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Proc. nº 6/91
1ª Secção Rel.: Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por despacho de 19 de Abril de 1985 do juíz do 3º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa A., B. e C. foram pronunciados por factos ocorridos entre finais de 1974 e finais de 1979, os dois primeiros como co-autores materiais, em concurso, de um crime de associação criminosa (previsto e punível, à data dos factos, pelo artigo 263º do Código Penal de 1886, e actualmente pelo artigo
287º, nº 1, do Código Penal de 1982 ) e de vinte e dois crimes de auxílio à emigração clandestina e ilegal ( previstos e puníveis pelo artigo 3º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969 ) e os primeiro e terceiro como co-autores materiais de um crime de falsificação de documentos ( previsto e punível, à data dos factos, pelo artigo 216º, nº 5, do Código Penal de 1886, e actualmente pelo artigo 228º, nºs 1, alínea c), 2 e 3, do Código Penal de 1982 ).
O procedimento criminal foi considerado extinto por prescrição quanto ao crime de falsificação, tendo os autos prosseguido quanto aos crimes de associação criminosa e de auxílio à emigração clandestina. Por despacho de 13 de Dezembro de 1990, o juiz do 3º Juízo Criminal de Lisboa determinou o seu arquivamento, com a seguinte fundamentação:
' A) - Quanto aos delitos de auxílio à emigração clandestina - do artigo 3º, nº 1, alínea b) do Decreto nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969 - Sua descriminalização:
1. De acordo com os artigos 29º, nºs 1 e 4, da Constituição e 2º, nº
2, do Código Penal de 1982 - princípio da legalidade:
Na verdade, 'o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções...'- cfr. artigo 2º, nº 2, do Código Penal de 1982.
2. Ora, acontece que os crimes do artigo 3º do Decreto nº 49.400 - auxílio à emigração clandestina - deixaram de constituir delitos ou crimes, na medida em que a Lei Fundamental do País - a Constituição da República Portuguesa ( logo na redacção original de 1976 ), seu artigo 44º, nº 2, consagrou : ' A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar.'
3. E tal direito de emigração é imposto pela Constituição, sem restrições - a não ser as que advêm da lei processual penal ( artigos 27º a 33º, vide seu artigo 18º v.g. interdição de saída do país, como medida de liberdade provisória de arguidos em processo penal ).
4. A Constituição, nestes termos, terá provocado a 'descriminalização' quer do crime de emigração clandestina quer do de auxílio a ela - previstos no citado Decreto nº 49.400 - já que de mero exercício de um direito fundamental ou auxílio a tal exercício se passou.
A 'lei nova' aqui - Constituição - impõe-se, aliás, ao Código Penal, que se tem de reger por aqueles princípios fundamentais. Deixou de existir tal crime.
B) Por outro lado, os factos assentes no despacho de pronúncia ( os subsistentes - fora o crime de falsificação, prescrito ), não integram os requisitos da prática pelos réus de qualquer outro delito, v.g. o do crime de burla - cfr. artigos 313º e 314º do Código Penal de 1982.
Em suma: a procederem em julgamento, não poderiam levar à condenação dos primeiro e segundo réus pelo crime de burla - cfr. artigos 446º a 448º do Código de Processo Penal de 1929, mormente seu artigo 447º.
C) Quanto ao aludido crime de associação criminosa:
Este delito está descrito, melhor, baseado em factos em que, sucintamente, os arguidos A. e B. organizadamente planearam proceder à emigração clandestina de cidadãos portugueses para a Austrália e Venezuela. Quer dizer, o seu fim criminoso (dessa organização criminosa) era a prática de crimes de auxílio à emigração clandestina.
Mas, como vimos ( em A) ), deixaram de existir como crimes, desde 2 de Abril de 1976 ( entrada em vigor da Constituição ) os de auxílio à emigração.
Quer dizer: não subsiste, também desde 1976, o imputado crime de associação criminosa, desde que com tal finalidade ou suporte.
CONCLUSÕES:
1ª) Nos termos dos artigos 29º, nºs 1 e 4, e 44º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e 2º, nº 2, do Código Penal, deixaram de ser crimes, desde a entrada em vigor daquela Lei Fundamental, os delitos previstos e punidos pelo artigo 3º, nº 1, do Decreto nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969 ( auxílio à emigração clandestina );
2ª) Os factos subsistentes no despacho de pronúncia (Nota - crime de falsificação já foi prescrito - fls. 572 verso ) - não podem vir a conduzir à condenação por qualquer delito - v.g. crime de burla - ainda que se provem na totalidade - cf. artigos 446º a 448º do Código de Processo Penal de 1929 e 313º e 314º do Código Penal de 1982. Não contêm os requisitos objectivos e subjectivos da prática de crimes de burla, nomeadamente faltam os meios astuciosos e/ou engano de outrem (v.g. emigrantes dos autos );
3ª) E não podem, nomeadamente, tais factos integrar o crime de associação criminosa - do artigo 263º do Código Penal de 1982 - já que o fim criminoso imputado aí ( na pronúncia dos autos ) aos réus ( primeiro e segundo ) era o de auxílio à emigração clandestina e esta deixou de ser crime ' a se ' - como acima ( 1ª e 2ª conclusões).'
2. Deste despacho interpôs recurso obrigatório de constitucionalidade o Ministério Público, tendo em vista a desaplicação feita da norma da alínea b) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969, referida à alínea b) do nº 1 do artigo 2º do mesmo diploma, ou seja, a norma que manda punir com prisão maior de dois a oito anos aquele que receber quantia ou outro valor igual ou superior a 5.000$00 em pagamento ou recompensa do auxílio à saída do país sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais de nacionais que pretendam fixar-se em país estrangeiro, permanente ou temporariamente, ainda que a saída não venha a verificar-se.
3. Fixado prazo para alegações, o representante do Ministério Público neste Tribunal pronunciou-se no sentido da constitucionalidade da norma impugnada, o que fez, no essencial pelas razões que seguidamente se sumariam.
Em primeiro lugar, o Ministério Público entende que o diploma em causa
( o Decreto-Lei nº 49.400 ) se encontra ainda em vigor, invocando a doutrina defendida por autores de diversos Códigos Penais anotados ( anotações ao artigo
351º de Maia Gonçalves, Leal Henriques/Simas Santos e Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto ), bem como a posição definida pelo Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Novembro de 1988, de que juntou cópia, que se pronunciou pela vigência do regime em causa.
Quanto ao fundo da questão suscitada, o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, na esteira dos escritos de Gomes Canotilho e Vital Moreira ( anotação ao artigo 44º da Constituição ínsita na 'Constituição Anotada' dos aludidos autores ) entende que ' se o direito de emigração impõe a proibição de interdição de saída do país ou a sua sujeição a autorização discricionária da Administração, já consente a sua regulamentação ', a qual pode ser sancionada ' a nível do ilícito de mera ordenação social ou mesmo ao nível do ilícito penal', invocando que neste mesmo sentido se pronunciaram a Comissão Constitucional ( no Parecer nº 7/80 publicado nos 'Pareceres da Comissão Constitucional', 20º volume
, pág. 5 ) e o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República ( no seu parecer nº 140/76, publicado no 'Boletim do Ministério da Justiça', nº 276, pág.
33 ).
Pelo que ' se (...) a emigração clandestina, isto é, a simples travessia da fronteira ou a saída do País sem documento que tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais, é um acto ilícito, ilícito também será o aliciamento à emigração'.
