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Proc. nº 236/93
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e B., com os sinais dos autos e na qualidade de comproprietários de um prédio urbano sito na Avenida ------------------, nº
----------------, em Lisboa, vieram interpor, em 16 de Janeiro de 1990, impugnação, denominada por eles como recurso, relativamente a um despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa em 14 de Novembro de
1986, através do qual lhes era imposto o pagamento de duas quantias, a título de compensações devidas ao município. O recurso foi dirigido ao 11º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, arguindo os recorrentes a nulidade do referido despacho, proferido no processo nº 1096/0B, de 1985.
Invocaram que o referido imóvel fora arrendado na sua totalidade em 1960 ao Instituto ----------, instituto integrado na Direcção-Geral de Assistência do então Ministério da Saúde e Assistência, tendo depois passado a ser inquilina do mesmo edifício a Associação --------------- de Lisboa, a qual tinha como associado o referido Instituto --------. Em 1970, a nova inquilina obtivera licença camarária para construir no edifício um ----- andar recuado, levando a cabo tal construção, sem oposição dos senhorios. A mesma entidade construíra no logradouro do edifício um barracão, implantado a título precário, para funcionamento de uma copa-bar, sala de recreio e leitura, destinada à utilização das pessoas instaladas no lar de enfermeiras e alunas da escola de enfermagem que funciona no edifício locado. Em virtude da construção do novo andar e da implantação do barracão, a Câmara Municipal de Lisboa impusera aos senhorios, ora recorrentes, o pagamento das quantias de 843.000$00
(inexistência de estacionamento) e de 2.568.240$00 (ocupação do logradouro), a título de compensação. Fundamentara a imposição destes encargos com a
'legalização de obras aos vários níveis do edifício e mudança de utilização das habitações para actividade terciária' (formulação de informação sobre a qual recaíra o despacho recorrido). Tal imposição seria nula por falta de veracidade dos pressupostos de facto em que se fundamentava o despacho recorrido e por inexistência de cobertura legal para as mesmas, traduzindo este invocado despacho um acto administrativo de criação e lançamento de um imposto não permitido por lei (arts. 88º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, e nº 4 do art. 1º da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro). Referindo terem oportunamente interposto um recurso contencioso nos tribunais administrativos, afirmaram que o Tribunal Administrativo de Círculo se considerara incompetente em razão da matéria, por sentença transitada em julgado em 21 de Dezembro de 1989. Concluíram no sentido da procedência do novo recurso.
Foi obtida informação da repartição camarária competente (Divisão de Receitas da Câmara Municipal de Lisboa), de que se tratara da legalização de obras não autorizadas, tendo a compensação pela ocupação do logradouro sido determinada em função do despacho 166/P/84 e a compensação pela ausência de estacionamento sido fixada nos termos do art. 12º da Portaria nº 274/77, de 19 de Maio (a fls. 42).
Por sentença proferida em 19 de Fevereiro de 1993, foi julgada procedente esta impugnação, tendo sido decretada a anulação da liquidação efectuada pela Câmara Municipal de Lisboa e ordenada a eventual restituição aos impugnantes das quantias que tivessem prazo. Pode ler-se nesta decisão:
'De entre as ilegalidades susceptíveis de afectar a norma regulamentar a cuja sombra foi exigida e liquidada aos impugnantes a quantia referida [art. 12º da Portaria nº 274/77], avulta a da inconstitucionalidade, sendo certo que aos tribunais está vedado aplicar normas que infrinjam a Constituição [...].
E a questão que se coloca consiste na caracterização do que seja o encargo do pagamento ao município de Lisboa da «quantia a fixar» a que se reporta o assinalado segmento normativo.
A ter aquele encargo o tratamento legislativo a que estão sujeitos os impostos, tendo em consideração o que se dispõe nos artigos 106º,
167º e 168º da primitiva versão da CRP vigente à data da emissão da Portaria onde se insere a norma sub specie, seria este inválido porque criado por diploma ao qual a Lei Fundamental não conferia poder para tal criação.
