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Proc. nº 291/91
1ª Secção Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., nos autos de recurso penal nº 452/90 do Tribunal da Relação de Coimbra, reclamou para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho do relator que não lhe admitira o recurso do acórdão proferido por aquele Tribunal da Relação sobre o despacho que, na primeira instância, o havia pronunciado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigo 297º, nº 2, alíneas c) e d), do Código Penal.
Nessa reclamação, defendeu, em síntese:
- que o recurso em causa era legal e tempestivo;
- que o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1990 não era aplicável ao caso por ser posterior à data dos factos imputados ao arguido (28.02.85 ) e por importar uma limitação do seu direito de defesa;
- que ' a norma que constitui o supracitado assento é inconstitucional, porque inconstitucional é a lei interpretanda : artigo 21º do Decreto-Lei nº
605/75, de 3 de Novembro, na medida em que a norma que integra este preceito legal viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, consagrado no nº 1 do artigo 13º da Constituição, ao atribuir menos direitos aos arguidos dos processos previstos nos nºs 2º e 3º do artigo 37º do Código de Processo Penal e, em termos gerais, de todos os processos crime em que é admitido unicamente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, do que aos arguidos dos restantes processos, pois só estes poderiam recorrer dos despachos de pronúncia ';
- que ' na pior das hipóteses, sempre teria de ser admitido o recurso interposto pelo reclamante (...) na parte em que o mesmo não incide sobre o despacho de pronúncia, mas sim sobre o acórdão recorrido em si mesmo com fundamento na violação por este do artigo 174º do Código de Processo Penal
(...)'.
O despacho de relator foi confirmado em conferência e a reclamação veio a ser indeferida por despacho de 15 de Fevereiro de 1991 do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, despacho em que, no que se refere à questão de constitucionalidade, se afirma o seguinte :
' Na verdade, segundo o reclamante, o Assento viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição.
Esquece-se, porém, que este artigo 13º tão-somente exige um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes; essa disposição legal não só não proíbe diferenciações de tratamento como até as permite.
O que se exige é que seja tratado por igual aquilo que é igual; e que seja tratado por desigual aquilo que é desigual.
Ora acresce que o Assento não faz qualquer discriminação: Em todos os casos, dos acórdãos da relação proferidos sobra despachos de pronúncia não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer verse sobre matéria de direito quer de facto'.
2. É deste despacho do presidente do Supremo Tribunal de Justiça que vem interposto para o Tribunal Constitucional o presente recurso.
Encontrando-se insuficientemente instruída a petição de recurso, o relator, ao abrigo do disposto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, convidou o recorrente a indicar os elementos em falta, o que este fez sublinhando que o despacho recorrido viola :
- o 'princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei consagrado no nº 1 do artigo 13º da Constituição';
- o 'princípio da não aplicação retroactiva da interpretação mais favorável para o arguido da norma a aplicar, que resulta por analogia e a contrario da segunda parte do nº 4 do artigo 29º da Constituição';
- a 'norma constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição';
- a 'norma constante do artigo 207º da Constituição, na medida em que o despacho recorrido se fundamenta num assento,(...) que é, pela sua própria natureza jurídica, inconstitucional'.