E, depois de recordar que a legislação sempre puniu mais severamente os actos de incitamento e auxílio à emigração clandestina do que a própria emigração ( cfr. Decreto nº 5.624, de 10 de Maio de 1919, Decreto nº 20.326, de
21 de Setembro de 1931, Decreto-Lei nº 36.558, de 28 de Outubro de 1947, Decreto-Lei nº 39.749, de 9 de Agosto de 1954, Decreto-Lei nº 43.582, de 4 de Abril de 1961, Decreto-Lei nº 46.939, de 5 de Abril de 1966 e Decreto-Lei nº
49.400, de 24 de Novembro de 1969), acaba por concluir que ' o direito de emigração, consagrado no artigo 44º da Constituição, não obsta à regulamentação e à imposição de formalidades à saída do país, nem ao sancionamento quer do desrespeito dessas regulamentações e formalidades, quer do aliciamento ou auxílio à prática desses ilícitos', pelo que 'não é (...) inconstitucional a norma do artigo 3º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969, referida à alínea b), do nº 1 do artigo 2º do mesmo diploma.'
4. O recorrido A., por seu turno, contra-alegou no sentido da manutenção da decisão recorrida, defendendo a inconstitucionalidade da norma da alínea b), do nº 1, do artigo 3º do Decreto-Lei nº 49.400, de 24 de Novembro de
1969, por ser seu entendimento que o conceito de 'emigração clandestina' claudica perante os valores constitucionais acolhidos pela nossa Lei Fundamental.
Desde logo, o recorrido entende que o diploma em causa 'porquanto pune
única e exclusivamente contravenções, se encontra implicitamente revogado, pelo desaparecimento legal deste tipo de infracção', já que a Constituição de 1976
'não refere a figura da contravenção - artigo 167º, alínea e), pelo que se deve entender ter a mesma desaparecido do actual quadro legal ou pelo menos sido absorvida pelo Direito Penal ou pelo Direito de Mera Ordenação Social'.
Prosseguindo na sua linha de argumentação, o recorrido entende que o Decreto-Lei em causa 'limita obviamente o direito de emigrar, ao considerar logo no seu preâmbulo que o mesmo pode ser clandestino (...) e no seu artigo 1º especifica a necessidade de: documento que habilite a passagem da fronteira; a observância de formalidades; e o cumprimento de prescrições em relação a quem se pretenda fixar em país estrangeiro', consagrando três variantes que 'pecam por desactualização', já que ' o direito de sair do país é hoje visto sem restrições', pois ' para passar a fronteira não existem nem formalidades nem documentos especiais; ao cidadão português, se quiser sair do país, só lhe podem exigir os mesmos documentos que lhe exigem enquanto em circulação interna.'
A que acresce que ' quanto às prescrições exigíveis para quem pretenda fixar-se em país estrangeiro, trata-se de documentos a passar pela autoridade estrangeira (consulados) e que verdadeiramente só são exigíveis nesse país', não devendo 'Portugal intervir no controlo da legalidade da situação de um português no estrangeiro'. Pelo que, considerando 'ultrapassadas todas as situações previstas em sede de emigração clandestina', logo ' a questão do aliciamento também não é punível'.
Analisando o problema na óptica constitucional, o recorrido caracteriza o direito a emigrar como um direito, liberdade e garantia pessoal , a que se aplica o especial regime do artigo 18º da Constituição, pelo que ' só pode ser restringido nos casos previstos na Constituição e com o limite do necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos', em função do que afirma que 'não conhece nenhuma situação constitucional onde se preveja expressamente a limitação deste direito, nem o próprio DL 49.400 - até porque anterior à CRP - nos deixa indicações sobre qual o direito ou interesse que pretende proteger'.
Neste contexto, o recorrido considera que tal fundamento de restrição não pode residir na razão invocada pelo Acórdão da Relação de Lisboa junto aos autos pelo Ministério Público ( a saber, a de 'obstar que a liberdade total e incontrolada de sair do país se transformasse necessariamente numa caótica e perigosa indisciplina no sector social, com graves reflexos no sector laboral' ) porquanto ' esta liberdade total e incontrolada está há muito tempo em vigor
(...) pois os documentos necessários para sair do país e exigíveis pelas autoridades fronteiriças nacionais são, exactamente os mesmos que são necessários para circular internamente' e ' de um modo geral não são as movimentações sociais que provocam alterações no sector laboral, mas a inversa è que é verdadeira', podendo mesmo 'o direito de emigrar ser considerado como um direito instrumental, ou seja, de defesa e garantia de outro direito fundamental
- o direito ao trabalho'.
Razão pela qual, ao entender que a norma em causa afecta o núcleo essencial do direito de emigrar, a reputa inconstitucional por violação do nº 2 do artigo 44º da Constituição.
O recorrido fez juntar à sua contra-alegação uma informação, datada de
6 de Outubro de 1990 e subscrita pelo Director de Serviços em representação do Presidente do Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde se afirma que ' o direito a emigrar ou a sair do território nacional é hoje entendido como um direito sem restrições - não é necessário cumprir quaisquer formalismos por parte do cidadão português que pretenda sair do país ou emigrar', inexistindo qualquer controlo por parte do Estado português quanto aos documentos exigidos por um estado estrangeiro para que um cidadão nacional nele possa trabalhar (contrato de trabalho, carteira de residência e autorização de estadia e de trabalho).
Neste quadro, a informação em causa conclui que 'a lei ordinária ( Decreto-Lei nº 49.400 ) foi revogada pela lei constitucional e embora a lei não tenha sofrido alterações nesta matéria, a verdade é que não se pode falar hoje em emigração clandestina , tanto de acordo com os princípios e disposições constitucionais, como com as regras comunitárias a que Portugal está obrigado como membro da CEE', invocando para tanto o fundamento usado por este Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 7/87, onde se julgou inconstitucional o nº 1 do artigo 199º do Código de Processo Penal ' por considerar que este configurava uma privação parcial da liberdade, isto é, estabelecia uma restrição à liberdade onde a lei constitucional não o prevê ( tratava-se do caso de a lei prever a possibilidade de o juiz poder - alínea b) - impôr ao arguido a obrigação de não se ausentar sem autorização ).'
Finalmente, a informação em causa junta aos autos aborda a questão do
'aliciamento à emigração clandestina', que 'o Decreto-Lei nº 49.400 qualificava
(...) como uma infracção autónoma à emigração clandestina', defendendo que ' para que esta contravenção se verificasse era necessário que alguém, com ou sem pagamento ou recompensa, aliciasse à prática da emigração clandestina', o que resultaria neste momento impossível, em virtude de ' hoje em dia não se pode[r] falar em tal contravenção pelo que deixou de ter sentido falar-se em ilícito relativamente ao aliciamento de actos que já não prefiguram qualquer tipo de contravenção.'
Nestes termos, o recorrido conclui a sua contra-alegação no sentido de ser negado provimento ao recurso porque julgada inconstitucional a norma em crise.
5. Foram corridos os vistos legais.
II
1. O Decreto-Lei nº 49.400, de 19 de Novembro de 1969, constitui um diploma de direito ordinário anterior à vigência da Constituição da República, pelo que, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 290º da Constituição ( mesmo número do artigo 292º da versão originária e corpo do artigo 292º da redacção decorrente da primeira revisão constitucional ), mantém-se em vigor 'desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados'.
A este propósito escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
'Constituição da República Portuguesa Anotada', 2º vol., 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 575:
'O confronto a que há-de proceder-se entre o direito ordinário anterior e a Constituição é restrito à questão da constitucionalidade material entre o conteúdo do direito anterior e as normas ou princípios constitucionais. Por isso, as normas de direito ordinário anterior só não se mantêm desde que sejam materialmente contrárias às normas constitucionais e aos princípios gerais da Constituição, sem atender, portanto, às normas constitucionais relativas à forma e competência dos actos normativos, pois estas normas devem entender-se aplicáveis apenas para o futuro; não tem, por isso, nenhum sentido averiguar se as normas do direito anterior satisfazem ou não os requisitos de forma e de competência que a Constituição estabelece para normas daquela espécie.'
Cabe, pois, ao Tribunal Constitucional apreciar tal conformidade material, que foi julgada improcedente pela sentença recorrida.
O diploma em que se insere a norma em crise visava regular a denominada 'emigração clandestina', afirmando-se no seu preâmbulo que 'os actos de incitamento e auxílio à emigração clandestina têm sido punidos na nossa ordem jurídica com mais severidade e rigor do que a própria emigração, considerando-se tais actos como infracções autónomas, e não simples formas de comparticipação na emigração clandestina. Compreende-se que assim seja, pois enquanto os emigrantes são determinados, em regra, pela esperança de procurar noutras terras uma melhoria de situação económica, os engajadores e intermediários são determinados, também em regra, pelo desejo de lucro, aproveitando-se das dificuldades e carências dos emigrantes.'
O diploma em causa inseria-se num conjunto de medidas que visavam
'tratar a emigração clandestina como simples contravenção, qualificação que, aliás, já lhe foi dada pela nossa ordem jurídica', razão pela qual se justificava 'modificar também o sistema punitivo de aliciamento e auxílio, de forma a não agravar excessivamente a diferença entre as penalidades aplicáveis aos autores daqueles actos e aos próprios emigrantes e corrigir certos aspectos do regime vigente'.
Neste quadro o diploma em apreço dispunha, no seu artigo 1º, que ' constitui contravenção punível com multa de 500$00 a 20.000$00 :
a) A simples travessia da fronteira sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais;
b) A saída do País sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais de nacionais que pretendam fixar-se em país estrangeiro, permanente ou temporariamente.'
No mesmo artigo ( nº 2 ) previa-se que se o emigrante, ao sair do País, tivesse o propósito de se subtrair ao serviço militar, o facto constituiria crime, punível nos termos do artigo 64º da Lei nº 2.135, de 11 de Julho de 1968.
No artigo 2º estatuía-se que ' serão punidos com prisão até dezoito meses e multa correspondente:
a) Aqueles que aliciarem nacionais para saírem do País nas condições referidas na alínea b) do nº 1 do artigo 1º;
b) Aqueles que auxiliarem nacionais a saírem do País nas mesmas condições, ainda que a saída não venha a verificar-se.'
As penas em causa, contudo, seriam no mínimo de um ano se aquele que pretendesse sair do País tivesse o propósito de se subtrair ao cumprimento do serviço militar ( nº 2 do artigo 2º).
Por seu turno, o artigo 3º dispunha que ' aquele que em pagamento ou recompensa da prática de qualquer dos actos previstos no artigo anterior receba quantia ou outro valor, será punido:
a) Com prisão até dois anos e multa correspondente, se a quantia ou valor for inferior a 5.000$00;
b) Com prisão maior de dois a oito anos, se a quantia ou valor for igual ou superior a 5.000$00.'
No nº 2 do mesmo artigo previa-se que ' se por parte daquele que sair ou pretender sair do País houver o propósito de se subtrair ao serviço militar, o mínimo das penas será de dezoito meses, no caso da alínea a), e de três anos, no caso da alínea b)'.
Nos restantes artigos do diploma estabelecia-se uma presunção atinente ao propósito de se subtraírem ao serviço militar ( artº 4º ) e regras quanto ao destino das quantias ou valores recebidos (artº 5º) e quanto à possibilidade de aplicação das medidas de segurança previstas no artigo 70º do Código Penal ( artº 6º).
2. Conforme já se referiu, a norma aqui em causa é a da alínea b) do nº 1 do artigo 3º deste Decreto-Lei, que dispõe que 'aquele que em pagamento ou recompensa da prática de qualquer dos actos previstos no artigo anterior receber quantia ou outro valor será punido (...) com prisão maior de dois a oito anos, se a quantia ou valor for igual ou superior a 5.000$00'.
Logo resulta que objecto do presente processo é a questão da constitucionalidade do quadro punitivo constante da aludida alínea quando aplicado a quem tenha aliciado ou auxiliado nacionais a saírem do País nas condições previstas no artigo 1º do mesmo Decreto-Lei, a saber, a saírem do País para se fixarem em país estrangeiro, permanente ou temporariamente, sem documento que a tal habilitasse ou sem a observância das formalidades ou prescrições legais aplicáveis.
3. A sentença recorrida reputou inconstitucional a aludida alínea b), por violação do disposto no artigo 44º da Constituição, que constitui um direito, liberdade e garantia pessoal que não consente restrições.
Dispõe o pertinente preceito constitucional:
' Artigo 44º
( Direito de deslocação e de emigração )
1. A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional.
2. A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar. '
Sobre este preceito escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
('Constituição da República Portuguesa Anotada', 1º vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pág. 258):
' O direito de emigração ( e, em geral, o direito de sair do país ), bem como o direito de regresso ( nº 2 ), impõem, não apenas a proibição de interdição de saída do país, ou a sua sujeição a autorização discricionária da administração, mas também a ilegitimidade de qualquer restrição à entrada no país por parte de cidadãos portugueses. Na medida em que a saída do país exija um título adequado (passaporte), existe um direito ao passaporte. É pelo menos duvidoso que a saída do país ou a emigração possa ser condicionada ao cumprimento prévio de deveres públicos (v.g. serviço militar ), ou à verificação de outros requisitos pessoais (v.g. escolaridade básica, idade etc.).
Não configuram constitucionalmente restrições à liberdade de saída, nem as taxas (de passaporte, de saída), nem as limitações à saída de divisas, desde que umas e outras, pelo seu montante excessivamente grande (o das primeiras) ou reduzido (o das segundas), não afectem sensivelmente aquela liberdade.'
Pronunciando-se sobre o sentido e alcance do assinalado preceito constitucional ( a propósito dos artigos 3º e 6º do Decreto-Lei nº 35.983, de 23 de Novembro de 1946, que fazia depender de autorização administrativa a ausência para o estrangeiro de oficiais do quadro permanente das Forças Armadas ), a Comissão Constitucional, no seu Parecer nº 7/80 ( publicado no 20º volume dos Pareceres da Comissão Constitucional, Lisboa, 1984, pág. 3 e ss. ) afirmou que o direito de emigrar é ' um direito fundamental do homem, como tal constante da generalidade dos instrumentos de direito internacional protectores dos direitos humanos. Assim é que logo o artigo 13º, nº 2, da Declaração Universal dos Direitos do Homem - de harmonia com a qual, nos termos do artigo 16º, nº 2, da nossa Constituição, 'os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados' - dispõe que ' toda a pessoa tem o direito de sair de qualquer país, mesmo do seu, e o de voltar ao seu país'. De modo idêntico, estatui o artigo 2º, nº 2, do Protocolo nº 4, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem ( aprovada, para ratificação, pela Lei nº 65/78, de 15 de Outubro, sem qualquer reserva quanto ao preceito referido ), que ' toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu próprio'. Por outro lado, ainda determina o artigo 12º, nº 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos ( aprovado, para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho ) que 'todas as pessoas são livres de deixar qualquer país, incluindo o seu'.