Diferente posicionamento, quanto ao caso concreto, haveria de seguir-se se porventura se concluísse estarmos perante uma «taxa», ou mais correctamente perante um encargo que pudesse sofrer tratamento idêntico a esta forma de imposição pecuniária.' (a fls. 50 dos autos)
Depois de citar jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional atinente a este encargo e vários passos de obras de especialistas em Direito Fiscal, decidiu o Tribunal recorrido que o encargo de compensação em causa era um verdadeiro imposto e não uma taxa:
'Atento o exposto, é de concluir que o preceituado na parte final do art. 12º da Portaria 774/77, de 19-5, acima referido, e ao abrigo do qual foi liquidado e cobrado o montante impugnado, bem como na parte em que permite cobrança para compensação por ocupação do logradouro, sofre de inconstitucionalidade, pelo que, nos termos do art. 207 da Lei Fundamental, é vedado aos tribunais a sua observância'. (a fls. 52 dos autos)
Para além do vício de inconstitucionalidade, ocorreria ainda ilegalidade, por falta de base legal para imposição do encargo de compensação, através de regulamento aprovado por portaria.
2. Desta sentença interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Agente do Ministério Público, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido por despacho de fls. 61 vº.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, nele tendo apresentado alegações o Ministério Público, a Câmara Municipal de Lisboa e os recorridos particulares.
A entidade recorrente concluiu do seguinte modo as suas alegações:
'1º - A norma da última parte do artigo 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, enquanto cria um encargo patrimonial a suportar pelo construtor, como condição de o dispensar do cumprimento das obrigações mencionadas nos parágrafos daquele artigo 12º (obrigatoriedade de nas construções existir uma área certa para estacionamento), é inconstitucional por violação dos artigos 106º nºs 2 e
3, e 167º, alínea o), da Constituição (versão originária).
2º - Deve, assim, confirmar-se a decisão recorrida, na parte impugnada' (a fls.
74 dos autos)
O Município de Lisboa, representado pela Câmara Municipal respectiva, sustentou a não inconstitucionalidade do preceito desaplicado, considerando que o mesmo mais não faz do que estabelecer um limite jurídico à actividade de construção civil, susceptível de ser removido através do pagamento de uma taxa, fixada em função da utilidade decorrente de tal remoção.
Os recorridos, por seu turno, sustentaram igualmente o juízo de inconstitucionalidade acolhido na sentença recorrida.
4. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
5. Entrando no conhecimento do objecto do recurso, desde já se deixará afirmado que o recurso interposto não merece provimento e que, por isso, deve ser confirmada a sentença recorrida, na parte em que julgou inconstitucional a última norma contida no art. 12º da Portaria nº 274/77, de 19 de Maio.
Como nota o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, o objecto do recurso de constitucionalidade abrange apenas a norma do
último parágrafo do art. 12º daquela portaria, sendo certo que - diferentemente do afirmado no relatório de sentença recorrida - 'a Divisão de Receitas da Câmara Municipal de Lisboa não fundamentou a exigência de «compensação» por
«ocupação do logradouro» no aludido artigo 12º [da Portaria nº 274/77] (invocado apenas como fundamento da exigência de «compensação» por «ausência de estacionamento»), mas sim no «despacho 166/P/84» (cfr. informação de fls. 42), aliás já invocado na informação de fls. 18 e 19, sobre a qual recaiu o impugnado despacho do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa'. (a fls 68 dos autos)
6. Dispõe o art. 12º da Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, que aprovou o Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, sob a epígrafe 'estacionamentos e garagens':
'Em todas as zonas deverá ser considerada uma área para estacionamento equivalente a 12,5 m2 de área útil de estacionamento por fogo.
Para instalações industriais deverá ser prevista para tal fim uma
área a utilizar pelo pessoal igual a um décimo da área coberta total de pavimentos.
Para instalações terciárias, grandes armazéns e demais locais abertos ao público, uma área de estacionamento equivalente a um quarto de área
útil de edificação.
Para salas de espectáculo e locais de reunião deverão prever-se
25m2 de área de estacionamento por cada vinte e cinco lugares.
