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Proc. nº 719/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., divorciado, nacional turco com residência em território português, foi acusado pelo Ministério Público da prática de três crimes, em concurso real, previstos e punidos pelas disposições dos arts. 23º, nº 1, e 27º, alíneas c) e g), do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro
(crimes de tráfico de estupefacientes) e de dois crimes previstos e punidos pelo art. 260º do Código Penal. No mesmo processo, foram igualmente acusados mais cinco arguidos, vindo a ser julgados nele, além do recorrente, apenas três cidadãos portugueses, acusados da prática de crimes previstos e punidos pelas mesmas disposições legais, e um deles ainda por um crime previsto no art. 260º do Código Penal, com referência ao art. 2º, nº 1, alínea f), do Decreto-Lei nº
207-A/75, de 17 de Abril.
2. O julgamento começou a realizar-se no 2º Juízo Criminal de Lisboa a partir de 29 de Novembro de 1991. No decurso das sessões da audiência foram interpostos diferentes recursos de decisões proferidas sobre requerimentos apresentados pelo mandatário do arguido A., destacando-se à frente apenas os relacionados com o presente recurso de constitucionalidade.
Na sessão de 6 de Dezembro do mesmo ano, o mandatário judicial do arguido A. veio requerer, relativamente a uma das testemunhas de acusação, o agente da Polícia Judiciária B., que não fosse tido em conta o depoimento por ela prestado na parte respeitante a declarações que a mesma dissera ter ouvido a C., declarações feitas após esta última ter sido detida e antes de ser apresentada ao Juiz de Instrução Criminal. Fundamentou o requerido no disposto no art. 356º, nº 7, do Código de Processo Penal de 1987, bem como no art. 32º, nº 1, da Constituição. Após resposta do Ministério Público, o tribunal colectivo indeferiu o requerido, considerando que em nenhum lugar do processo se mostrara que essa testemunha tivesse tomado declarações à referida arguida, sucedendo que as referências feitas por aquela relativamente à conversa havida entre si e a mesma C. não preenchiam o condicionalismo do nº 7 do art. 356º daquele diploma. Relativamente a um outro pedido por ele formulado na mesma altura, no sentido de não ser permitido que as testemunhas subsequentes a ouvir pelo tribunal se pronunciassem sobre as declarações recolhidas a qualquer título por elas, o tribunal colectivo considerou que não tinha o dever de se pronunciar sobre o mesmo, dado se tratar de questão a suscitar e decidir no futuro (a fls. 892). Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o mesmo mandatário, através de requerimento ditado para a acta. Apresentada a motivação deste recurso em 16 de Dezembro de 1991, veio o mesmo a ser admitido por despacho de fls. 919 dos autos.
Na sessão de julgamento realizada em 13 de Janeiro de 1992, de novo o mandatário do arguido A. pôs em causa o depoimento de outra testemunha, o agente da Polícia Judiciária D., na parte em que referiu factos respeitantes a alegada conversa do depoente com a mesma C., antes de esta ter sido apresentada ao Juiz de Instrução Criminal, invocando o disposto no art.
128º, nº 1, do Código de Processo Penal. Este requerimento veio a ser indeferido na sessão de julgamento de 20 de Janeiro de 1992, por se tratar de um depoimento indirecto, insusceptível de ser confrontado com o depoimento da referida C., arguida contra quem pendiam mandatos de captura. Assim sendo, seriam perfeitamente válidas as referências feitas pela testemunha, nos termos da parte final do nº 1 do art. 129º do mesmo diploma legal (a fls. 934 e vº dos autos). Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o mesmo mandatário. Apresentada a motivação em 20 de Janeiro de 1992, foi o recurso admitido por despacho de fls. 947 dos autos.
3. Por acórdão de 7 de Fevereiro de 1992, o arguido A. veio a ser absolvido de um dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado de que vinha acusado, e condenado pela prática dos dois outros crimes da mesma natureza, um deles também agravado, bem como pelos crimes previstos e punidos no art. 260º do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada a pena única de 16 anos de prisão e 3.700.000$00 de multa, bem como a pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de vinte anos. Ao abrigo da lei de amnistia de 1991, foram declarados perdoados dois anos de prisão e 500.000$00 de multa (a fls. 958 a 975).
4. Inconformado com este acórdão, dele interpôs recurso o arguido A., através de requerimentos subscritos por dois advogados constituídos diferentes (a fls. 995 e segs., requerimento subscrito por um advogado constituído através de procuração passada em 16 de Fevereiro de 1992; a fls. 1 000 e segs., pelo advogado que interviera na audiência de julgamento).
Foram interpostos recursos por outros co-arguidos.
Apenas veio a ser admitido o recurso interposto pelo requerimento de fls. 1 000 e seguintes, após se ter apurado que o arguido em causa não pretendera revogar o mandato conferido ao primeiro advogado
(despacho de fls. 1 023).
Por acórdão proferido em 7 de Outubro de 1992, foram decididos pelo Supremo Tribunal de Justiça os recursos interpostos pelo arguido A. das decisões interlocutórias de fls. 890 vº, 892 e 934 vº, e do acórdão condenatório final. Os recursos das decisões de fls. 890 vº e 892 foram julgados improcedentes.
Relativamente ao recurso do despacho de fls. 934 vº, pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
'Também a fls 903 o recorrente requereu que não fosse tomada em conta a parte do depoimento da testemunha D. no tocante à alegada conversa que manteve com a C..
O Tribunal indeferiu o requerido ao abrigo do art. 129º, nº 1, parte final, do CPP, uma vez que a referência feita a conversa mantida com a C. cai na situação de depoimento indirecto e não há possibilidade de a fazer comparecer uma vez que sobre ela pendem mandatos de captura e já foi declarada contumaz.
Tal como o anterior recurso também este não pode proceder.
A C. prestou informação que consta do relatório de fls. 54 e que se transcreveu a fls. 8 verso. Esta informação foi determinante para a deslocação ao local onde foi encontrada a mala contendo a heroína. Não estava a testemunha, órgão de polícia criminal, impedida de dizer na audiência quem prestou a informação. Não se trata de uma prova por declarações, ou seja, não foi em virtude de informação da C., reproduzida pela testemunha na audiência, que o Tribunal deu como provada a existência dessa mala, o seu conteúdo e quem detinha a droga.
A prova destes factos resultou dos depoimentos prestados na audiência quer por órgãos de polícia criminal, quer por outras testemunhas que levaram o Tribunal à convicção de que a droga que foi apreendida na arrecadação estava na posse do recorrente que a destinava a venda a terceiros.
O nº 7 do art. 356º do C.P.P. relaciona-se com o direito ao silêncio do arguido.
Compreende-se que as declarações que prestou respeitantes ao objecto do processo não possam servir de meio de prova no julgamento através da sua leitura, quando não permitida, ou mediante depoimentos indirectos.
A informação da C. traduziu-se em auxílio à recolha de provas para identificação de outros responsáveis, não tendo aplicação ao caso as disposições legais que o recorrente invoca'. (a fls. 1076 e vº; o relatório da Polícia Judiciária referido neste passo acha-se parcialmente transcrito neste acórdão do Supremo, a fls. 1074 vº dos autos, nos seguintes termos:
«Posteriormente e já nesta Polícia e face à evidência das provas ... esclareceu a C. ter conhecimento que o seu companheiro havia procedido ao transporte duma mala que conteria heroína para uma arrecadação duma residência sita no Largo
-------- ---- ----- em ---------, ------»).
Por último, relativamente ao recurso interposto pelo arguido A. do acórdão condenatório proferido pelo tribunal colectivo de primeira instância, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu-lhe provimento parcial, por ter considerado que aquele cometeu um só crime de tráfico de estupefacientes, reduzindo a pena unitária para 12 anos e 6 meses de prisão e
2.500.000$00 de multa, e considerando perdoadas, por amnistia, a pena de um ano, seis meses e vinte e três dias de prisão e quinhentos mil escudos de multa.
5. Notificado deste acórdão, veio o arguido A. dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto nos arts. 70º, 72º, nº 1, alínea b), 72º, nº 2, e 75º da Lei do Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 1082). O recurso foi admitido por despacho de fls. 1083.
6. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
O relator convidou o recorrente a indicar os elementos exigidos nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
Correspondendo a tal convite, veio o recorrente precisar que o recurso era interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sendo 'a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o [...] Tribunal aprecie' a do nº 1 do art. 129º do Código de Processo Penal, 'dada a inconstitucionalidade material do citado preceito legal, por violação do disposto no art. 32º nº 1 da Constituição da República'
(a fls. 1096). Esclareceu ainda que tinha suscitado tal questão de constitucionalidade na motivação do recurso entregue em 20 de Janeiro de 1992 no
2º Juízo Criminal de Lisboa (recurso interposto da decisão de fls. 934 vº).
7. Recorrente e recorrido vieram a apresentar alegações no presente recurso.
Nessa peça, o recorrente pediu a revogação do acórdão recorrido e formulou as seguintes conclusões:
'1) O art. 129º nº 1 do CPP encontra-se ferido de inconstitucionalidade material, por violação clara do disposto no art. 32º nº 1, 32º nº 3 e 32º nº 5 da Constituição.
A redacção deste artigo [...] atent[a] ainda contra o princípio da imediação e de contra interrogatório na fase de julgamento.
2) O art. 129º nº 1, ao não fazer a distinção entre interrogatório judicial e não judicial, [...] possibilita que, em caso de morte, anomalia psíquica superveniente, impossibilidade de ser encontrada a «pessoa determinada» seja considerado válido o depoimento de testemunha de 'ouvir dizer', podendo tal testemunho servir como meio de prova.
3) A utilização e valoração de testemunhas de «ou[vir] dizer» é incompatível com um processo de estrutura acusatória devendo considerar-se incompatíveis com a constituição tais testemunhas de «ouvir dizer», por força do disposto no art.
32º nº 5 da Lei Fundamental.
4) O testemunho de «ouvir dizer» (mesmo que a 'pessoa determinada' que não foi encontrada e não pôde ser inquirida pelo Tribunal), carece de razão de ciência, e não tem qualquer valor, nem há que levá-lo em consideração. Ao facultar a possibilidade desse testemunho (e ao considerá-lo como meio de prova) o art.
129º nº 1 colide com o princípio de contraditório, e com as garantias de defesa do arguido previstas no art. 32º nº 1 da Lei Fundamental.
5) A utilização e valoração deste tipo de testemunho de «ouvir dizer» - a pessoa determinada, e que pode não aparecer no Tribunal - a que desde [alude?] o art.
129º nº 1 do CPP é incompatível com um processo de estrutura acusatória por violar o princípio do contraditório consignado na CRP no art. 32º nº 5.
6) O art. 129º nº 1 do C.P.P., ao incluir os co-arguidos ou co-detidos, na categoria de «pessoa determinada», viola o disposto no art. 356º nº 7 do CPP, e, viola assim e reflexamente o disposto no art. 61º do CPP e art. 32º nº 1 da CRP.
7) O art. 129º nº 1 do CPP, ao conceder ao Tribunal a possibilidade de este valorar e considerar como meio de prova legal, em certas circunstâncias, o testemunho de «ouvir dizer», contradiz a doutrina e os princípios constitucionais de garantia de defesa do arguido, havendo nítida oposição entre esta norma legal (o citado art 129º nº 1 do CPP) e as normas constitucionais consagradas no art. 32º nºs. 1, 3 e 5 da Lei Fundamental.
8) Encontrando-se o art. nº 129º nº 1 do CPP ferido do vício da inconstitucionalidade material, por violação dos apontados preceitos, não poderia o douto Tribunal de primeira instância ter feito aplicação do mesmo
(art. 206º e 207º da CRP)'. (a fls. 2032 a 2035 dos autos)
O Ministério Público, por seu turno, preconizou igualmente a concessão de provimento ao recurso, formulando as seguintes conclusões na contra-alegação:
'1º A norma do artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal de 1987, ao permitir a produção e valoração de depoimento indirecto no caso de impossibilidade de ser encontrada a pessoa a quem a testemunha ouviu dizer, não viola, em si, as garantias de defesa, e designadamente os princípios da imediação e do contraditório, pelo que, abstractamente considerada, não padece de inconstitucionalidade.
2º Porém, tal norma, interpretada e aplicada - como o foi pelas instâncias - no sentido de permitir que, em audiência de julgamento, órgãos de polícia criminal reproduzam declarações que lhes terão sido ilegalmente prestadas por uma co-arguida, no período entre a sua detenção (que viria a ser julgada ilegal) e o primeiro interrogatório judicial, declarações essas que - segundo a mesma co-arguida - terão sido obtidas por meios violentos, já é de reputar como inconstitucional, porque violadora das garantias de defesa, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição'. (a fls. 2117-2118 dos autos)
8. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivo que a tal obste, cumpre conhecer do seu objecto.
II
9. Para delimitar o objecto do presente recurso e para compreender plenamente a decisão ora recorrida, importa examinar as circunstâncias em que terá ocorrido a conversa entre os identificados agentes da Polícia Judiciária e a arguida C., actualmente em paradeiro desconhecido e já declarada em situação de contumácia.
Da leitura dos autos, resulta que em 6 de Junho de 1990 veio a ser detido o co-arguido E., na sequência de buscas judicialmente autorizadas e levadas a cabo em duas residências a ele pertencentes. No dia seguinte, vieram a ser detidos o ora recorrente, e outras pessoas, entre elas a referida C. (fls. 52 a 54). Todos os detidos foram submetidos ao primeiro interrogatório judicial (a fls. 68 a 86 dos autos), na sequência do qual foi proferido o despacho judicial de fls. 87/88, que julgou ilegais as detenções desta mesma C. e de outro detido, mandando-os restituir à liberdade, bem como um terceiro detido, por insuficiência de indícios de autoria de qualquer ilícito. Apenas o recorrente e os outros três arguidos julgados neste processo foram mantidos em prisão preventiva.
A arguida C. esteve detida a partir das 10 horas e 35 minutos do dia 7 de Junho de 1990, só tendo sido presente ao juiz de instrução para o seu primeiro interrogatório às 19 horas e 05 minutos do dia seguinte (fls. 28 e 81 dos autos). Nesse interrogatório a mesma arguida declarou pretender procedimento criminal contra três agentes da Polícia Judiciária, invocando que os mesmos a teriam agredido e insultado durante o seu interrogatório (a fls. 82 dos autos). Transitou em julgado o despacho de fls.
87/88, que julgou ter sido ilegal e não válida a detenção dessa arguida, por não ter existido quanto a ela qualquer flagrante delito.
10. Nos dois recursos interpostos pelo arguido A. respeitantes aos depoimentos dos agentes da Polícia Judiciária, na parte em que relataram conversas por eles mantidas com a arguida C., discutiu-se a legalidade dos despachos de fls. 892 e 934: no primeiro, o tribunal colectivo entendeu que em nenhum lugar do processo se mostrara que a testemunha B. tivesse tomado declarações à arguida C., pelo que não seria aplicável o condicionalismo previsto no art. 356º, nº 7, do Código de Processo Penal; no segundo, foi considerado que a conversa mantida entre a C. e o agente D. caía 'na situação de depoimento indirecto relativamente ao qual a testemunha é obrigada a dizer com quem manteve tal conversa, o que foi feito', pelo que, não se encontrando presente em audiência tal pessoa e não havendo no momento do julgamento possibilidade de a fazer comparecer dada a sua contumácia e a pendência contra a mesma de mandatos de captura, as referências feitas pela testemunha seriam
'perfeitamente válidas nos termos da parte final do nº 1 do art. 129º do C.P.P.'. Neste segundo despacho, considerou-se ainda que, quanto à invocação pelo mandatário do ora recorrente da circunstância de não terem sido facultados a mesma cidadã C. 'os mais elementares direitos de defesa', não havia que tomar posição, por tal questão ter sido objecto de um despacho oportunamente proferido pelo Juiz de Instrução Criminal.
Do referido, resulta que constitui objecto do presente recurso a questão da constitucionalidade do nº 1 do art. 129º do Código de Processo Penal de 1987, no segmento aplicado nos autos. Como explicita o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, tal objecto incide sobre tal norma legal, enquanto a mesma 'admite que possa servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser encontrada, mesmo que esta pessoa seja um co-arguido e o depoente seja um agente de polícia judiciária que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro interrogatório judicial' (a fls. 2075 dos autos).
11. O art. 129º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP) encontra-se no Capítulo I, dedicado à prova testemunhal, do Título II do Livro III deste diploma.
Depois de, se indicar no art. 128º, nº 1, CPP, que a testemunha é inquirida 'sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova', o artigo seguinte regula o 'depoimento indirecto'.
Dispõe o nº 1 deste artigo:
'Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas'.
Na sequência deste preceito, o nº 2 do artigo manda aplicar o disposto no número anterior ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento da autoria de pessoa diversa da testemunha. E o nº 3 deste art. 129º estatui que não pode, em caso algum, 'servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos'.
O nº 1 do art. 130º CPP determina não ser admissível como depoimento a reprodução de vozes ou rumores públicos.
No Livro VII do Código de Processo Penal vigente, no capítulo respeitante à produção da prova, encontra-se o art. 348º, subordinado à epígrafe 'Inquirição das testemunhas', onde se estatui que '[à] produção da prova testemunhal na audiência são correspondentemente aplicáveis as disposições gerais sobre aquele meio de prova, em tudo o que não for contrariado pelo disposto neste capítulo'.
Neste mesmo capítulo do Livro VII, o art. 356º regula a matéria da leitura permitida em audiência de autos de declarações, dispondo o seu nº 7:
'Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas'.
Esta última norma foi, como se viu, invocada também pelo recorrente no requerimento sobre que recaiu o despacho de fls. 892, confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em análise.
12. Na tese sustentada pelo recorrente, o nº 1 do art. 129º CPP viola de forma clara o disposto nos nºs 1, 3 e 5 do art. 32º da Constituição. Transcrevem-se estes números:
'1. O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.
2. [...]
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que essa assistência é obrigatória.
4. [...]
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'.
Quer dizer, a admissão excepcional do depoimento indirecto - ao menos no caso dos autos, atenta a interpretação perfilhada pelo tribunal de primeira instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça na matéria - violaria o princípio de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa e seria contrária à estrutura acusatória prevista pelo texto constitucional para o processo criminal e à subordinação da audiência de julgamento ao princípio do contraditório. Para o recorrente, haveria ainda violação do princípio da plenitude de assistência do defensor escolhido pelo arguido, ao que se crê, na medida em que tal defensor não pudesse confrontar a
'pessoa determinada', invocada no depoimento indirecto, com o conteúdo do mesmo, durante o interrogatório por si feito em audiência de julgamento.
É altura, pois, de abordar a questão da legitimidade constitucional do depoimento indirecto das testemunhas de 'outiva' ou de 'ouvir dizer' no processo criminal.
13. Nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1976, Manuel da Costa Andrade teve ocasião de sustentar, em parecer jurídico por si subscrito, que o nº 5 do art. 32º da Constituição de
1976 teria tornado inconstitucional a permissão de testemunhos de ouvir dizer no processo penal: tal utilização e a respectiva valoração seriam sempre incompatíveis com um processo de estrutura acusatória, por serem contrários 'aos princípios da imediação e do contra-interrogatório na fase de julgamento'
(parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo 1º, pág.
11). Este criminalista considerava que o Código de Processo Penal de 1929 proibia a prova em audiência por testemunho de ouvir dizer, na medida em que este diploma só admitia expressamente tal testemunho na fase do 'corpo de delito' (art. 233º, preceito onde se distinguia a razão de ciência resultante do saber 'de vista' da do saber 'de ouvido') e estabelecia limites para os casos de chamada de novas testemunhas, em termos de que resultaria inequívoca a intenção normativa de não admitir os testemunhos de ouvir dizer. Fosse como fosse, a legislação ordinária teria de interpretar-se e de valer de harmonia com a Constituição, pelo que as dúvidas eventualmente existentes na matéria deviam ser resolvidas no sentido da proibição deste tipo de prova testemunhal.
Neste parecer, Costa Andrade referia que a regra de proibição do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule) surgira no direito inglês, constituindo ainda hoje uma pedra basilar do direito probatório dos sistemas jurídicos da família da common law. Não obstante a sua origem nesta família de direitos, a regra de exclusão em causa influenciara também certos direitos dos países da família romano-germânica, na terminologia bem conhecida de René David, de tal modo que se poderia afirmar que tal regra da hearsay evidence 'é uma característica de todos os processos de estrutura fundamentalmente acusatória, enquanto a sua admissibilidade é característica dos processos de fundo inquisitório. Pode, inversamente , concluir-se, sem perigo, da admissibilidade desta prova ou da sua exclusão pela natureza inquisitória ou democrática-acusatória de um ordenamento jurídico-processual (parecer e revista cits., pág. 6). Esta regra de exclusão vigorava praticamente sem limites nos direitos influenciados pelo direito inglês, bem como em outros ordenamentos - como o italiano a partir de 1912 - que 'procuraram soluções de equilíbrio entre o princípio acusatório e o principio inquisitório, assentes no privilégio ou primado do acusatório' (ibidem).
As razões justificativas da incompatibilidade frontal entre um processo acusatório e os testemunhos de ouvir dizer seriam numerosas: '[p]ara além de razões de índole formal - v.g. a impossibilidade de obter o juramento [...] da pessoa concreta ou da entidade abstracta a que se reporta a testemunha que ouviu dizer - e para além duma razão última de fundo que releva da própria essência dum processo dum Estado democrático, incompatível com situações kafkianas e inquisitoriais [...] de não se saber quem diz, o que diz e porque o diz, há que trazer à colação razões que relevam directamente da própria essência do princípio do acusatório, nomeadamente a possibilidade de contra-interrogatório das testemunhas (cross-examination) e o chamado princípio da imediação' (ibidem). No direito penal vigente, existiria, assim, uma proibição de prova. A utilização do testemunho de ouvir dizer, em violação da Constituição e do Código de Processo Penal, e a sua valoração implicariam a nulidade processual, a qual se comunicaria 'a toda a prova obtida por força da livre convicção do juiz. Devia, assim, por força do artigo 100º do Código de Processo Penal, anular-se o julgamento' (parecer e revista citados, pág. 11).
14. A tese da exclusão do testemunho de ouvir dizer como decorrência da estrutura do processo penal de natureza acusatória, prescrita na Constituição portuguesa, influenciou os trabalhos preparatórios do Código de Processo Penal publicado em 1988.
Como refere nas suas alegações o Exmo Procurador Geral-Adjunto, o Anteprojecto de Maia Gonçalves, publicado em 1983, mantinha no seu art. 161º norma idêntica à do art. 233º do Código de Processo Penal de 1929, mas tal orientação foi abandonada no Projecto publicado em 1986, elaborado pela Comissão presidida pelo Prof. Figueiredo Dias. Neste Projecto, o seu art. 129º acolhia a orientação que se acha hoje consagrada na norma que constitui objecto do presente recurso.
Tal significa que, em 1986, a Comissão responsável pelo Projecto não excluiu de forma absoluta a possibilidade do testemunho de ouvir dizer, admitindo-a em casos contados, para além da situação
óbvia de a pessoa determinada, invocada em anterior depoimento de terceiros, confirmar este último: tal testemunho indirecto serviria de meio de prova quando as pessoas indicadas não pudessem depor, elas próprias, em virtude de morte, anomalia psíquica ou impossibilidade de serem encontradas. A utilização e valoração do testemunho de ouvir dizer ilegalmente produzido não acarretariam, em todo o caso, a nulidade do processo (art. 126º, a contrario sensu).
Esta orientação reflecte, de algum modo, o entendimento de Figueiredo Dias, expresso em 1983, de que haveria uma diferença qualitativa entre as situações em que estava em causa o princípio da dignidade do homem e da sua intocabilidade e aquelas em que apenas se tratava de ter em conta 'interesses individuais que não contendem directamente com a dignidade da pessoa'. Nas situações do primeiro tipo, nenhuma transacção seria possível. Isso explicaria, por exemplo, o consenso generalizado de que a utilização da tortura para obter a confissão de um arguido configura uma autêntica proibição de prova, justificando as doutrinas de que a ilicitude do meio utilizado inutilizaria todo e qualquer valor probatório do resultado obtido e implicaria uma nulidade do processo (doutrina germânica da chamada Fernwirkung des Beweisverbots ou doutrina americana de fruit of the poisonous tree). Nas situações do segundo tipo, o grau de gravidade seria menos relevante e daí que as consequências não tivessem de ser inevitavelmente inutilizadoras de toda a actividade probatória. Exemplificando este último ponto, escreveu Figueiredo Dias:
'No exemplo de há pouco, se a proibição de (valoração) da prova se não prende com a garantia da dignidade da pessoa (como, v.g., no caso de proibição do testemunho de ouvir dizer [...]), já poderá eventualmente vir a reconhecer-se a admissibilidade de provas consequenciais à violação daquela proibição.
Problema é determinar, com precisão, a finalidade e o critério com que a limitação deve ser feita. A finalidade só pode ser a de ordenar reciprocamente relações da vida protegidas através da concessão de concretos direitos da liberdade, e de conjugá-las com outras relações também juridicamente protegidas, por essenciais à vida comunitária; e de as conjugar em termos de criação e conservação de uma ordem na qual umas e outras ganhem realidade e consistência. Com razão fala K. Hesse, a análogo propósito [...], da tarefa de construção de uma concordância prática de valores conflituantes.' (Para uma Reforma Global do Processo Penal - Da sua Necessidade e de algumas Orientações Fundamentais, in Para uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, pág. 208-209).
Na sequência do disposto nos Grandes Princípios Orientadores da Elaboração do Projecto do Código de Processo Penal, da autoria da respectiva Comissão e apresentados em 1984 ao Ministério da Justiça (nº 24 -
'proibição, em princípio, do testemunho que não verse sobre factos concretos e de conhecimento directo, em particular do testemunho de «ouvir dizer»; consagração do privilégio de não auto-incriminação' - texto in Jornadas de Processo Penal, Cadernos da Revista do Ministério Público, nº 2, 1987, pág. 332; sobre o disposto nos arts. 129º e 130º do Projecto, veja-se, na mesma obra, Marques Ferreira, Julgamento e sentença, pág. 137), a lei de autorização legislativa respeitante ao novo Código de Processo Penal (Lei nº 43/86, de 26 de Setembro) fixou o sentido e extensão de tal autorização na matéria de testemunho de ouvir dizer, nos seguintes termos:
'Abolição de diferença estatutária entre testemunhas e declarantes e proibição, em princípio, do testemunho que não verse sobre factos concretos e de conhecimento directo, em particular do testemunho de «ouvir dizer»; consagração do privilégio de não auto-incriminação'. (art. 2º, nº 2, 23); na anterior alínea 22) estabeleceu-se como sentido da autorização a '[d]isciplina rigorosa da matéria respeitante às nulidades, aos vícios dos actos processuais e à sua sanação, com especial atenção às consequências da violação de proibição de prova e à determinação dos seus efeitos sobre a validade do processo; não incidência, em princípio, de vícios meramente formais dos actos na validade do processo, mas insanabilidade das nulidades absolutas').
Pode dizer-se que foi esta, nas suas grandes linhas, a génese do art. 129º, nº 1, do Código de Processo Penal de 1987.
15. O art. 129º, nº 1, CPP contém, assim, uma proibição não absoluta do depoimento testemunhal indirecto, ou seja, também do testemunho de ouvir dizer.
A violação desta proibição não parece, porém, contaminar ou envenenar toda a prova subsequente, não se achando acolhidas no actual direito português a falada doutrina da eficácia longínqua ou do efeito à distância (Fernwirkung) ou a doutrina do fruto da árvore envenenada (the fruit of the poisonous tree). Escreve, hoje, Costa Andrade:
'Nada, com efeito, parece justificar que a proibição de valoração que inquine o testemunho-de-ouvir-dizer tenha também de precludir a valoração das provas que ele tenha tornado possíveis.
O efeito-à-distância transcende claramente o fim de protecção das normas do direito processual português que prescrevem a proibição do testemunho-de-ouvir-dizer. E que obedecem fundamentalmente a exigências próprias dos princípios de imediação, de igualdade de armas e da regra de cross-examination. Tudo exigências cuja satisfação integral pode perfeitamente compaginar-se com a utilização processual das provas mediatamente produzidas pelo testemunho-de-ouvir-dizer. Não subsistindo, assim e em síntese conclusiva, argumentos pertinentes e susceptíveis de contrariar as razões de economia processual, verdade e justiça material, a reivindicarem a valoração destes meios imediatos de prova' (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra,
1992, págs. 316-317; o autor indica em nota que, 'à luz do direito vigente, maxime do artigo 129º do CPP, não cremos, assim, que possa sustentar-se o entendimento contrário, por nós advogado na vigência do anterior Código de Processo Penal [...]')
Comentando a regra do art. 129º, nº 1, CPP, Germano Marques da Silva considera que '[a] proibição do testemunho de ouvir dizer é, por outro lado, reforçada pela norma constante do art. 356º, nº 7: proibição de testemunho sobre o conteúdo de declarações recolhidas no inquérito ou na instrução e cuja leitura não seja permitida em audiência' (Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, pág. 133; mais à frente, o mesmo autor afirma que os 'órgãos de polícia criminal podem testemunhar sobre todos os factos de que tenham conhecimento directo, só não podendo ser objecto do seu depoimento os conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ser reduzidos a auto e não foram, sendo a leitura desse auto também proibida' - pág. 140).
Igualmente Marques Ferreira sustenta que a ilegal admissão do testemunho indirecto no novo Código de Processo Penal acarreta a nulidade do mesmo, impedindo a sua valoração pelo tribunal, embora não aceite 'a transmissão do vício às demais provas licitamente obtidas, porventura na mesma ocasião, só pelo facto de a avaliação destas em processo penal depender do livre convencimento do tribunal e este ser indivisível' (Meios de Prova, in Jornadas de Direito Processual Penal - O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pág. 236; este autor põe em destaque a importância do controle da motivação obrigatória da decisão de facto na primeira instância para verificar até que ponto as provas ilicitamente admitidas influenciaram a convicção formada).
16. Antes ainda de encarar a questão de constitucionalidade sub judicio, importa fazer uma breve alusão à génese da regra de exclusão do testemunho de ouvir dizer (hearsay rule) nos direitos da common law e à sua evolução subsequente, que permitiu a influência exercida sobre direitos de família romano-germânica.
A proibição da hearsay evidence surgiu por influência jurisprudencial no direito inglês, num sistema em que desde o século XIII se institucionalizou o julgamento da matéria de facto em processos cíveis e criminais por um júri composto de pessoas sem formação jurídica. Os tribunais preocuparam-se desde cedo em assegurar que a prova genuina fosse directamente produzida perante o júri, de modo a que a convicção formada pelos jurados acerca da realidade dos factos em discussão não fosse distorcida nem afectada pelo distanciamento entre o meio probatório e os factos probandos. Assim, desde cedo se defendeu que o direito probatório estava penetrado por uma ideia de 'melhor prova' (the best evidence rule), É, por isso, que, em matéria documental, autor ou réu não devem ser autorizados a utilizar uma cópia de um documento, a menos que demonstrem que não podem ter acesso ao original. Talvez a partir desta regra, tenha surgido a regra de exclusão do depoimento indirecto (hearsay). Parece claro que, se o pretendido fosse fazer prova de uma afirmação feita por uma pessoa, não com a finalidade de provar tão-somente que tal pessoa fez essa afirmação, mas antes para provar a verdade dos factos constantes da afirmação imputada a essa pessoa, não presente na audiência de julgamento, tal não poderia ser permitido. Tratar-se-ia de uma prova em segunda mão, mais facilmente manipulável. Em 1811, um conhecido juiz inglês, Lorde Mansfield, sintetizava a finalidade da regra de exclusão da hearsay evidence deste modo: 'em Inglaterra, onde o júri é o único juiz dos factos, a prova de ouvir dizer é excluída de forma apropriada porque ninguém pode dizer qual o efeito que poderia ter sobre os seus espíritos [dos jurados]'. (referido em Alessandro Giuliano, voc. Prova
(Filosofia), in Enciclopedia del Diritto, vol. XXXVII, 1988, pág. 548, nota
114). No direito inglês, o direito da prova distingue uma regra geral de admissão dos meios probatórios que permitam, de forma mais ou menos provável, conseguir que o facto probando seja demonstrado como existente, regras de exclusão da admissibilidade de meios probatórios, por quanto a eles haver sólidos fundamentos que permitam considerá-los 'irrelevantes' ou 'logicamente não probatórios' e ainda regras de extensão probatória: '[o] direito da prova
[inglês], por isso, descontada a primeira regra de admissibilidade de prova relevante, engloba dois conjuntos de regras, os que excluem prova logicamente probatória, e os que permitem a produção de prova que não é em si logicamente probatória. Há excepções a estas regras de exclusão e de inclusão, que têm de ser levadas em conta, e assim se edifica o direito da prova' (Richard Eggleston, Evidence, Proof and Probability, Londres, 1978, pág. 43). A regra de exclusão de hearsay comporta excepções, nomeadamente a admissibilidade da referência indirecta a afirmações de pessoas falecidas, incluindo afirmações produzidas nos momentos que antecederam a morte, a afirmações constantes de documentos escritos, a afirmações de terceiros em casos em que o arguido admite a veracidade do facto ou o confessa, a afirmações que fazem parte da transacção, evento ou incidente (res gestae) que é objecto do processo, e ainda a excepções admitidas por legislação especial.
A originalidade e complexidade do direito probatório inglês dificultaram a sua influência fora do mundo da common law. Nos Estados Unidos da América, a law of evidence desenvolveu-se de forma autónoma, nomeadamente porque a proibição da hearsay evidence é tida como decorrendo da própria Constituição federal (incriminação da traição na secção 3ª do Artigo III; regra sobre a garantia de confronto e contra-interrogatório das testemunhas de acusação consagrada no Sexto Aditamento.)
Mas importa acentuar que esta regra de exclusão tem sido objecto de críticas desde a publicação do Rationale of Judicial Evidence de Bentham, autor que, tendo embora admitido que o 'ouvir dizer' fosse em muitos casos inferior ao testemunho oral directo, acreditava que a exclusão do mesmo só deveria ocorrer quando fosse possível dispor de prova oral superior:
'ele sustentava que a exclusão do hearsay que constituísse a melhor prova disponível era susceptível de levar a conclusões fácticas mais sujeitas a erro do que a sua admissão. A correcção deste ponto de vista acerca do equilíbrio da utilidade forma ainda o núcleo do debate sobre o hearsay' (A.A. S. Zuckermann, The Principles of Criminal Evidence, Oxford, 1989, pág. 215; este autor afirma também que o debate sobre as vantagens e desvantagens da regra da exclusão levou a um compromisso no direito anglo-americano, caracterizado pela combinação '[d]a proibição de hearsay com as excepções da common law, as excepções de direito legislado, com o espírito inventivo dos juízes e com uma real ou pretensa ignorância acerca das consequências mais desagradáveis da regra de hearsay)
Pode, por isso, dizer-se que nas últimas décadas do nosso século tem sido limitada, quer no Reino Unido, quer nos Estados Unidos, a extensão da regra da exclusão de hearsay. Muitos especialistas em matéria de direito probatório sustentam que a regulamentação legal e jurisprudencial tem de ser mudada, levando-se até à última consequência lógica a estratégia judicial norte-americana de chamada 'excepção residual': a prova através de hearsay deveria passar a ser admitida quando, para além do peso suficientemente probatório dessa prova, se verificassem mais duas condições: 'primeiro, quando o autor da afirmação estiver disponível, devia ser convocado como testemunha
[...]; segundo, devia dar-se conhecimento à parte contrária da intenção de produzir prova de ouvir dizer, de forma a que a parte contrária possa dispor de tempo para preparar oposição contra a sua recepção' (A.A.S. Zuckermann, ob. cit., pág. 217).
Costa Andrade mostrou por seu turno, ao proceder
à comparação do direito português com os direitos norte-americano e alemão, que, nos Estados Unidos da América, o principio jurisprudencial de que 'hearsay is no evidence' ('ouvir dizer não constitui prova') acaba por ser fortemente restringido pelas excepções a esta exclusionary rule:
'As excepções, apesar de tudo, reconhecidas à proibição da hearsay evidence acabam, todavia, por minar de dificuldades a tarefa do intérprete e aplicador do direito às expressões concretas da vida. Dificuldades agravadas por duas ordens complementares de razões.
Em primeiro lugar, as excepções admitidas estão longe de se reportar invariavelmente a constelações típicas claramente recortadas e, por isso, de emergir como enunciados de teor normativo determinado. Como de algum modo sucede com a excepção relativa às chamadas dying declarations: por força dela podem ser trazidas a tribunal através de testemunhas-de-ouvir-dizer as declarações da vítima de uma agressão letal, produzidas antes da morte e na iminência, expectativa ou receio da sua ocorrência. A esta luz, é possível valorar o depoimento de uma testemunha que declara perante o tribunal que um dia antes do facto a vítima lhe confessou que andava com medo que o acusado a viesse a agredir. Na maioria dos casos as excepções assumem a natureza de cláusulas gerais que remetem para a court's sound discretion e induzem margens invencíveis de insegurança. Como sucede com o dispositivo consagrado na codificação elaborada pelo Congresso em 1975 e que abre a porta à hearsay evidence, sempre que subsistam equivalent circunstancial guarantees of trustworthiness [...]. Ou ainda quando a generalidade dos tribunais dispensa a indicação da identidade e morada de um informador da polícia, em nome de um reasonable fear de atentado contra a vida ou integridade física do informador ou dos seus familiares.
Acresce, em segundo lugar, a circunstância de este ser um domínio onde com grande frequência se projectam as opções centrífugas dos estados federados.' (Sobre as Proibições cit., págs. 162-163)
17. A doutrina anglo-americana da hearsay rule influenciou fortemente a doutrina alemã, após a segunda guerra mundial. A reelaboração da doutrina das proibições de prova após a entrada em vigor da Lei Fundamental de 1949 - incluindo as proibições de utilização de certos meios de prova e as proibições de valoração das provas produzidas - levou a uma aprofundada discussão sobre a admissibilidade da proibição de depoimentos indirectos (cfr. o parecer de 1979 de Costa Andrade e, recentemente, a sua obra Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, págs. 163 e segs.), tendo em anos mais recentes passado a ser predominante a orientação jurisprudencial, vivamente criticada, de que as testemunhas de outiva são admissíveis, nomeadamente quando se trate de depoimentos que incidem sobre afirmações de pessoas já falecidas ou ausentes em lugar desconhecido, ou que incidem sobre depoimentos prestados por agentes policiais que reproduzem depoimentos de agentes de confiança infiltrados em organizações criminosas e em que a não presença destes no julgamento resulta da decisão das autoridades com competência em matéria policial (sobre este último caso, cfr. Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, 20ª ed., Munique, 1987, págs. 288-289; Costa Andrade, Sobre as Proibições, págs 163-169. Em ambas as obras se dá conta da enorme controvérsia sobre a produção de testemunhos de ouvir dizer respeitantes a afirmações feitas a órgãos policiais de informadores infiltrados em organizações criminosas e que são mantidos no anonimato; veja-se ainda Karl-Heinz Gössel, As Proibições de Prova no Direito Processual Penal da República Federal da Alemanha, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, 1992, nº 30, págs. 418 e segs.).