Constituindo, pois, este direito de livre deslocação para o estrangeiro património comum do Estado de direito democrático, bem se compreende que a nossa Constituição de 1976 o tenha acolhido da forma mais ampla, o tenha reputado um 'direito, liberdade e garantia' e o tenha sujeitado à plenitude do regime jurídico-constitucional e jurídico-internacional de protecção dos
'direitos, liberdades e garantias' ou dos 'direitos do homem'. O fundamento e alcance de um tal direito são indiscutíveis: o fundamento está em que, numa sociedade democrática, cada um deve ser inteiramente livre de procurar onde quiser a mais livre e completa realização da sua personalidade; o alcance é o de evitar que o Estado - incluído o da nacionalidade da pessoa - possa, de forma discriminatória ou arbitrária, levantar obstáculos à concretização daquela intenção.
Daí que a doutrina constitucionalista venha assinalando que, mesmo historicamente, o direito de deslocação ao estrangeiro e de regresso assumiria maior importância prática que o direito de livre deslocação dentro do próprio território nacional. Por isso mesmo a nossa Constituição o terá autonomizado em número próprio do artigo 44º, ao lado do direito de livre deslocação e de residência internas, consignado no nº 1 do mesmo artigo.' ( Parecer citado, loc. cit., págs. 9 e 10 ).
4. Enquadrado desta forma o direito de emigração, a mesma Comissão Constitucional, no aludido Parecer, equacionou a questão de saber qual o sentido, o valor e o alcance que deveria ser atribuído à circunstância de o legislador constitucional português ter omitido qualquer referência expressa a restrições ou limitações do direito de livre saída para o estrangeiro, e isto até por contraponto às regras dos referidos instrumentos de direito internacional que dispunham expressamente sobre as condições em que tal direito poderia ser objecto de restrições.
Neste contexto colocou-se a hipótese de tal silêncio querer significar que dele decorreria uma proibição de qualquer restrição ou limitação ao direito de livre saída para o estrangeiro, solução que se afastou porquanto a ser ela exacta 'derivaria daí, quando levada às suas últimas consequências , a inconstitucionalidade de toda a legislação relativa, v. g. a passaportes, a condições de emigração, a autorização dos pais para a viagem de filhos ao estrangeiro, a autorização para militares no activo, etc..' ( pág. 11 e 12, sublinhado nosso). Posição esta sustentada na opinião doutrinária de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA ( segundo os quais tal direito não é incondicionado) e no Parecer nº 140/76 da Procuradoria-Geral da República, segundo o qual, 'depois de na sua conclusão 3ª ter posto, sem qualquer limitação, o princípio de que 'a lei não pode restringir o direito de emigrar ou de sair do território nacional, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição', acaba, na sua conclusão 6ª, por pôr uma limitação adicional, a saber, a de que só será assim
'observados que sejam os deveres estabelecidos por lei, nomeadamente o de se ir munido de passaporte' ( pág. 12 ).
Prosseguindo na abordagem desta questão, a Comissão Constitucional entendeu que seria de afastar no caso uma solução que assentasse na destrinça entre 'restrição' e 'regulamentação do exercício' do direito em causa, ou seja, que estabelecesse que 'a exigência de passaporte deveria ser entendida não como uma restrição, mas antes respeitando à regulamentação do exercício de tal direito', pois tal abordagem revelava-se perigosa ('porque acarreta o risco
(...) de, sob o manto da regulamentação de exercício, em princípio constitucionalmente lícita em todos os casos - se legitimarem insuportáveis restrições aos direitos fundamentais, abrindo-se deste modo às escâncaras uma porta pela qual entraria tudo quanto se pretendeu que não entrasse por um postigo estreito') e insuficiente ( 'porque, se quisermos manter afastado o perigo a que acabou de aludir-se, não é através da doutrina da regulamentação de exercício que se justificarão constitucionalmente exigências como as de passaporte ( ao menos em certos casos ), de autorizações, de limitações à saída de divisas, de condenados ou de suspeitos em processo penal etc.)' (Parecer cit., pág. 13 ).
Nestes termos, a Comissão Constitucional confrontou-se, pois, com a questão do fundamento das restrições ao direito de emigração, que resolveu da forma que se passa a transcrever:
' Não pertence a esta Comissão fazer doutrina, em matéria de restrições de direitos fundamentais, para além daquilo que for necessário ao caso sobre que versa este parecer. Não tem, pois, ela que se pronunciar em geral sobre doutrinas que nesta matéria se suscitam, como as dos limites imanentes ou do âmbito normativo dos direitos fundamentais, da colisão ou conflito e da concordância prática entre tais direitos. Basta-se, em vista do caso sob apreciação, com acentuar o seguinte:
O direito de sair do território nacional ( como qualquer outro direito fundamental ) tem de considerar-se implicitamente limitado pela necessidade de cumprimento, pelos cidadãos, de quaisquer deveres constitucionalmente impostos - sob pena, por outra forma, de todo o sistema constitucional dos direitos e deveres fundamentais entrar em contradição e poder ser levado ao absurdo. E isto, que vale para os cidadãos individualmente considerados, há-de valer também para eles enquanto membros ou participantes de instituições constitucionalmente impostas ou reconhecidas. Se a Constituição reconhece ou impõe a existência de uma instituição, assinalando-lhe as finalidades que há-de alcançar e cumprir, seria irremissivelmente contraditório e destituído de sentido que não concedesse os meios indispensáveis à prossecução de tais finalidades.' ( págs. 14 e 15 ).
Razões pelas quais a Comissão entendeu que quer a privação da liberdade, por colocação de uma pessoa em prisão preventiva, ou por cumprimento de uma pena de prisão ou de uma medida de segurança de internamento, quer a execução do imperativo de defesa da pátria por todos os portugueses, quer as missões cometidas às Forças Armadas, todas com assento constitucional expresso, constituíam causas constitucionalmente legítimas de limitação do direito de saída do território nacional, concluindo no caso em apreço que 'a simples menção dos deveres constitucionalmente impostos às forças armadas, mais do que justificar, torna necessária e inevitável a existência de condições e limites ao exercício, pelos seus membros, do direito de livre saída do território nacional'
( pág. 16).
5. Desta extensa recolha da posição definida pela Comissão Constitucional resulta que, no essencial, se entende dever manter a orientação assim definida, e dela fazer aplicação ao caso ora em apreço.
Com efeito, não procede o argumento dos recorridos segundo o qual o direito de emigração não é passível de qualquer limitação. Na realidade, o direito de emigração não se pode ser tido como direito absoluto, antes como um direito pessoal dos cidadãos cujo exercício pode estar sujeito à verificação de certos pressupostos e ao cumprimento de certas e determinadas formalidades, ou seja, é constitucionalmente legítimo ao legislador estabelecer condicionamentos ao seu efectivo exercício, mesmo que esses condicionamentos comportem limitações ao direito em causa.
Não se pode, pois, questionar a legitimidade constitucional da limitação do direito de saída do território nacional que decorre das diversas formas de privação da liberdade previstas no artigo 27º da Constituição, onde se verifica, inclusive, uma sua eliminação temporária. Em tal situação, não se pode deixar de acentuar a vertente em que o direito de emigração constitui uma projecção da liberdade pessoal: o direito à liberdade e à plena realização pessoal comporta, sem dúvida, o direito de escolher livremente o local onde se reside, quer no território nacional quer fora dele, mas se esse direito à liberdade se encontra limitado por virtude de uma decisão (legal e legítima) de privação da liberdade, então evidente se torna que o direito de emigração dessa pessoa sofre uma inelutável limitação ( uma 'eliminação temporária').