Para hotéis deverão prever-se, para a mesma finalidade, 25 m2 por cada cinco quartos de hóspedes.
Caso o município reconheça que as condições locais tornam impossível ou inconveniente a aplicação das presentes disposições, o construtor poderá ser dispensado do seu cumprimento, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar, mediante aplicação à área deficitária de estacionamento de um preço por metro quadrado equivalente a 15% do custo unitário médio estimado para a construção'.
A constitucionalidade desta norma, constante do parágrafo final desaplicado na sentença recorrida, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional em diferentes Acórdãos, de que se destacam os seguintes: nº 277/86, 313/92 e 836/93, o primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º volume, págs 383 e seguintes, o segundo no Diário da República, II Série, nº 41, de 18 de Fevereiro de 1992, e o terceiro ainda inédito.
7. Nesta jurisprudência reiterada, e que agora se reafirma, tem-se considerado que é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre a criação de impostos e sistema fiscal, tendo o referido encargo de compensação a natureza de imposto. Pode ler-se no primeiro daqueles acórdãos:
'Nos casos em que a actividade do Estado se traduziria na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares - como se poderia querer ver na hipótese dos autos -, já recentemente se entendeu que só haveria taxa quando essa remoção
«possibilita a utilização de um bem semi-público» (cfr. Teixeira Ribeiro, «Noção Jurídica de Taxa», in Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3727, ano 117º, p. 289 e segs.)
A adoptar-se esta última tese estaríamos iniludivelmente, no caso em apreço, perante um imposto.
Mas, ainda que assim se não entenda, sempre haverá que reconhecer que o «encargo de compensação» a que se reportam os autos se não configura como uma taxa, na acepção tradicional deste conceito jurídico.
Efectivamente, se a ausência de uma área de parqueamento própria vai conduzir a uma maior utilização das áreas de parqueamento público porventura existentes, a verdade é que o pagamento do encargo de compensação em causa não confere o direito à utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parqueamento público, nem sequer constitui o município na obrigação de criar ou manter tais áreas.
Estaríamos, assim, perante aquilo a que alguma doutrina denomina como contribuições ou tributos especiais [...], por vezes considerados como tertium genus, para além das taxas e dos impostos [...].
Assim, e no caso vertente, a ausência de áreas de parqueamento privado ocasiona um acréscimo de despesas para o município, por este se ver
«forçado» a aumentar as áreas de parqueamento público'. (Acórdãos cit., págs.
386-387).
Aceitando esta caracterização do encargo de compensação referido, o acórdão nº 313/92 sustentou igualmente que tal contribuição para maior despesa não afastava que as compensações especiais tivessem de ter um tratamento legislativo semelhante àquele que é exigido aos próprios impostos:
'Na realidade, tem a doutrina fiscal portuguesa vindo a entender que, muito embora haja justificação económico-financeira para uns tributos serem havidos como compensações ou contribuições especiais, do ponto de vista jurídico estas e os «impostos» propriamente ditos têm de sofrer o mesmo tratamento (cf. Cardoso da Costa, ob. cit., p. 15, Sá Gomes, idem, p. 97, e Alberto Xavier, idem, p.
59).
Aos argumentos utilizados pela doutrina, designadamente aqueles que se podem encontrar nos referidos autores, não são oponíveis quaisquer outros que agora este Tribunal divise, como já não divisava aquando da prolação do aludido Acórdão nº 277/86.
Daí que se tenha de concluir que o tributo instituído pela norma de que curamos deva ser perspectivado como um «imposto» quanto ao tratamento legislativo que há-de sofrer tal compensação' (Diário cit., pág. 1848).
Nada há a acrescentar a esta visão já sedimentada da presente questão de constitucionalidade.
III
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional.
a) Julgar inconstitucional, por violação dos arts. 106º, nºs 2 e 3, e 167º, alínea o), da versão originária da Constituição, a norma constante do último parágrafo do art. 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se, na parte impugnada, a decisão recorrida.
Lisboa, 2 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa