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Processo nº 62/92 Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1.- O Tribunal Colectivo do 3º Juízo Criminal de Lisboa, por acórdão de 16 de Dezembro de 1988, condenou, entre outros, A., na pena única de 15 anos de prisão e 460 dias de multa à razão diária de 200$00, ou, em alternativa, 306 dias de prisão, como autor de oito crimes de furto, sete de falsificação de documentos autênticos, dois de falsificação de documentos particulares e um de introdução em local vedado ao público.
Recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa o Ministério Público e aquele arguido, tendo este, nas respectivas alegações, suscitado as questões de inconstitucionalidade do regime dos poderes da Relação na apreciação da matéria de facto e da falta de fundamentação das respostas aos quesitos.
A Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Maio de
1989, negou provimento a ambos os recursos, embora tenha alterado o acórdão recorrido quanto à pena de multa.
Inconformado, interpôs o citado arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mantendo a suscitação da tese de inconstitucionalidade dos poderes da Relação em matéria de facto, mas deixando de aludir à questão da falta de fundamentação das respostas aos quesitos.
O Supremo Tribunal de Justiça, em aresto de 8 de Março de 1990, negou provimento ao recurso.
2.- Desta decisão recorreu A. para o Tribunal Constitucional, tendo por objecto a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal (CPP) de 1929, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, enquanto delimita os poderes das Relações na apreciação da matéria de facto nos recursos para elas interpostos das decisões do tribunal colectivo.
O Tribunal Constitucional, pelo Acórdão nº 236/91, da 2ª Secção, de 23 de Maio de 1991, concedeu provimento ao recurso, por entender dever seguir o decidido no Acórdão nº 340/90, de 19 de Dezembro de
1990, tirado em plenário, para uniformização de jurisprudência, que julgara inconstitucional aquela norma, na aludida interpretação (publicado, este último aresto, no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1991).
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 80º, nº 2, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, foi proferido acórdão por esse Tribunal, em 18 de Dezembro seguinte, o qual decidiu revogar o acórdão da 2ª instância e determinar a baixa dos autos a essa instância para, sendo possível pelos mesmos juízes, conhecer do recurso, tendo em atenção a norma do artigo 665º do CPP de 1929, tal como formulada ficou na fundamentação do aresto que, oportunamente, se descreverá.
Ao proceder assim, aquele Supremo recusou a aplicação dessa norma, na redacção advinda do Decreto nº 20 417, de 1 de Agosto de 1931, por a considerar 'não constitucional'.
Então, o respectivo magistrado do Ministério Público, invocando imperativo constitucional e legal - Constituição da República (CR), artigo 280º, nºs. 1, alínea a), e 4, Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, artigo 70º, nº 1, alínea a), e Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, artigo
3º, nºs.1, alínea d) e 2 - recorreu do novo acórdão para o Tribunal Constitucional, fundando-se na recusa de aplicação da norma do citado artigo
665º, sem a sobreposição do Assento de 1934, por violação do disposto no artigo
32º, nº 1, da CR.
Uma vez recebidos os autos neste Tribunal, o Senhor Conselheiro Presidente, por despacho de 18 de Fevereiro de 1992, ao abrigo do preceituado no artigo 79º-A da Lei nº 28/82, e obtida a concordância do Tribunal, determinou a intervenção do plenário no julgamento do presente processo.
3.- Alegou apenas o Senhor Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
'1.- Não é inconstitucional, pois não viola as garantias de defesa, a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do Decreto com força de lei nº 20 417, de 1 de Agosto de 1931, na parte em que define os poderes das Relações nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos, lida sem a interpretação restritiva do Assento de 29 de Junho de 1934;
2.- Deve, assim, conceder-se provimento ao recurso'.
Para atingir este juízo conclusivo, o magistrado alegante fixou o objecto do recurso na questão de constitucionalidade da norma do artigo 665º, sem a sobreposição interpretativa do Assento citado, e apenas na parte em que delimita os poderes de cognição das Relações nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II
1.- Os textos em causa
Nos termos do nº 1 do artigo 32ºda CR:
'O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa'.
Se esta norma não mereceu quaisquer alterações desde a versão originária de 1976, já o artigo 665º do CPP de 1929 sofreu algumas vicissitudes até se fixar definitivamente.
Assim, preceituava-se na versão primeira do Código, aprovado pelo Decreto nº 16 489, de 15 de Fevereiro de 1929:
'As Relações conhecerão de facto e de direito, nas causas que julguem em 1ª instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ªinstância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, salvo o disposto no artigo 517º'.
Pelo Decreto com força de lei nº 20 147, de 1 de Agosto de 1931, foi modificada a redacção do normativo, que passou a ser a seguinte:
'As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em 1ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos'.
Finalmente, face às divergências suscitadas pela interpretação desta redacção, o Supremo Tribunal de Justiça lavrou assento, em
29 de Junho de 1934 (publicado no Diário do Governo, I Série, de 11 de Julho de
1934), com o seguinte teor:
'O artigo 665º do Código de Processo Penal, modificado pelo decreto nº 20 147, de 1 de Agosto de 1931, relativamente à competência das relações em matéria de facto, tem de entender-se no sentido de as mesmas Relações só poderem alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos'.
2.- Da delimitação do objecto do recurso
Como melhor se verá, ao abordar-se a fundamentação do acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, face ao acórdão do Tribunal Constitucional lavrado nestes mesmos autos, concedendo provimento ao recurso por julgar inconstitucional a norma constante do artigo 665º do CPP de 1929, com a interpretação que lhe foi dada pelo assento de 29 de Junho de 1934 - doravante designado somente por assento - houve por bem reformular o dito artigo 665º mediante um expediente integrativo justificado pelo nº 3 do artigo
10º do Código Civil, para o efeito recusando aplicar a norma do artigo 665º, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto nº 20 417, a qual, em sua tese, não assegura todas as garantias de defesa, violando o disposto no nº 1 do artigo 32º da CR.
Assim se compreende a reacção do representante do Ministério Público nesse Supremo Tribunal e a delimitação que nas alegações apresentadas se faz relativamente ao objecto do recurso: está em causa, e como tal sujeito à censura do Tribunal Constitucional, o decidido quanto à rejeição daquela norma, desprovida da interpretação do assento, e não a norma que se entendeu criar, no respeito pelo espírito do sistema.
Consequentemente, as considerações seguintes obedecerão a esta delimitação do objecto do recurso.
3.- Da fundamentação do acórdão recorrido
O Acórdão nº 340/90, deste tribunal, considerou dever incluir-se o recurso das decisões do tribunal colectivo em matéria de facto no elenco das garantias de defesa que o processo penal deve assegurar, de acordo com o artigo 32º, nº 1, da CR, e, a essa luz, concluiu que a norma daquele artigo 665º, com a interpretação dada pelo assento, não constitui garantia suficiente para os efeitos da norma constitucional, quando conjugada com os artigos 466º e 469º do mesmo Código.
O Acórdão nº 236/91, proferido nos presentes autos ao abrigo do artigo 79º-D da Lei nº 28/82, entendeu ser de manter a doutrina emanada do anterior.
Por sua vez, o acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça baseou a sua decisão na argumentação que se passa a transcrever, no que releva:
'2.- A norma julgada inconstitucional é o citado artigo 665º, com a sobreposição do mencionado Assento de 29 de Junho de 1934.
Poderia pensar-se que a eliminação do referido Assento afastaria, só por si, a inconstitucionalidade da norma que ele interpretou. Não parece, no entanto, que esta conclusão seja segura, até porque a interpretação do Assento revela-se como a que parece impôr-se em face do disposto no artigo
712º, nº 1, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável.
De resto, o Acórdão do Tribunal Constitucional não diz que o artigo 665º, sem o Assento é constitucional. Ao referir-se sempre àquele preceito, com a interpretação constante do Assento, o Acórdão toma uma posição correcta, porque o artigo é, em rigor, inseparável do Assento e, por isso, o qualifica de norma 'complexa'. Não só o Acórdão não o diz como não é lícito inferir dele tal conclusão a contrario.
Daqui que a norma do artigo 665º, em si própria, deva considerar-se não constitucional, no segmento em causa, porquanto subsistem, perante ela, as limitações dos poderes das Relações na apreciação da matéria de facto constante das decisões do colectivo (relembrem-se a falta de registo da prova e a não fundamentação das respostas aos quesitos), sendo, por isso, inaplicável, pelos tribunais (artigo 207º da Constituição).
