ao mérito da causa.
Por acórdão de 26 de Junho de 1991, o STJ negou provimento à revista, entendendo que não se verificava a inconstitucionalidade do artigo 13º da Lei nº 3/85, por violação do princípio da igualdade.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, circunscrito à parte da decisão que não atendeu à invocada inconstitucionalidade do artigo 13º, conforme resposta ao convite para esclarecimento do âmbito do recurso.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - Em causa, nos autos, está o pedido de um segundo adiamento da audiência de discussão e julgamento em processo sumário especial emergente de acidente de viação, com invocação do exercício de funções de Deputado, fundamentando-se o pedido de anulação do despacho que deferiu o adiamento na inconstitucionalidade do nº 3 do artigo 13º da Lei nº 3/85, de 13 de Março, que aprovou o ' Estatuto dos Deputados'.
A norma questionada tem o seguinte teor:
'3 - A falta de Deputados por causa de reuniões ou missões da Assembleia a actos ou diligências oficiais a ela estranhos, constitui sempre motivo justificado de adiamento destes, sem qualquer encargo.'
Segundo os recorrentes, esta norma 'ao permitir aos Deputados, aquilo que não permite a mais ninguém, e nomeadamente aos outros Advogados que não sejam Deputados, estabelece um princípio de DESIGUALDADE perante a lei', concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões:
I
O artigo 13º, nº 3 é inconstitucional na medida em que permite aos advogados Deputados, aquilo que não permite aos restantes advogados do País inteiro.
II Assim considera-se violado o artigo 13º da nossa Constituição da República, cuja fiscalização compete a Vossas Excelências.
III Pelo que deve dar-se provimento a este recurso com todas as legais consequências previstas na Lei, assim se fazendo Justiça.'
Pelo seu lado, os recorridos consideram o recurso 'um mero expediente dilatório' e, não tendo formulado conclusões nas suas alegações, entendem que 'aquela norma da Lei nº 3/85 visa, não a protecção do Deputado individualmente considerado, mas antes a defesa, por fortes razões de funcionalidade e eficácia, do órgão de soberania Assembleia da República considerado globalmente, enquanto pilar fundamental da arquitectura constitucional do Estado', pelo que deverá ser negado provimento ao recurso.
Em ambas as instâncias não se concedeu provimento ao recurso por se ter entendido que a norma questionada não violava o princípio da igualdade por existir um fundamento material bastante para o diferente tratamento legal.
Vejamos se é assim.
5. - O artigo 13º da Constituição, depois de estabelecer que 'todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei' (nº 1), determina no nº 2 que 'ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social'.
O âmbito de protecção do princípio da igualdade ínsito neste preceito abrange diferentes dimensões: a proibição do arbítrio, que torna inadmissível não só a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável apreciada esta de acordo com critérios objectivos de relevo constitucional mas também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; a proibição de discriminação que não permite quaisquer diferenciações entre cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas e, por último, a obrigação de diferenciação como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'Constituição da República Portuguesa Anotada',1º vol., 2ª ed., Coimbra, 1984,pp.149 e segs.).
A igualdade consiste, assim, em tratar por igual o que é essencialmente igual e tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. A igualdade não proíbe, pois, o estabelecimento de distinções, o que com ela se proíbe são as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Tais distinções são materialmente infundadas sempre que assentam em motivos que não oferecem um carácter objectivo e razoável, ou seja, quando a norma em causa não apresenta qualquer fundamento material razoável.
Na perspectiva da proibição do arbítrio, o princípio da igualdade identifica-se com uma proibição de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas, por um lado, à ordem constitucional de valores e, por outro, à situação fáctica que se pretende regulamentar ou ao problema que se deseja decidir.