No recente Código de Processo Penal italiano, de
1988, a proibição-regra de depoimentos indirectos foi consagrada em termos semelhantes aos acolhidos no direito português. De harmonia com o art. 195º daquele Código, a invocação pela testemunha, como razão de ciência, do depoimento de outras pessoas, leva a que o juiz, oficiosamente ou a requerimento das partes, ordene que essa pessoa determinada seja chamada a depor. A inobservância desse dever de convocação 'torna inutilizáveis as declarações relativas aos factos de que a testemunha tenha tido conhecimento por outras pessoas, salvo se a inquirição destas se tornar impossível por morte, enfermidade ou impossibilidade de serem encontradas' (nº 3 deste artigo) . O nº
4 do art. 195º CPP italiano de 1988 estatui ainda que 'os funcionários e os agentes de polícia judiciária não podem depor sobre o conteúdo das declarações obtidas das testemunhas' (o art. 62º do mesmo código estabelece uma proibição geral de prestação de depoimentos respeitantes a declarações feitas pelo arguido ou pela pessoa sujeita a investigação, no decurso do processo).
No actual direito italiano, como sucedia na vigência do precedente código - e como também sucede no direito português (cfr. art. 129º, nº 3, CPP) - 'não pode ser utilizado o testemunho de quem se recusa ou não esteja em condições de indicar a pessoa ou fonte através das quais tenha obtido conhecimento dos factos objecto de inquirição' (nº 7 do art. 195º). Desta norma 'deriva o tradicional corolário representado pela proibição de aquisição e de utilização das informações provenientes de informadores confidenciais relativamente aos quais os órgãos de polícia e dos serviços de segurança não hajam revelado os nomes, estando expressamente autorizados a omiti-los (art.
203º)'. (Giovanni Conso, Vittorio Grevi e outros, Profili del nuovo Codice di Procedura Penale, Pádua, 1990, pág. 162).
18. Atingido este ponto, importa determinar se o nº 1 do art. 129º do Código de Processo Penal de 1988, no segmento considerado,
é susceptível de violar as garantias do processo criminal previstas no art. 32º, nºs 1, 3 e 5, da Constituição, como sustenta o recorrente.
Considera-se que, de um modo geral, a admissão e valoração do depoimento indirecto sobre o que se ouviu dizer a pessoas determinadas, cuja inquirição não seja possível por 'impossibilidade de serem encontradas', não viola tais garantias.
Pode afastar-se liminarmente o nº 3 do art. 32º da Constituição como parâmetro constitucional a ter em conta. É manifesto que a aplicação da excepção da parte final do nº 1 do art. 129º CPP não retira ao arguido o direito de escolher o seu defensor oficioso e a ser por ele assistido em todos os actos do processo. Crê-se que o recorrente pretende com a invocação deste número do art. 32º afirmar que o seu defensor não pôde inquirir a co-arguida C., por ela estar ausente em lugar desconhecido, tendo-se limitado a ouvir o depoimento indirecto prestado pelos dois agentes da Polícia Judiciária. Mas a admissão do depoimento indirecto só remotamente e de forma acidental poderia pôr em causa tal garantia. A verdade é que o defensor do arguido teve a possibilidade de inquirir os referidos agentes, durante a audiência de julgamento.
Importa, por isso, confrontar este segmento da norma com os nºs 1 e5 do referido art. 32º da Lei Fundamental.
O nº 1 deste art. 32º é, no dizer de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, 'uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo', funcionando como uma cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal'. (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202).
Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do art. 129º CPP se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nas suas alegações já antes citadas, sustenta afigurar-se-lhe que:
'...essa concordância prática [acabara de ser citado Figueiredo Dias acerca das finalidades de carácter irremediavelmente autónomo e antitético que se confrontam no processo penal, cuja impossibilidade de harmonização integral implica que o seu remédio se encontre «numa tarefa - infinitamente penosa e delicada - de operar a concordância prática das finalidades em conflito»] foi perseguida e alcançada na norma em apreciação [nº 1 do art. 129º CPP]. Não estando em causa a intocável dignidade da pessoa humana, não se justificava uma proibição absoluta de produção e de valoração [d]o testemunho de ouvir dizer, sendo consentidas limitações à regra dessa proibição desde que dotadas de razoabilidade, como no caso acontece. Com isso não se põem em causa, como acabou por reconhecer COSTA ANDRADE, os «princípios de imediação, de igualdade de armas e [a] regra da cross-examination», tendo por objecto, obviamente, a prova mediata produzida. E sendo sempre certo que tal prova, como qualquer outra, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal
(artigo 127º).
Com este entendimento e rodeada destas cautelas, não se pode afirmar que a possibilidade de valoração do depoimento indirecto, no caso de impossibilidade de ser encontrada a pessoa a quem a testemunha ouviu dizer, admitida pelo artigo
129º, nº 1, do Código de Processo Penal, viola as garantias de defesa e seja, por isso, inconstitucional'. (a fls. 2114 dos autos).
Aceita-se plenamente este entendimento.
Tão-pouco se pode afirmar que a estrutura acusatória do processo criminal, que impõe que a audiência de julgamento e mesmo os actos instrutórios determinados por lei estejam subordinados ao princípio do contraditório, ponha em causa a regulamentação do segmento da norma em causa. A lei processual penal veda, em princípio, a admissibilidade do testemunho de ouvir dizer, impondo que seja chamada a depor a pessoa determinada invocada no testemunho prestado, assegurando-se a imediação, relativamente ao tribunal criminal e aos sujeitos processuais.
Só nos casos de tal impossibilidade - em virtude de morte, anomalia psíquica superveniente ou de impossibilidade de ser encontrada - pode ser admitido e valorado o depoimento indirecto. E, como já Bentham sustentou no início do século XIX, na falta de prova de superior qualidade, o testemunho de ouvir dizer pode revelar-se um modo válido de descoberta da verdade, sujeito sempre à apreciação do tribunal segundo as regras de experiência, tendo em conta o princípio legal da livre convicção do tribunal.
No que toca à alegada violação do princípio do contraditório - princípio complexo que comporta, na vertente respeitante ao arguido, o direito 'de intervir no processo e de se pronunciar e contradizer todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo' (G. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág.
206) - sempre se dirá que o arguido poderá inquirir a testemunha que refere o depoimento de outra pessoa e requerer que seja convocada a depor esta última. A lei processual não veda, porém, a admissão e valoração do depoimento indirecto, no caso de impossibilidade de localização da pessoa determinada a quem imputa a afirmação reproduzida. Trata-se de uma solução excepcional, de evidente base racional, que só por si, e nos contados casos em que ocorre, não pode afectar intolerável ou desproporcionadamente os direitos do arguido, como atrás houve ocasião de referir.
19. Poder-se-á, assim, concluir que o recurso não merece provimento?
A resposta afirmativa seria precipitada.