Posteriormente, nas alegações que apresentou, o recorrente formula, em síntese, as seguintes conclusões:
' A) os assentos 'são inconstitucionais, na medida em que violam o princípio da separação de poderes consagrado no nº 1 do artigo 114º e as normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 205º da Constituição, como inconstitucional é o artigo 2º do Código Civil, visto a função legislativa não competir aos Tribunais e atento o disposto no nº 5 do artigo 115º da Constituição, que aquele preceito viola';
B) a norma que constitui o assento de 24 de Janeiro de 1990 é inconstitucional porque inviabiliza ' a possibilidade de recurso de despachos de pronúncia proferidos pela Relação, como acontece nos casos previstos nos nºs 2º e 3º do artigo 37º do Código de Processo Penal, gerando assim a desigualdade de tratamento entre juízes de 1ª instância e agentes do Mº Pº por um lado e os demais réus por outro, uma vez que àqueles ficaria vedado um direito que a estes assiste: o de recorrerem do despacho de pronúncia';
C) a mesma norma é também inconstitucional porque, com violação do artigo
13º, nº 1, da Constituição, provoca um tratamento desigual entre o recorrente e outros réus a quem, antes do assento, se permitiu recorrer do despacho de pronúncia para o Supremo Tribunal de Justiça;
D) a norma do assento é ainda inconstitucional 'por violar o princípio da não aplicação retroactiva da interpretação mais desfavorável para o arguido, que resulta por analogia, e a contrario, do nº 4 do artigo 29º da Constituição, violando, por conseguinte, o douto despacho recorrido, salvo o devido respeito, a norma constante do artigo 207º da Constituição, dado que, como vem defendendo Figueiredo Dias ( vide 'Código de Processo Penal Anotado', de Maia Gonçalves, ed. de 1982, pág. 22 ), o princípio da ilegalidade tem incidência também processual e não apenas substantiva';
E) a norma do assento de 24 de Janeiro de 1990 é, finalmente, inconstitucional porque, em contradição com o artigo 32º, nº 1, da Constituição, constitui 'uma limitação das garantias de defesa dos réus nos processos a que ( como no caso sub judice ) se aplica o Código de Processo Penal de 1929, atento o disposto no artigo 645º desse Código';
F) ' se (...) se entender que a lei interpretativa integra a lei interpretada, então ter-se-á de concluir, pelas mesmas razões expostas relativamente ao assento de 24 de Janeiro de 1990, que é inconstitucional o artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, com o sentido que lhe é dado por aquele assento, visto viciar o disposto nos artigos 13º, nº 1, 29º, nº
4, e 32º, nº 1, da Constituição (...)'.
3. Face ao exposto, resulta que o recorrente, com o presente recurso, pretende ver apreciadas várias questões de constitucionalidade, que poderão ser sumariadas da seguinte forma:
- dos assentos, enquanto suporte de exteriorização normativa, por violação dos artigos 114º, nº 1, e 205º, nºs 1 e 2, da Constituição;
- do artigo 2º do Código Civil, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição;
- do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1990, por violação dos artigos 13º, nº 1, 29º, nº 4, e 32º, nº 1, da Constituição; e,
- também por violação destes dispositivos constitucionais, do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro.
4. Nas contra-alegações que ofereceu neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão prévia da inadmissibilidade parcial do recurso, o que fez por entender não se encontrar preenchido, quanto a parte do recurso, o pressuposto que se traduz na necessidade de o recorrente ter suscitado a inconstitucionalidade das normas impugnadas no decurso do processo (artigos
280º, nº 1, alínea b) da Constituição e artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº
28/82 ).
Resolvida em sentido positivo à posição do Ministério Público esta questão prévia pelo Acórdão deste Tribunal nº 320/92, o recurso seguiu os seus trâmites tendo por objecto apenas a questão da constitucionalidade do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, com a sobreposição interpretativa decorrente do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1990, publicado no Diário da República, I Série, de 12 de Abril de 1990.
5. Corridos novos vistos legais, desta feita sobre a questão de fundo, importa agora aprecia-la e decidi-la.
II
1. As questões de constitucionalidade suscitadas pelo recorrente reportam-se, pois, à norma do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1990, publicado no Diário da República, I Série, de
12 de Abril de 1990, atinente às condições de admissibilidade de interposição de recurso de um despacho de pronúncia.
Com efeito, dispunha o artigo 377º do Código de Processo Penal de 1929 que ' do acórdão da Relação que julgar o recurso interposto do despacho de pronúncia, cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça', o qual recurso, nos termos do § único do mesmo artigo 'terá efeito suspensivo, se o acórdão da Relação tiver pronunciado o arguido, e meramente devolutivo, se o tiver despronunciado'.
Este artigo viria a ser revogado pelo disposto no artigo 22º do Decreto-Lei nº 605/75, que no seu artigo 21º passou a estatuir que ' dos despachos de pronúncia e não pronúncia apenas cabe recurso para o tribunal da relação'.
Em virtude de jurisprudência contraditória quanto ao sentido deste artigo
21º (numa interpretação dos aludidos acórdãos da relação caberia recurso para o S.T.J., embora restrito à matéria de direito, noutra, em qualquer caso, não poderia caber nenhum tipo de recurso para o S.T.J.), o Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno, veio a proferir o Assento de 24 de Janeiro de 1990 que determina que ' dos acórdãos da relação proferidos sobre despachos de pronúncia não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer verse sobre matéria de direito quer de facto.'
É, pois, a questão da conformidade constitucional da norma que resulta da sobreposição interpretativa do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75 e do Assento de Janeiro de 1990 que se trata no presente processo, ou seja, da norma, aplicada na decisão recorrida, que determina que dos despachos de pronúncia apenas cabe recurso para o tribunal da Relação, já não para o Supremo Tribunal de Justiça, quer o recurso verse sobre matéria de direito, quer de facto.
2. O recorrente entende que a norma em causa viola o princípio da igualdade, porquanto 'veda a possibilidade de recurso dos despachos de pronúncia proferidos pela Relação, como acontece nos casos previstos nos nºs 2º e 3º do artigo 37º do Código de Processo Penal, gerando assim a desigualdade de tratamento entre juízes de 1ª instância e delegados do Ministério Público por um lado e os demais réus por outro, uma vez que àqueles ficaria vedado um direito que a estes assiste: o de recorrerem do despacho de pronúncia' e ainda porque provoca um tratamento desigual entre o recorrente e outros réus a quem, antes do Assento, se permitiu recorrer do despacho de pronúncia para o Supremo Tribunal de Justiça.
O paralelismo assim invocado com o artigo 37º do Código de Processo Penal de 1929 (entretanto revogado pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 377/77, de 6 de Setembro, embora as regras dos aludidos nºs 2º e 3º subsistam nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 41º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro), quando visto na
óptica do princípio da igualdade, mostra-se, contudo, improcedente, porquanto não tem em linha de conta que este princípio não proíbe o estabelecimento de distinções nem o tratamento diferenciado de situações diversas entre si.
Com efeito, o regime decorrente do citado preceito da Lei nº 38/87 assenta nos pressupostos específicos do procedimento contra magistrados, tendo em vista, por isso, salvaguardar em geral a independência dos tribunais sem qualquer diminuição, em matéria criminal, das garantias de defesa do arguido, pois existe direito ao recurso (cfr. artigos 28º, nº 3, e 26º, alínea d) da mesma Lei) e visa também garantir que o julgamento é feito num tribunal superior. Sem embargo, como bem nota o Procurador-Geral Adjunto, a entender-se que estas razões se mostrariam em si mesmas insuficientes para efeitos de fundamentação da assinalada distinção normativa, sempre seria de considerar que um eventual vício de inconstitucionalidade (resultante da invocação do princípio da igualdade) se reportaria directamente à norma que estabelece o foro pessoal especial dos magistrados ( norma essa não aplicada na decisão recorrida) e não à norma impugnada neste processo.
3. Por outro lado, o recorrente entende que a norma em causa, com a interpretação dela fixada pelo já citado assento do S.T.J., comportaria violação do princípio da igualdade ainda por estabelecer uma discriminação
(injustificada) entre os arguidos em processo criminal pronunciados antes da prolacção do assento e os pronunciados posteriormente, por aos primeiros ser consentido o pretendido recurso e aos segundos tal recurso ser denegado.
Na realidade o assento do S.T.J. reveste a natureza de assento interpretativo e teve como objectivo uniformizar a jurisprudência sobre o sentido do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, em virtude de anteriores entendimentos contraditórios formulados àcerca do aludido preceito ( uns no sentido de ser admissível recurso do despacho de pronúncia para o S.T.J., restrito embora à matéria de direito, e outros no sentido de tal recurso não ser em caso algum admitido). O que significa que, em momento anterior ao aludido assento, e à luz da redacção do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, um tal recurso tanto poderia ser admitido como rejeitado.
Ora, sempre se poderá colocar a questão de saber se a prolacção do assento não veio, de facto, estabelecer uma discriminação infundada, em relação
àqueles arguidos em processo crime que, antes de 24 de Janeiro de 1990, se, em virtude das referidas orientações jurisprudenciais contraditórias, não tinham a certeza da admissibilidade do recurso, pelo menos tinham uma fundada expectativa de o mesmo poder vir a ser admitido, embora restrito à matéria de direito.
A este propósito refere o Procurador-Geral Adjunto, nas suas contra-alegações, que o assento 'como norma interpretativa (...) integra-se na norma interpretada (artigo 13º do Código Civil) e retroage os seus efeitos à data da entrada em vigor da lei interpretada. Não tendo carácter inovador e limitando-se a fixar uma das interpretações com que o recorrente podia e devia contar, não há obstáculo à sua aplicação, que não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas; não há, pois, neste caso, retroactividade substancial'.