De igual forma parece admissível, como sublinhou a Comissão Constitucional no aludido Parecer, que o direito de saída do território nacional possa ser limitado 'em tanto quanto for necessário para dar execução ao imperativo, constante do artigo 276º [ da Constituição ] de defesa da pátria por todos os portugueses ', onde se funda a criminalização da conduta prevista no disposto no artigo 351º do actual Código Penal, quando dispõe que 'quem, com intenção de se subtrair ao serviço militar, se passar para país estrangeiro será punido com prisão até 1 ano' (emigração para se subtrair ao serviço militar ).
Neste contexto, forçoso é concluir que ao legislador é constitucionalmente consentido introduzir limitações ao direito de saída do território nacional previsto no artigo 44º da Constituição.
6. Contudo, chegados a esta conclusão ela não nos dispensa de levar mais longe a indagação da admissibilidade constitucional da norma em apreço.
Com efeito, o direito de emigração, já o dissemos, é um direito, liberdade e garantia, razão pela qual se encontra sujeito ao especial regime jurídico previsto no artigo 18º da Constituição. Importa, pois, verificar agora se a solução normativa em crise reveste a natureza de uma verdadeira e própria restrição e, em caso afirmativo, se tal restrição se mostra conforme aos ditames daquele preceito constitucional.
Como se afirmou no Acórdão nº 99/88 do Tribunal Constitucional
(publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988 ), 'uma distinção básica deverá ter-se em conta dentro das intervenções legislativas ou das normas legais respeitantes a direitos fundamentais [...]: a que decorre justamente entre as normas restritivas desses direitos (normas que encurtam ou estreitam o seu conteúdo e alcance) e as meramente condicionadoras do respectivo exercício (normas que não visam aquele objectivo da redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa e se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício). Com efeito, enquanto as primeiras, para se legitimarem constitucionalmente, haverão de responder ao conjunto de exigências e cautelas a esse respeito consignadas no artigo 18º, nºs 2 e 3, da lei fundamental, já tais exigências e cautelas não se põem, por definição, quanto às segundas, as quais, desde logo e designadamente, não necessitam de uma credencial ou previsão constitucional expressa, autorizando ao legislador a sua emissão ' (cfr. igualmente Acórdãos nºs 370/91 e 289/92, publicados no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992 e de 19 de Setembro de 1992, respectivamente).
Abordando esta temática, JORGE MIRANDA ( Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 'Direitos Fundamentais', Coimbra, 1988, pág. 301 ) entende que constitui mero condicionamento 'um requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a exigência de participação prévia ou de caução ou a autorização vinculada'.
Neste quadro, como se escreveu no Acórdão nº 289/92 'no plano da intervenção conformadora não se trata, pois, de proceder a uma ponderação entre diferentes bens jurídico-constitucionalmente protegidos, nem há lugar a juízos de concordância prática. O apelo a um critério de razoabilidade não vem aqui ordenado às estruturas de ponderação do artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição: antes serve à avaliação do modo e intensidade com que as normas em apreço se projectam na realização do direito fundamental, indagando se com elas se causa ou não um impedimento ou inibição do exercício do direito.'
Sem embargo, como também se refere neste mesmo aresto, citando VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pág. 228, ' a distinção entre 'leis regula(menta)doras - ( leis de organização ), que organizam e disciplinam a 'boa execução' dos preceitos constitucionais e que, com essa finalidade, poderão, quando muito, estabelecer condicionamentos ao exercício dos direitos - e leis restritivas 'é fundamentalmente prática'. E dá o exemplo: 'Uma caução exigida aos organizadores de uma manifestação (para garantir o pagamento de eventuais prejuízos causados pelos manifestantes) pode constituir um mero condicionamento, se, na sociedade concreta, for de um montante acessível, ou uma restrição, se, pelo contrário, dificultar ou impedir o exercício dos direitos por alguns sectores ou grupos da população'. 'Muitas vezes [ afirma o autor ] é apenas um problema de grau ou de quantidade' '.
Assim sendo, importa, pois, determinar se, em termos práticos, a saída do país sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais por parte de nacionais que pretendam fixar-se em país estrangeiro, permanente ou temporariamente ( artigo 1º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 49.400) constituem elementos de uma intervenção legislativa que comporta uma ingerência no âmbito de protecção normativa do preceito constitucional que consagra o direito de emigração e consequentemente compreende a possibilidade de inibição desse direito ( e se assim for estaremos perante uma restrição desse direito ) ou se, pelo contrário, tal labor legislativo exprime uma intervenção conformadora em sentido estrito e próprio, atinente à mera organização de procedimentos do exercício do direito, tida como um mero requisito cautelar de que depende esse exercício ( e aí, então, já não haverá restrição ).
7. Numa primeira visão das coisas poder-se-ia pensar que a exigência de documento que habilite a saída do país constitui um mero requisito procedimental de exercício do direito de saída do território nacional, um requisito de natureza cautelar que se inseriria no âmbito do poder conformador do legislador.
Nesse sentido parecem apontar GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, quando entendem que o direito de emigração constitucionalmente consagrado apenas proíbe a 'sujeição [da saída do país] a autorização discricionária da administração'
(op. cit., pág. 259 ). Daí já se podendo inferir que a exigência de uma autorização não discricionária não deverá ser tida como constitucionalmente ilegítima, antes podendo a lei fazê-la a título de mera conformação do direito em causa. Sem embargo, os mesmos autores acrescentam que 'na medida em que a saída do país exija um título adequado (passaporte), existe um direito ao passaporte' (idem, ibidem).
Também JORGE MIRANDA admite a legitimidade constitucional da exigência de um título adequado para sair do país ( cfr. a sua declaração de voto ao Parecer nº 7/80 da Comissão Constitucional, loc. cit., pág. 24 ) e, à luz dos critérios que adianta na definição dos 'condicionamentos' do exercício de um direito, parece poder entender-se que nessa intervenção meramente conformadora se incluem as exigências 'de uma autorização vinculada'.
Ora, neste contexto e como atrás já se deixou expresso, o juízo a formular àcerca da exigência legal de um documento que habilite os cidadãos a sair do território nacional, em termos de esta constituir uma mera conformação do exercício do direito de emigrar ou uma verdadeira e própria restrição desse direito, depende dos termos práticos em que a lei regula o acesso a esse específico título ou documento. Dito de outro modo, da forma de exercício do direito ao passaporte depende a natureza (conformadora ou restritiva) da intervenção legislativa que faz depender da obtenção e uso desse documento a licitude ou ilicitude da saída do país, o mesmo é dizer, do exercício do direito de saída do território nacional.
8. O regime jurídico em causa vigente à data dos factos a que se reportam os presentes autos constava, no essencial, do Decreto-Lei nº 44.427 e do Decreto nº 44.428, ambos de 29 de Junho de 1962.
O primeiro daqueles diplomas visava regular a emigração tendo em vista
'o direito e o dever [do Estado] de coordenar e regular a vida económica e social da Nação, com o objectivo de estabelecer o equilíbrio populacional, das profissões, dos empregos, do capital e do trabalho e, também, de desenvolver a povoação dos territórios nacionais, proteger os emigrantes e disciplinar a emigração' (Preâmbulo do diploma).