Assim, e de um modo esquemático pode dizer-se ( com Pieroth/Schlink, Grundrechte - Staatsrecht II, pg.115, nº
506) que, para se poder reconhecer um fundamento material ao desigual tratamento normativo de situações essencialmente iguais, deve aquele prosseguir um fim legitimo, ser adequado e necessário para realizar tal fim e manter uma relação de equitativa adequação com o valor que subjaz ao fim visado.
Importa, por isso, apurar se, no caso dos autos, o princípio da igualdade foi ou não violado pela norma do nº 3 do artigo 13º da Lei nº 3/85 (Estatuto dos Deputados), na medida em que nele se estabelece o direito de os Deputados faltarem a actos ou diligências oficiais estranhos à Assembleia, por motivo de reuniões ou missões da própria Assembleia, constituindo a falta, em tais circunstâncias, sempre motivo justificado de adiamento desses actos ou diligências, sem quaisquer encargos.
6. - Os recorrentes entendem que o princípio da igualdade foi violado na medida em que a norma permite aos Deputados o que não permite a mais ninguém, nomeadamente, aos outros advogados que não sejam Deputados, gerando assim uma situação de desigualdade.
Mas não têm razão.
Com efeito, a caracterização de uma norma como inconstitucional por violação do princípio da igualdade, depende, como se verificou, da ausência de fundamento material bastante, isto é, de falta de razoabilidade e de proporcionalidade, o que a coloca em dissonância com o sistema jurídico.
No caso em apreço, existe um fundamento suficiente susceptível de justificar a desigualdade de tratamento decorrente da norma entre advogados que são Deputados e os que o não são, quanto ao adiamento de julgamentos.
O referido fundamento consiste no exercício das funções de Deputado. Efectivamente, a lei reconhece que o pleno exercício de tão importantes funções não seria eficazmente realizado se, nos casos em que é possível aos Deputados exercerem outras funções sem incorrerem em incompatibilidade, não se previsse a possibilidade de os actos e diligências oficiais estranhos à Assembleia da República, a que tivessem de comparecer, não pudessem ser adiados em virtude de o Deputado ter de estar presente em reuniões ou missões da própria Assembleia.
O reconhecimento pelo legislador constituinte da importância das funções dos Deputados, enquanto membros da Assembleia da República, que é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, levou a que na própria Constituição se tenha previsto, como garantia do exercício eficaz das suas funções, a justificação do adiamento dos referidos actos ou diligências oficiais - artigo 158º - remetendo para a regulamentação legal a fixação das condições em que tal efeito poderá ocorrer em resultado da falta dos Deputados.
A esta regulação se procedeu no Estatuto dos Deputados aprovado pela Lei nº 3/85, de 13 de Março, nos termos que constam do artigo 13º, aqui em causa.
A norma limita-se assim a dar execução a preceito constitucional expresso, em termos que, de modo algum, se podem considerar irrazoáveis ou arbitrários.
Na verdade, o nº 3 do artigo 13º prevê que a falta de Deputado a diligências não relacionadas com a Assembleia, desde que motivada pelo dever constitucional de presença do Deputado em reuniões ou missões do órgão a que pertence, é sempre motivo justificado para o seu adiamento.
Esta norma que, no seu teor literal poderia conduzir a interpretações excessivas, está desde logo restringida e reconduzida a limites razoáveis pelo nº 4 do mesmo preceito, que proíbe que o Deputado possa invocar o fundamento do nº 3 mais de uma vez em qualquer acto ou diligência oficial.
Tem, portanto, de se concluir que a desigualdade de tratamento que resulta da norma em causa entre advogados em geral e os que também exercem as funções de Deputados, quanto aos fundamentos de adiamento de julgamentos, não só não é arbitrária ou irrazoável, como dispõe de um fundamento material bastante, pelo que não se verifica a violação do princípio da igualdade que os recorrentes defendem.
Resulta de todo o exposto, que o recurso não merece provimento.
III - DECISÃO:
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa,1994.03.02
Vítor Nunes de Almeida António Vitorino Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Dinis Armindo Ribeiro Mendes Luís Nunes de Almeida