Na verdade, na aplicação ao caso sub judicio, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou o segmento final do nº 1 do art. 129º CPP de forma extensiva, de modo a permitir que agentes de polícia criminal fossem admitidos a depor sobre as conversas que tivessem tido com uma co-arguida do recorrente, durante o período em que se achou detida, mas antes de ser presente ao juiz de instrução criminal, sucedendo mesmo que tal detenção veio a ser julgada ilegal, do mesmo passo que essa co-arguida se queixou de ter sido seviciada e injuriada por três agentes da Polícia Judiciária, durante esse período de detenção.
De um ponto de vista sistemático, já se viu que o nº 7 do art. 356º CPP veda que órgãos de polícia criminal, que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida (e a leitura das declarações prestadas pela arguida C. não seria permitida, salvo se verificado o condicionalismo do art. 357º, nº 1, do mesmo diploma), possam ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas. E já se viu, igualmente, que, a propósito do depoimento indirecto, o Código de Processo Penal italiano de 1988 veda que os agentes de polícia judiciária possam depor sobre o conteúdo de declarações obtidas das testemunhas, em norma incluída no artigo consagrado ao depoimento indirecto.
Entende-se, por isso, que no acórdão recorrido o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma interpretação da parte final do nº 1 do art. 129º CPP que é contrária ao disposto no nº 1 do art. 32º da Constituição, norma que impõe que ao arguido sejam asseguradas todas as garantias de defesa. Na ausência em local desconhecido da co-arguida C., o Supremo Tribunal de Justiça admitiu que os agentes da Polícia Judiciária, que a interrogaram durante a sua detenção, relatassem na audiência de julgamento as conversas que teriam tido com essa co-arguida.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto demonstra que, no caso sub judicio, a interpretação da norma do art. 129º, nº 1, CPP feita no acórdão recorrido se revela contrária à Constituição. Na verdade, a co-arguida C. só podia ser interrogada pela primeira vez pelo juiz de instrução, não podendo os órgãos de polícia criminal tomar declarações dela, visto que tal só poderia suceder nos interrogatórios subsequentes e mediante delegação do Ministério Público ou daquele juiz (art. 144º, nº 2, CPP), sendo proibidos quaisquer outros interrogatórios, ainda que designados como 'conversas'. Escreve-se nestas alegações:
'O artigo 356º, nº 7 [CPP], proíbe que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida sejam inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo dessas declarações. Ora, se isto é assim quanto a declarações licitamente colhidas pelos órgãos de polícia criminal mas cuja leitura é proibida nos termos dos nºs 1 a 6 do artigo 356º e do nº 1 do artigo 357º do mesmo Código, não faria sentido que, pela via do artigo 129º nº
1, se tolerasse o que pelo artigo 356º, nº 7, explicitamente se proibiu. Sendo, como é, insubsistente o argumento de que, no caso, não figuram no processo quaisquer declarações prestadas pela co-arguida perante os agentes da Polícia Judiciária: tais declarações não figuram porque, apesar de terem sido obtidas, eram absolutamente proibidas [...].
[...] As decisões das instâncias fizeram não apenas uma interpretação contra legem daquele preceito, mas também uma interpretação inconstitucional, violadora das garantias de defesa, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição. Na verdade, ao admitir-se o depoimento de órgãos de polícia criminal produzindo declarações ilegalmente obtidas de co-arguido preso, está a permitir-se não só a produção mas também a valoração de um meio de prova cuja proibição visara acautelar aquelas garantias de defesa.' (a fls. 2116-2117 dos autos)
Há, assim, que dar provimento ao presente recurso.
III
20. Nos termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso de constitucionalidade, julgando inconstitucional a norma do nº 1, parte final, do art. 129º do Código de Processo Penal, enquanto interpretada pelo acórdão recorrido no sentido de admitir que possa servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser encontrada, mesmo que esta pessoa seja um co-arguido e o depoente seja um agente de polícia judiciária que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro interrogatório judicial, devendo, em consequência, ser reformado esse acórdão de harmonia com o julgamento em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida (com declaração de voto)
Admitindo que, a conhecer-se da questão de constitucionalidade, não se me suscitam grandes dúvidas quanto ao essencial da estrutura argumentativa do acórdão a que respeita a presente declaração, todavia, não posso deixar de me afastar da premissa em que assenta a decisão tomada no que se refere à aplicação no acórdão recorrido da norma cuja conformidade constitucional vem questionada.
Com efeito, entendo que na decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Outubro de 1992, no aspecto que agora interessa considerar, não foi efectivamente aplicada a norma do artigo 129º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal, na dimensão ou segmento que se veio a julgar inconstitucional.
Na verdade, escreve-se no referido acórdão, na parte decisória relativa à questão dos autos, o seguinte:
'A C. prestou a informação que consta do relatório de fls. 54 e que se transcreveu a fls. 8 verso. Esta informação foi determinante para a deslocação ao local onde foi encontrada a mala contendo a heroína. Não estava a testemunha,
órgão de polícia criminal, impedida de dizer na audiência quem prestou a informação. Não se trata de uma prova por declarações, ou seja, não foi em virtude da informação da C., reproduzida pela testemunha na audiência, que o Tribunal deu como provada a existência dessa mala, o seu conteúdo, e quem detinha a droga. A prova destes factos resultou dos depoimentos prestados na audiência quer por razões de polícia criminal, quer por outras testemunhas que levaram o Tribunal à convicção de que a droga que foi apreendida na arrecadação estava na posse do recorrente que a destinava a terceiros. O nº 7 do art. 356º do C.P.P. relaciona-se com o direito ao silêncio do arguido. Compreende-se que as declarações que prestou respeitantes ao objecto do processo não possam servir de meio de prova no julgamento através da sua leitura, quando não permitida, ou mediante depoimentos indirectos. A informação da C. traduziu-se em auxílio à recolha de provas para identificação de outros responsáveis, não tendo aplicação ao caso as disposições legais que o recorrente invoca.'
Desta transcrição resulta com clareza mediana que a norma do artigo 129º, nº 1, na interpretação violadora na Constituição que lhe foi apontada - no sentido de que pode servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser encontrada, mesmo que esta pessoa seja um co-arguido e o depoente seja um agente de polícia judiciária que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro interrogatório judicial, - não foi aplicada na decisão recorrida.
Só assim se pode entender a conclusão do acórdão afirmando claramente 'não tendo aplicação ao caso as disposições legais que o recorrente invoca'.
Assim, sendo, como parece que é, não se deveria tomar conhecimento do recurso, por falta dos pressupostos legais - a aplicação da disposição legal questionada como fundamento normativo da decisão recorrida -.
Vítor Nunes de Almeida
Luís Nunes de Almeida