Neste contexto o Decreto-Lei nº 44.427 estabelecia no seu artigo 1º que 'é livre a emigração dos cidadãos portugueses [ sem prejuízo do disposto no artigo 31º da Constituição Política e das demais leis em vigor]', embora no respectivo § único se estatuísse que 'quando circunstâncias especiais o impuserem, o Governo, pelo Ministro do Interior, poderá determinar a suspensão total ou parcial da emigração para determinado país ou região'.
Tendo em vista regular a emigração, o diploma em causa dispunha, no seu artigo 3º, que se considerava emigração 'a saída do País de indivíduos de nacionalidade portuguesa, originária ou adquirida, para se estabelecerem definitiva ou temporariamente no estrangeiro', e no seu § único que 'os portugueses que se proponham ausentar-se do território nacional nas condições a que se refere este artigo deverão ser portadores de passaporte de emigrante, a conceder nos termos do presente diploma e seu regulamento' (sublinhado nosso).
O artigo 5º, por seu turno, dispunha que ' o recrutamento, no País, de indivíduos de nacionalidade portuguesa para trabalharem no estrangeiro depende de autorização da Junta de Emigração, mediante parecer favorável da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações'(sublinhado nosso). No respectivo §
único estatuía-se que 'as bases dos contratos de trabalho necessários para a concessão de passaporte de emigrante a trabalhadores recrutados nos termos deste artigo ficam sujeitas a aprovação pelo Ministério das Corporações e Previdência Social' (sublinhado nosso).
O Decreto nº 44.428 visava regulamentar o citado Decreto-Lei, dispondo, no que ora nos interessa quanto à concessão do passaporte de emigrante, no seu artigo 4º:
'Artº 4º. A concessão de passaporte de emigrante é pedida por meio de requerimento no qual o impetrante declare o país onde pretende estabelecer-se, e que será instruído com documentos destinados a provar:
1º. A sua identidade;
2º. Que tem a saúde e robustez física necessárias;
3º. Que tem trabalho ou a manutenção assegurada no país de destino; e, consoante os casos:
4º. Que tem autorização de entrada no país de destino;
5º. Que a manutenção das pessoas de família a seu cargo fica devidamente assegurada;
6º. Que, sendo maior de 18 e menor de 45 anos, satisfaz os preceitos das leis e regulamentos militares aplicáveis;
7º. Que, tratando-se de mulher casada ou de menor de 21 anos, não emancipado, que não sejam chamados, respectivamente, pelo marido ou pelos pais ou tutores, sem autorização marital ou de quem exerça o pátrio poder ou o seu suprimento;
8º. Que, tratando-se de funcionário civil não aposentado nem na situação de licença ilimitada, ou militar em qualquer situação, tem autorização do superior competente de que depende;
9º. Que tem as habilitações literárias exigidas por lei;
10º. Que, sendo chamado por parente até ao 3º grau, se verifica o parentesco invocado.'
Acrescia ainda que no § 1º do citado artigo se previa que 'a concessão de passaporte de emigrante a mulheres contratadas depende ainda da existência de garantias de protecção moral no país de destino'.
No quadro do diploma em apreço, o artigo 5º estabelecia como sendo competentes para a emissão de passaporte de emigrante, no continente, o presidente da Junta de Emigração, nas ilhas adjacentes, os governadores dos respectivos distritos autónomos ou o chefe da delegação da Junta de Emigração quando esta existisse, e nas províncias ultramarinas, os respectivos governadores.
O artigo 6º deste Decreto contemplava o regime do indeferimento do pedido de concessão de passaporte de emigrante, nos seguintes termos:
'Artº 6º. São causas de indeferimento dos pedidos de concessão de passaporte de emigrante:
1º. A falta de qualquer dos requisitos referidos no artigo 4º, sem prejuízo do disposto nos §§ 4º, 5º e 6º daquele artigo;
2º. No caso de mulheres casadas, o facto de não acompanharem os maridos ou não pretenderem juntar-se-lhes, salvo em casos devidamente justificados;
3º. A circunstância de os impetrantes terem sido repatriados, excepto em casos devidamente justificados;
4º. A oposição do pedido com quaisquer outras normas relativas ao condicionamento da emigração'.
Nos termos do § único deste artigo previa-se que 'o despacho que recusar a concessão de passaporte de emigrante será fundamentado', do qual caberia recurso para o Ministro do Interior ou para o Ministro do Ultramar, consoante os casos.
No artigo 8º dispunha-se que 'o passaporte de emigrante é válido para o país onde o titular pretende estabelecer-se, devendo nele averbar-se os países por onde o mesmo haja de transitar', tendo a validade de quatro anos improrrogáveis (artigo 9º), salvo no caso de trabalho temporário no estrangeiro, em que a validade seria a fixada no próprio passaporte até ao limite de um ano, podendo tal validade ser prorrogada por uma ou mais vezes, até ao limite máximo de quatro anos (artigo 10º).
No § 4º deste artigo 10º dispunha-se que 'se o titular de passaporte concedido de harmonia com o disposto no corpo deste artigo (emigrante para trabalhar temporariamente no estrangeiro) não regressar ao País dentro do prazo de validade que lhe tiver sido fixado, ser-lhe-á instaurado processo por emigração clandestina'.
Finalmente, no artigo 15º do diploma em apreço, estabelecia-se que 'os titulares de passaportes para emigrante só poderão sair do País ou a ele regressar pelos postos de fronteira oficialmente estabelecidos'.
O artigo 10º deste Decreto viria a ser expressamente revogado pelo Decreto nº 35/74, de 5 de Fevereiro, o qual, de igual modo, veio dar nova redacção aos artigos 4º, 6º, 7º, 8º e 9º do diploma de 1962.
Assim, de acordo com este Decreto de 1974, os artigos 4º e 6º passaram a dispor do seguinte modo:
'Artº 4º. O passaporte de emigrante será concedido quando o interessado tiver apresentado documentos destinados a provar:
a) A sua identidade;
b) Que tem a saúde e robustez físicas necessárias;
c) Que tem trabalho ou autorização de entrada no país de destino, ou ambos, quando for exigido;
e, consoante os casos:
d) Que, sendo maior de 16 anos e menor de 45, satisfaz os preceitos das leis e regulamentos militares aplicáveis;
e) Que, sendo menor não emancipado, ou interdito, tem autorização do seu representante legal ou seu suprimento;
f) Que, tratando-se de militar em qualquer situação, tem autorização do superior competente de que depende.
2. Na concessão de passaporte a indivíduos que pretendam trabalhar temporariamente no estrangeiro poderá ser dispensada a prova do requisito referido na alínea b) do número anterior.
3. Sempre que o emigrante, conforme as determinações que regem a entrada de pessoas nos países a que se destinam, seja submetido a exame sanitário pelas autoridades dos respectivos países, será o mesmo dispensado do referido exame pelas competentes autoridades portuguesas.
4. Sempre que do processo do emigrante conste atestado médico, para efeitos de emigração, passado pelas delegações ou subdelegações de saúde ou outros serviços oficiais, incluindo os emitidos pelos serviços médicos do Secretariado Nacional da Emigração, não será exigido qualquer outro exame médico.
5. Em casos especiais devidamente justificados, poderá ser concedido passaporte de emigrante com dispensa dos documentos a que se referem as alíneas c) e e) do nº 1 do presente artigo.'
'Artº 6º. - 1. São causas de indeferimento dos pedidos de concessão de passaporte de emigrante:
a) A falta de qualquer dos requisitos referidos no nº 1 do artigo 4º, sem prejuízo do disposto nos nºs 2 a 5 do mesmo artigo;
b) A cirscunstância de os impetrantes terem sido repatriados, salvo se efectuarem pagamento da importância despendida pelo Estado com as despesas da sua repatriação;
c) A oposição do pedido com quaisquer outras normas legais.