Sem embargo, e conforme reconhece o Procurador-Geral Adjunto na mesma peça processual, 'admite-se que o assento de 24 de Janeiro de 1990, ao afastar um segundo grau de recurso do despacho de pronúncia, traz, a priori, algum desfavor ao arguido: à incerteza sobre o segundo recurso sucedeu a certeza da irrecorribilidade. Mas, porque se mantém o duplo grau de jurisdição e porque estamos perante uma norma interpretativa, é dificilmente defensável que da aplicação do assento resulte um agravamento sensível da posição processual do recorrente ou uma limitação do seu direito de defesa'.
O Tribunal entende sufragar esta visão das coisas.
Com efeito, o contraste de regimes em causa resulta não da confrontação entre duas soluções normativas consolidadas e uniformemente aplicadas, mas antes da contraposição entre uma mera possibilidade/probabilidade de adopção de uma dada interpretação judicial, no sentido de se admitir aquele tipo de recurso ( de cuja plausibilidade, face à letra do próprio preceito, não compete ao Tribunal Constitucional sequer ajuizar), e a certeza de uma uniformização de entendimento, decorrente do assento, no sentido de em caso algum caber o aludido tipo de recurso.
Sem curar agora de saber, porque irrelevante face ao sentido da decisão, qual a amplitude e o âmbito dos casos e situações onde se poderia identificar uma efectiva alteração do tratamento jurídico decorrente da produção de efeitos do assento, não se pode deixar de assinalar que a expectativa dos recorrentes numa solução favorável às suas pretensões à luz do ordenamento e da sua interpretação judicial anteriores ao assento constituía, em face da concreta prática dos tribunais, uma mera probabilidade, logo incerta quanto ao desfecho.
Não se nega que o simples facto de tal probabilidade existir representa, no plano teórico, um adicional meio de defesa dos arguidos, uma vez que, pelo menos, a interposição do recurso seria sempre susceptível de accionamento ainda que sem qualquer tipo de garantias quanto ao desfecho da decisão atinente à sua admissão. Mas importa igualmente reconhecer que essa probabilidade, pela própria incerteza de que se revestia e a que o assento veio pôr cobro, não se pode ter como suficientemente 'forte' ou consolidada na actividade jurisdicional (e consequentemente na esfera jurídica dos particulares) para que a sua eliminação constitua fundamento suficiente para que o Tribunal acabasse por entender estarmos perante uma intolerável entorse ao princípio da igualdade, tanto mais quanto é certo que só em casos excepcionais e chocantes é que se poderá entender que a lei nova atenta intoleravelmente contra o princípio da igualdade que, assim, funciona num plano sincrónico e não diacrónico.
Existe, sem dúvida, uma margem de diferenciação decorrente da solução acolhida no assento, não tanto face à letra do aludido artigo 21º mas antes face
à concreta prática judicial a coberto dele efectivamente desenvolvida, contudo, tal diferenciação não se pode ter por intolerável ou arbitrária, porquanto a razão de ser da aludida estatuição reside precisamente na necessidade de pôr termo à incerteza na interpretação e aplicação do direito legislado.
Acresce que a incerteza quanto à aplicação do direito existente antes da prolacção do assento, essa sim, é que poderia ser tida como representando um sacrifício da igualdade de tratamento dos arguidos, porquanto a uns seria admitido recurso da decisão da Relação sobre o despacho de pronúncia e a outros não, tudo dependendo da orientação jurisprudencial seguida por quem, em cada caso, decidisse da sua admissibilidade.
Razões estas pelas quais se entende não haver violação do princípio da igualdade.
4. Entende o recorrente que o assento contrasta ainda com o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição, pois 'constitui uma limitação das garantias de defesa dos réus nos processos em que (como no caso sub judice) se aplica o Código de Processo Penal de 1929, atento o disposto no artigo 645º deste Código'.
Dispõe este preceito do Código de Processo Civil:
' É permitido recorrer dos despachos, sentenças ou acórdãos, proferidos por quaisquer juízes ou tribunais, em matéria penal, que não forem expressamente exceptuados por lei'.
Trata-se, portanto, de saber se a solução do assento, iluminada pelo disposto no artigo 645º do Código de Processo Penal, se mostra conforme ao consignado no nº 1 do artigo 32º da Constituição, que estatui que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa'.