2. O despacho que recusar a concessão do passaporte de emigrante será fundamentado e dele cabe recurso para o Presidente do Conselho ou para o Ministro do Ultramar, consoante os casos.'
É em 1978 que o Decreto nº 44.428 volta a ser alterado, através do Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro, de que se transcreve o preâmbulo e respectivo articulado:
'Considerando a tendência para a adopção de um único tipo de passaporte;
Considerando que a concessão do passaporte ordinário se tem generalizado nos últimos tempos;
Considerando que nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não existe qualquer diferença formal entre passaportes de emigrantes e passaportes ordinários;
Considerando ainda que a economia e a comodidade para o emigrante resultam da utilização do passaporte ordinário de que seja titular;
Considerando, nesta linha, que deverá ser abolida a aposição das letras E ou T nos passaportes emitidos a favor de emigrantes, indo aliás ao encontro de um desejo por estes repetidamente manifestado:'
O Governo decreta, nos termos da alínea c) do artigo 202º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1º. Ao Decreto nº 44.428, de 29 de Junho de 1962, é aditado um novo artigo 10º, em substituição do que foi revogado pelo Decreto nº 35/74, de 5 de Fevereiro, com a seguinte redacção:
Artº. 10º - 1 - O titular de passaporte ordinário que preencha os requisitos indicados no artigo 4º do presente diploma poderá utilizar esse passaporte para efeitos de emigração desde que obtenha junto das entidades competentes para a concessão de passaportes de emigrante, por averbamento, a necessária autorização.
2 - Para efeitos do número anterior será aposto no passaporte ordinário o averbamento 'bom para emigrar com destino a...'(país para onde estiver autorizado a emigrar).
3 - O averbamento a que se refere o número anterior só será aposto em passaporte familiar quando todos os seus membros estiverem autorizados a emigrar.
4 - Este averbamento é gratuito.'
Este, pois, o quadro normativo relevante para análise do presente caso. Sem embargo, parece útil referir que o regime jurídico da concessão de passaportes veio a ser globalmente alterado pelo Decreto-Lei nº 438/88, de 29 de Novembro, o qual visou a simplificação e desburocratização do processo de obtenção de passaportes, regular a utilização da informática na sua emissão e adoptar um modelo uniforme acolhendo, no nosso ordenamento jurídico, a Resolução do Conselho das Comunidades Europeias de 23 de Junho de 1981 (cfr. preâmbulo do citado diploma), em virtude da adesão de Portugal às Comunidades Europeias verificada em 1 de Janeiro de 1986.
Neste Decreto-Lei veio a definir-se que seriam quatro as categorias de passaportes - diplomático, especial, comum e para estrangeiros ( artigo 2º, nº
1) - e que são impedimentos à concessão do passaporte a oposição dos progenitores no caso de menores não emancipados e a informação às entidades competentes fornecida 'pelos órgãos judiciais, de qualquer situação que contrarie a possibilidade de uso de passaporte' (artigo 25º, nº 1).
No artigo 32º, sob a epígrafe 'Utilização para fixação em país estrangeiro', dispõe-se que:
- 'o passaporte comum individual pode ser utilizado para fixação em país estrangeiro onde for considerado como título bastante para o efeito' (nº
1);
- 'o passaporte emitido para o fim referido no número anterior beneficiará de uma redução de 70% nas taxas aplicáveis, desde que o requerente apresente, simultaneamente com o pedido, uma declaração emitida pelo Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas comprovativa da intenção de se fixar em país estrangeiro' (nº 2);
-'o Ministro dos Negócios Estrangeiros definirá, por portaria, os termos em que deverá ser emitida a declaração referida no número anterior'
(nº3).
Este diploma, no seu artigo 53º, revoga expressamente, entre outros, os artigos 7º e 8º, bem como o § único do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 44.427, de 29 de Junho de 1962, e ainda os artigos 4º a 21º do Decreto nº 44.428, de 29 de Junho de 1962, e as suas alterações subsequentes.
Deste excurso resulta que apenas em 1988 foi objecto de revogação expressa a legislação que regulava a concessão de passaporte de emigrante, bem como as regras com ele conexas atinentes à emigração.
Eis porque, reportando-se os presentes autos a factos ocorridos entre finais de 1974 e finais de 1979, se deve ter por vigente à época a legislação atrás assinalada, que o Ministério Público entende, nas suas alegações, relevar para apreciação do caso em análise.
9. Definido assim o quadro normativo pertinente, parece impor-se a conclusão de que o regime jurídico da concessão de passaporte para efeitos de emigração, quer o decorrente da sua versão de 1962, quer o que resulta das alterações introduzidas em 1974, pelos seus condicionalismos próprios, não se pode ter por meramente conformador do 'direito ao passaporte' ou do 'direito de saída do território nacional'.
Com efeito, tal regime jurídico não se traduzia na exigência de 'meros requisitos de natureza cautelar' (para usar a expressão de JORGE MIRANDA), v.g. uma mera participação prévia ou mesmo uma autorização vinculada, mas, pelo contrário, antes assentava numa bastante ampla margem de decisão do legislador, no exercício da qual inclusivamente se habilitava o Governo a, por mera decisão administrativa sem pressupostos previamente definidos na lei, suspender total ou parcialmente a liberdade de emigração para determinado país ou região (cfr. §
único do artigo 1º do Decreto-Lei nº 44.427).
Neste contexto, as exigências legais quanto à emigração atrás descritas, consideradas globalmente e numa visão sistemática, não se podem ter como revestindo vocação meramente organizatória ou como meros pressupostos de exercício do direito de emigração, antes comportam a redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa, devendo, por isso, ter-se como assumindo uma verdadeira e própria natureza restritiva.
Conclusão esta que se mostra válida quer para o quadro normativo resultante dos diplomas de 1962 e de 1974 (todos anteriores à Constituição da República), quer para o diploma de 1978, uma vez que este expressamente reenvia para o Decreto nº 44.428, aditando-lhe um artigo 10º e reportando-se expressamente aos requisitos constantes do artigo 4º daquele outro diploma regulamentar.
10. Tendo concluído que o exercício do direito de emigração, nos termos da legislação vigente à data dos factos sobre que versam os presentes autos, estava sujeito às assinaladas restrições, importa, pois, apurar se tal regime se poderá ter por compatível com os apertados critérios constantes do artigo 18º da Constituição no tocante à força jurídica dos direitos, liberdades e garantias.
Assinale-se, desde logo e de acordo com o que já atrás se deixou expresso, que a exigência de um passaporte como documento ou título habilitador da saída do território nacional, por si só, não pode ser tida como uma restrição do direito de emigração. Com efeito, se o acesso a tal documento se processar em termos que não constituam obstáculo inultrapassável ao exercício do direito de saída do território nacional, a sua exigência haverá de ter-se por meramente conformadora do exercício daquele direito. E, conforme já assinalou a Comissão Constitucional no Parecer atrás citado, relevantes interesses constitucionalmente protegidos podem fundamentar legislação que imponha restrições ao direito de saída do território nacional ( e consequentemente ao
'direito ao passaporte' ), como resulta do disposto no artigo 25º do Decreto-Lei nº 438/88, de 29 de Novembro, que comete aos órgãos judiciais a responsabilidade de uma tal decisão (em aplicação da lei, como, por exemplo, nos casos de medidas de limitação da liberdade de arguidos em processo penal e, por maioria de razão, de condenação por sentença privativa da liberdade) e de sua comunicação às entidades competentes para a concessão do passaporte.
Contudo, razões atinentes ao 'mercado do trabalho e às movimentações sociais' não podem ser tidas, tomadas isoladamente, como relevando, na óptica da Constituição, para estabelecer tais restrições. Com efeito, como refere JORGE MIRANDA ('Manual...' cit., pág. 405) a liberdade de trabalho e de profissão ' postula a liberdade de aprender (art. 43º) - a liberdade de aprender o oficio ou género de trabalho que se pretenda vir a exercer - (...), implica a liberdade de deslocação e residência no território nacional ( art. 44º, nº 1) e a liberdade de emigração (art. 44º, nº 2), como liberdade de escolha do lugar de trabalho'
(sublinhado nosso). Assim sendo, o direito de emigração assume também uma vertente instrumental face à liberdade de escolha do trabalho e da profissão, ela também um direito fundamental das pessoas reconhecido na nossa Constituição, no artigo 47º, nº 1, em sede de direitos, liberdades e garantias pessoais, cuja harmonização não só é possível como postulada pela própria Constituição.
Acresce que atentos os condicionalismos do regime em causa, em especial a possibilidade de suspensão, total ou parcial, por via administrativa, do direito de emigração (artigo 1º, § único, do Decreto-Lei nº 44.427), a exigência de um específico tipo de passaporte ( § único do artigo 3º do Decreto-Lei nº 44.427) cuja obtenção dependia de autorização discricionária, ou pelo menos não vinculada, da Administração, subordinada à verificação de requisitos exclusivamente reportáveis ao país de destino e em si mesmos alheios aos interesses nacionais que pudessem estar em causa na limitação do direito de emigração [designadamente a prova de trabalho e de manutenção assegurada, bem como de autorização de entrada no país de destino] (artigos 4º e 6º do Decreto nº 44.428), a sujeição do exercício do direito de emigração a autorização da Junta de Emigração (e a parecer favorável da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações), na vertente do recrutamento no país (artigo 5º do Decreto-Lei nº
44.427) e a sujeição a aprovação, pelo Ministério das Corporações e Previdência Social, das bases do contrato de trabalho necessário para a obtenção do passaporte de emigrante (§ único do artigo 5º do mesmo Decreto-Lei), não se pode deixar de considerar tais normativos como desconformes com os requisitos do artigo 18º da Constituição porque violam o conteúdo essencial do direito de emigração, mostrando-se excessivos e desproporcionados na compressão que acarretam desse direito de emigração.
Neste contexto, os aludidos normativos mostram-se desconformes às disposições conjugadas dos artigos 18º e 44º da Constituição, pelo que devem ser tidos como materialmente inconstitucionais.
11. Alcançada esta conclusão, importa apurar agora da sua projecção no caso dos autos.
Como já atrás se referiu, está em causa a constitucionalidade da norma da alínea b), do nº 1, do artigo 3º, do Decreto-Lei nº 49.400, que manda punir com prisão maior de dois a oito anos aquele que tenha recebido quantia ou valor igual ou superior a 5.000$00, em pagamento ou recompensa da prática de actos de aliciamento para ou de auxílio à saída do país de nacionais que pretendam fixar-se em país estrangeiro, permanente ou temporariamente, sem documento que a tal habilite ou sem observância das formalidades ou prescrições legais.
Ora, a moldura penal em causa reporta-se a um tipo de crime cujos elementos definitórios, ou seja, em que a determinação dos comportamentos ou condutas reputadas ilícitas, se contêm em normas consideradas materialmente inconstitucionais, pelas razões atrás apontadas. Assim, sendo as normas materiais definidoras do tipo de crime inconstitucionais, por violadora da Constituição haverá também de ser tida a norma sancionatória cuja operatividade pressupõe a existência daqueles normativos reputados inconstitucionais.
Como se viu, o contraste entre o regime jurídico da emigração vigente antes da entrada em vigor da Constituição da República e o texto desta só pode ser submetido a apreciação deste Tribunal no plano material, conforme resulta do disposto no artigo 290º da nossa lei fundamental. Já assim não sucede quanto ao disposto no Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro, porque emitido durante a vigência da Constituição de 1976, mas a sua inconstitucionalidade material resultará consequencialmente do juízo de desvalor formulado em relação ao artigo 4º do Decreto nº 44.428, para o qual remete expressamente, o que desde logo nos dispensa de apreciar a sua constitucionalidade orgânica e formal para resolver o caso em análise.
12. Importa ainda deixar registada uma nota final quanto aos limites do presente julgamento de inconstitucionalidade à luz das especificidades do mecanismo de controlo de normas de direito ordinário anterior à vigência da Constituição de 1976.
A este propósito escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
('Constituição da República Portuguesa Anotada', cit., 2º vol., pág. 575):
' (...) [A] questão de saber se uma determinada norma de direito anterior caducou ou não pressupõe um juízo de constitucionalidade idêntico ao juízo de constitucionalidade material em relação a normas posteriores à Constituição; só que, no caso de direito anterior, o juízo de inconstitucionalidade significa que a norma não pode ser aplicada por ter deixado de vigorar a partir de 25 de Abril de 1976, enquanto que, no caso de direito posterior, a norma inconstitucional não pode ser aplicada por ser inválida desde a origem (...). A consequência da declaração da inconstitucionalidade é a caducidade da norma, reportada a 25 de Abril de 1976, sendo por isso discutível se e em que medida é que neste caso pode haver limitação dos efeitos da declaração, nos termos do art. 282º'(sublinhados nossos).
Neste contexto, o juízo de inconstitucionalidade das normas em causa tem o alcance de verificar a caducidade das normas em causa operada pela entrada em vigor da Constituição de 1976, provocando, de tal forma, como se refere na sentença recorrida, uma descriminalização das aludidas condutas a partir de 25 de Abril de 1976.
Ora, se bem que as condutas imputadas aos arguidos tenham ocorrido num período de tempo que compreende momentos anteriores à entrada em vigor da Constituição e momentos a ela posteriores, a caducidade assim verificada, embora só proceda a partir da entrada em vigor da Constituição de 1976, abre, contudo, espaço para aplicação do disposto no nº 4, do artigo 29º, da Constituição, permitindo assim a aplicação, na sentença recorrida, ao conjunto das infracções cometidas ao abrigo da lei ora julgada inconstitucional (ainda que anteriores a
25 de Abril de 1976) do regime penal mais favorável aos arguidos, ou seja, do regime despenalizador.
III
Nestes termos o Tribunal entende:
a) julgar inconstitucional a norma da alínea b), do nº 1, do artigo
3º, do Decreto-Lei nº 49.400, de 24 de Novembro de 1969, quando conjugada com os artigos 1º e 2º do mesmo diploma e por referência ao disposto nos artigos 1º, 3º e 5º do Decreto-Lei nº 44.427, de 29 de Junho de 1962, nos artigos 4º e 6º do Decreto nº 44.428, de 29 de Junho de 1969 e no artigo 1º do Decreto Regulamentar nº 45/78, de 23 de Novembro ( na parte em que aditou um novo nº 1 ao artigo 10º do Decreto nº 44.428), por violação das disposições conjugadas dos artigos 44º e 18º da Constituição da República.
b) negar provimento ao recurso e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 2 de Março de 1994
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Luís Nunes de Almeida (votei o acórdão, sem prejuízo de manter a posição expressa na declaração de voto que juntei ao Parecer nº 7/80, da Comissão Constitucional)