O Tribunal Constitucional tem sublinhado, em sucessivas ocasiões, que o direito ao recurso constitui, sem dúvida, uma relevantíssima garantia de defesa dos arguidos. Sem embargo, tal direito não é um direito absoluto, em termos tais que tenha que ser reconhecido em relação a toda e qualquer decisão judicial e sempre com esgotamento da estrutura vertical das instâncias. Com efeito, como resulta dos Acórdãos nº 31/87 e nº 259/88 (publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1987 e de 11 de Fevereiro de
1989), admite o Tribunal que haja casos em que a faculdade de recorrer ou não existe ou é limitada em certas fases do processo, sem que daí decorra a afectação do conteúdo essencial do direito de defesa do arguido. Tal como casos haverá em que o recurso é admitido apenas em um grau, portanto sem exaustão da cadeia hierárquica jurisdicional.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos nº 40/84, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Julho de 1984, nº 31/87 já citado, nº 178/88, loc. cit., de 30 de Novembro de 1988, nº 219/89, idem, de 30 de Junho de 1989 e nº 209/90, idem, de 19/6/90) tem apontado no sentido de que a garantia de um duplo grau de jurisdição existe, enquanto garantia de defesa dos arguidos em processo criminal, quanto a decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Mas daí não decorre que tal garantia postule a possibilidade de recorrer de todo e qualquer acto do juiz. O que será tanto mais compreensível quando, como no caso vertente, estamos perante uma decisão que reveste natureza interlocutória e que o despacho de pronúncia em primeira instância é (e já o foi efectivamente), em toda a sua extensão ( matéria de direito e de facto) susceptível de recurso para o tribunal da Relação, com o que se respeita integralmente o princípio do duplo grau de jurisdição.
A proceder a tese do recorrente estar-se-ia não a propugnar pela consagração de um 'duplo grau de jurisdição', mas sim de um 'triplo grau'. Ora, a este propósito já se escreveu expressivamente no Acórdão nº 178/88 atrás citado:
' (...) mesmo no processo penal, o legislador não está constitucionalmente obrigado a prever um triplo grau de jurisdição.
É que, se o direito ao reexame do caso em via de recurso é, nas hipóteses atrás apontadas, uma dimensão essencial do direito de defesa do processo penal de um Estado de direito, o mesmo não pode afirmar-se já quando o que está em causa é o reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior.
O facto de a lei não prever que, dos Acórdãos da Relação, se possa recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, muito principalmente, como é o caso, quando a decisão da 2ª instância não é condenatória, nem põe termo ao processo, de per si, de nenhum modo o desfigura em termos de ele deixar de ser a due process of law, a fair process.
Ora isto - ou seja, o tratar-se de um processo justo e leal, um processo de que não possa dizer-se que impõe ao arguido um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa - é a ideia geral a que, em último termo, se reconduz o princípio constitucional das garantias de defesa (cfr., neste sentido, o Acórdão nº 337/86, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986).'
Logo, não se verifica, no caso, violação do disposto no nº 1 do artigo
32º da Constituição.
5. Invoca ainda o recorrente que ' ao ter considerado 'aplicável, portanto, o Assento de 24.1.90 ao caso sub judice, não importando que os factos imputados ao ora reclamante sejam anteriores àquele Assento' - despacho recorrido fls 29v - (como é o caso) e ao ter aplicado ao caso que foi submetido pelo recorrente à apreciação do Venerando Cons. Pres. do STJ a norma que constitui tal Assento, aplicou o despacho recorrido norma que viola também o disposto no nº 4 do artigo 29º da Constituição, dado que, como vem defendendo Figueiredo Dias (vid. CPP Anotado de Maia Gonçalves Ed. 1982, pág. 22), o princípio da legalidade tem incidência também processual e não apenas substantiva'.
Ou seja, o recorrente entende que a norma do assento é inconstitucional
'por violar o princípio da não aplicação retroactiva da interpretação mais desfavorável para o arguido, que resulta por analogia, e a contrario, do nº 4 do artigo 29º da Constituição, violando, por conseguinte, o douto despacho recorrido, salvo o devido respeito, a norma constante do artigo 207º da Constituição'.
Dispõe o aludido nº 4 do artigo 29º da Constituição:
' Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'.
A propósito dos pressupostos de aplicação deste artigo da Constituição, o Tribunal Constitucional, por duas ocasiões (Acórdãos nº 155/88 e 70/90, publicados, respectivamente, na II Série do Diário da República, de 17 de Setembro de 1988 e de 17 de Julho de 1990) , teve oportunidade de expressar o entendimento segundo o qual o nº 4 do artigo 29º da Constituição (aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido) não impõe a aplicação retroactiva dos artigos 215º e 217º do Código de Processo Penal de
1987 (sobre prisão preventiva) ainda que de conteúdo mais favorável ao arguido
(em lugar do § 1º do artigo 273º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro).
A este propósito escreveu-se no Acórdão nº 70/90 (onde era directamente impugnada a constitucionalidade do artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 78/87):
' O processo em causa foi iniciado antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal de 1987, ou seja, antes de 1 de Janeiro de 1988, pelo que o seu processamento deverá continuar a reger-se pelas normas do Código de Processo Penal de 1929, por força do preceituado no nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº
78/87, de 17 de Fevereiro, não se verificando qualquer violação da Constituição, designadamente do nº 4 do seu artigo 29º, que determina aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido, porquanto esta norma constitucional apenas visa a lei criminal substantiva e as normas que fixam os prazos de prisão preventiva são normas processuais puras ou quando muito normas processuais quase substantivas mas cujo regime está umbilicalmente ligado ao tipo de processo em que se inserem.'
Esta conclusão decorria do entendimento de que o citado artigo constitucional visava apenas a aplicação da lei criminal, ou seja, da lei penal de carácter substantivo que é a competente para definir crimes (bem como os pressupostos das medidas de segurança) e as respectivas penas (tal como as medidas de segurança), não se aplicando aos preceitos processuais, para os quais rege o artigo 32º da Lei Fundamental, onde não se prevê qualquer princípio de aplicação retroactiva de normas mais favoráveis.
Esta decisão do Tribunal foi objecto de apreciação crítica por parte de J. J.GOMES CANOTILHO na Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3792, pág. 84 e ss., onde, depois de concordar com a solução do aresto quanto à não violação do princípio da igualdade (por estarmos perante uma questão que se insere no
'problema geral da sucessão no tempo das leis processuais penais' e 'todos os esquemas intertemporais apresentarem vantagens e inconvenientes', a opção por um deles 'cabe na discricionaridade do legislador' e por isso não se poder falar em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade ), manifesta
'sérias reticências [por se dar por demonstrado] que os 'candidatos positivos' reentrantes no âmbito do artº 29º/4 da CRP se limita[re]m às leis penais materiais ou substantivas'.
No essencial, GOMES CANOTILHO entende que o princípio do tratamento mais favorável ao arguido abrange não apenas o direito material sancionatório, mas também as normas processuais de natureza substantiva, propendendo a considerar como tais, na senda do ensino de FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, I, Coimbra, 1981, pág. 32, e Direito Processual Penal, 1988/89, Secção de Textos da U.C., pág 10) 'as normas processuais penais que condicionem a responsabilidade penal ou contendam com os direitos fundamentais do arguido ou do recluso'. Pelo que, no caso do citado Acórdão referente aos prazos de prisão preventiva, o Professor de Coimbra entende que ' as normas do 'direito legal processual' referentes à prisão preventiva não podem deixar de participar da função materialmente garantística das garantias processuais penais reconhecidas na Constituição' e portanto que se justificaria a 'aplicação retroactiva da lei processual penal reguladora dos prazos de prisão preventiva mais favorável ao arguido'.
Em abono de tal entendimento invoca este Autor o princípio da conformidade dos actos do Estado com a Constituição ( artº 3º, nº 3 da C.R.P.) e a aplicabilidade directa dos direitos, liberdades e garantias ( artº 18º, nº 1 da Lei Fundamental) uma vez que 'nem sempre se toma em atenção que os órgãos jurisdicionais são, eles próprios, entidades públicas vinculadas pelos direitos, liberdades e garantias', que assim devem ser entendidos como 'medidas materiais das decisões jurisdicionais', como 'normas de decisão para a interpretação e aplicação do 'direito da lei'.' Razão pela qual conclui que ' a interpretação do artigo 215º/1/c do Código de Processo Penal mais conforme com os direitos, liberdades e garantias é a de, não obstante a regra do artigo 7º, nº 1 [ do D.L.] 78/87, aplicar retroactivamente aquela disposição mesmo aos processos formalmente regulados pela lei processual antiga. Ao fazer isto, o juiz está a interpretar e aplicar o direito legal tomando como 'direito de decisão' os direitos, liberdades e garantias'.
Posteriormente, quer a 2ª Secção quer a 1ª Secção do Tribunal Constitucional tiveram ocasião de recordar esta orientação jurisprudencial a que temos vindo a aludir, bem como a citada referência crítica de GOMES CANOTILHO, para apreciação de recursos interpostos de decisões judiciais que desaplicaram com fundamento em inconstitucionalidade a norma do artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 78/87, por violação do disposto nos artigos 29º, nº 4 e 32º, nº 1 da Constituição (Acórdão nº 250/92, publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Outubro de 1992 e Acórdão nº 451/93).
Aí se entendeu estar em causa ' a questão da constitucionalidade de normas que têm a ver directamente com a pena aplicável', e, depois de estabelecer o contraponto entre o regime do artigo 409º do Código de Processo Penal de 1987 e o do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929, concluiu-se que 'apesar de o nº 2 do § 1º desse artigo 667º assegurar nesse caso a defesa dos arguidos, tem-se como certo que a norma em questão, ao permitir a agravação da pena, em recurso interposto apenas pelo arguido, ofende o princípio consignado na parte final do nº 4 do artigo 29º da Constituição, ou seja, o princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.'
Em abono de tal entendimento o aresto em causa recordou a opinião de FIGUEIREDO DIAS ( Direito Processual Penal, Lições do ano de 1988/89, Secção de Textos da Faculdade de Direito de Coimbra, capítulo I, § 4º, III, 4.) segundo o qual ' [...] importa que a aplicação da lei processual penal a actos ou situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infracção cometida no domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da legalidade. Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que ocorra em processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, numa limitação do seu direito de defesa
(artigo 5º, nº 2, alínea a) [ do Decreto-Lei nº 78/87, na redacção do Decreto-Lei nº 387-E/87, de 29 de Dezembro].'
Neste contexto os citados arestos julgaram inconstitucional, por violação da parte final do nº 4 do artigo 29º da Constituição, o artigo 7º, nº 1, do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, na parte em que ele manda aplicar aos processos pendentes o corpo e o § 1º, nº 2, do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929 (reformatio in pejus).
À luz deste entendimento, dir-se-á, pois, que o parâmetro do nº 4 do artigo 29º da Constituição procede não apenas para as normas de direito penal substantivo mas também no domínio do direito penal adjectivo quando estejam em causa questões processuais de natureza 'quase-substantiva', que assim se aproximariam da ratio do preceito constitucional em causa.
Admitindo que o direito ao recurso, enquanto garantia de defesa do arguido, prefigura uma questão de natureza processual 'quase substantiva', e que, portanto, haveria que aplicar ao arguido o regime legal que lhe fosse mais favorável, poder-se-ia, de facto, como o faz o recorrente, propugnar pela não aplicação da norma do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75 com a sobreposição interpretativa do Assento de Janeiro de 1990, uma vez que este complexo normativo obsta a que seja admitido recurso da decisão da Relação para o STJ quando o regime da lei anterior o admitia.
Só que, como já atrás se disse, não está em causa a contraposição entre dois regimes legais de sinal contrário, um mais favorável e o outro menos favorável ao arguido. O que está em confronto é um regime (novo) decorrente do Assento, que inviabiliza o pretendido recurso, e um regime (anterior) decorrente do citado Decreto-Lei ( que dispunha, recorde-se, que 'dos despachos de pronúncia e não pronúncia cabe apenas recurso para o tribunal da relação') cuja interpretação jurisprudencial, embora contraditória (e daí a justificação mesma do Assento) não poderia ser considerada como garantindo efectivamente recurso para o STJ da decisão da Relação, uma vez que em alguns casos tal recurso era admitido e noutros não o era. Logo, em boa verdade, não se pode falar de um regime novo que seja mais desfavorável ao arguido por contraponto a um regime anterior que dispensasse ao mesmo um tratamento mais benevolente.
Como o Assento interpretativo se sobrepõe à própria norma e com ela forma um complexo normativo incindível, cujos efeitos, conforme já se deixou dito, retroagem à data da emissão da própria norma, não há verdadeiramente qualquer confronto de distintos regimes legais, pelo que improcede a invocada violação do nº 4 do artigo 29º da Constituição.
III
Termos estes em que o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, com a interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1990, e consequentemente negar provimento ao recurso.
Lisboa, 2 de Março de 1994
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Luís Nunes de Almeida