Deste modo, não havendo norma para regular o caso concreto e não podendo o tribunal abster-se de julgar com o fundamento na falta de lei (nº 2 do artigo 3º do Estatuto dos Magistrados Judiciais - Lei nº
21/85, de 30 de Julho), por um lado, e, por outro, não sendo possível a repristinação da norma anterior (redacção originária do artigo 665º do Código de Processo Penal) por se tratar de inconstitucionalidade superveniente (aliás, o preceito, naquela redacção, seria claramente inconstitucional por limitar a cognição das Relações à matéria de direito), impõe-se ao julgador criar ele próprio a norma adequada, como se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema (nº 3 do artigo 10º do Código Civil), a fim de integrar a lacuna.
Para o efeito, longe de proceder a uma integração praeter legem (a uma livre e desvinculada determinação ou criação do direito), deve o julgador fazer uma integração secundum legem, mediante uma adequação sistemática, com vinculação, portanto, às exigências de unidade e coerência dogmática normativamente postuladas pelo sistema (Cfr., Castanheira Neves, 'O Princípio da Legalidade', no Boletim da Faculdade de Direito, número especial,
1984, pág. 357). Deverá, em suma, o julgador encontrar a solução dentro de todo o sistema jurídico, considerado no seu todo lógico e na sua unidade sistemática, e não fora dele, pois só assim evitará criar arbitrariamente o direito, violando o sistema.
Aqui, o sistema que interessa é fundamentalmente constituído pelos princípios da chamada 'constituição processual criminal', contidos no artigo 32º da Constituição da República, pelas normas do Código de Processo Penal de 1929 e do novo Código de Processo Penal de 1987.
Pensa-se ser possível extrair de todos eles uma solução para o período necessariamente provisório ou transitório em causa que, ao mesmo tempo, assegure aquele mínimo de garantias de defesa do arguido na fase processual de que se trata, e possa integrar-se na estrutura adjectiva do Código de 1929, sem a abalar ou destruir naquilo que está de acordo - e é sem dúvida a sua maior parte - com os parâmetros constitucionais.
Enunciemos, por conseguinte, a norma que aqui se elege, acrescentando-lhe depois alguns esclarecimentos pertinentes:
Artigo 665º
(Poderes das Relações)
1.- As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em 1ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.
2.- As Relações podem anular as decisões do tribunal colectivo, mesmo oficiosamente, quando reputem deficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos formulados ou quando considerem indispensável a formulação de outros quesitos, ou quando haja erro notório na apreciação da prova.
3.- As Relações podem determinar oficiosamente a renovação da prova para evitar a anulação da decisão do tribunal colectivo.
4.- A decisão que determinar a renovação da prova é definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida em 1ª instância pode ser renovada.
5.- Havendo lugar a renovação da prova, intervêm na audiência os juízes do processo, sob a presidência do relator, observando-se, na parte aplicável, o disposto nos artigos 423º e 430º do Código de Processo Penal de
1987.
Pela redacção do nº 1 da norma transcrita, a competência das Relações em matéria de facto fica efectivamente alargada em relação à redacção constante do correspondente preceito do Código.
Quanto ao nº 2, chamou-se directamente ao artigo 665º os poderes de anulação já contemplados no nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente, mas aditando-se o caso de erro notório na apreciação da prova, por inspiração do novo Código de Processo Penal
(cfr. artigos 410º, nº 2, alínea c), e 428º, nº 2).
Relativamente ao nº 3, introduz-se na norma em causa a invocação da renovação da prova, que caracteriza os poderes das Relações na estrutura da nova lei de processo, e que possibilita ao tribunal de recurso fazer reproduzir perante si próprio determinada prova em vez de ordenar a anulação da decisão recorrida, nos termos previstos no nº 2.
O nº 5 limita-se a regular os trâmites da audiência de julgamento do recurso com renovação da prova em termos análogos aos do novo Código de Processo Penal.
Crê-se que, globalmente a norma enunciada vai ao encontro das mais prementes garantias de defesa constitucionalmente garantidas. A elas acresce ainda a existência de um grau de recurso das decisões das Relações para o Supremo Tribunal de Justiça, que, embora circunscrito à matéria de direito, pode levar este Tribunal a ordenar a baixa do processo à Relação quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (artigo
729º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente), o que não deixa de constituir certamente uma garantia suplementar quanto ao apuramento da matéria de facto'. (sublinhados originais).
4. Da parametricidade constitucional da norma do artigo
665º do Código de Processo Penal de 1929, com a redacção dada pelo Decreto nº
20 147, de 1 de Agosto de 1931
4.1.- À consideração deste Tribunal importa, assim, ajuizar se a norma do artigo 665º do CPP de 1929, na redacção oriunda do Decreto nº 20 147, desacompanhada da interpretação que o assento de 1934 lhe prestou, está ferida de inconstitucionalidade, por motivos semelhantes aos que ditaram o Acórdão nº
340/90, retomados pelo Acórdão nº 236/91 - ou outros que, porventura, decorram da especificidade do concreto caso.
O Supremo Tribunal de Justiça, no aresto ora recorrido, de 18 de Dezembro de 1991, entendeu dever considerar-se não constitucional, no segmento em causa, aquela norma, solitariamente aplicada,
'porquanto subsistem, perante ela, as limitações dos poderes das Relações na apreciação da matéria de facto constante das decisões dos colectivos
(relembrem-se a falta de registo da prova e a não fundamentação das respostas aos quesitos) [...]'.
Cremos que a leitura do preceito tal como a fez o Supremo é a correcta, na perspectiva jurídico-constitucional, única que ao Tribunal Constitucional compete censurar.
Afigura-se, no entanto, aconselhável, num primeiro momento, aludir, mesmo que brevemente, à génese do assento, o que melhor ajudará a compreender a inconformidade constitucional do normativo em causa.
É que o direito de recurso de decisões judiciais, ou seja, a consagração dos meios processuais destinados a submeter certas decisões proferidas por um tribunal a uma nova apreciação jurisdicional, por tribunal diferente, recortando-se hoje como evidente garantia dos cidadãos, nem sempre foi assim reconhecido, como, de resto, o Senhor Procurador-Geral Adjunto sublinha nas suas alegações.
Na verdade - e independentemente da eventual projecção do princípio do duplo grau de jurisdição na área constitucional - a norma em causa decorre de uma filosofia de instância única, muito marcante à
época, conexa inicialmente com a instauração do júri e os princípios da oralidade e da livre apreciação da prova, representando-se consequencial do princípio da imediação, com sindicabilidade limitada à figura da violação de lei.
Tendo em consideração a evolução sofrida pela norma do artigo 665º desde a sua primitiva redacção, escreveria sintomaticamente Luís Osório a este propósito:
'Estabeleceu-se o júri com o fim de o réu ser julgado por quem melhor o conhecesse e com inteira independência do poder central o julgasse; era, portanto, repugnante à sua razão de ser o conferir aos tribunais superiores o poder de revogar as suas decisões. Mais tarde o júri foi conservado por ser a forma mais expedita de fazer os julgamentos, evitando a redução a escrito das provas produzidas em julgamento. Este facto de não se escreverem os depoimentos incapacitava o tribunal superior de conhecer da matéria de facto. Esta mesma situação se manteve com a passagem do julgamento do júri para o tribunal colectivo. Foi por isso que o Código reconheceu, em regra, irrevogáveis as decisões do tribunal colectivo e do júri em matéria de facto'.
(Cfr.Comentário ao Código de Processo Penal Português, 6º vol., Coimbra, 1934, pág. 375
A inexistência de recurso da decisão da 1ª instância em matéria de facto já então era reconhecida como comportando inconvenientes e perigos, aos quais se pretendeu pôr cobro, numa perspectiva que hoje chamaríamos garantística.
4.2.- A versão originária do artigo 665º articulava-se com o disposto no Decreto com força de lei nº 13 225, de 9 de Março de 1927, o qual criara tribunais colectivos para o julgamento de crimes a que correspondesse pena maior ou pena de demissão (artigo 1º, ressalvadas as situações descritas no seu §
único), dispondo o artigo 17º julgarem tais tribunais de facto, sem recurso, segundo a consciência dos seus membros e com plena liberdade de apreciação, e, de direito, com recurso para a respectiva Relação.
Os tribunais colectivos tinham competência para decidir definitivamente em matéria de facto (cfr. a redacção inicial dos artigos 38º e 39º do Código), salvo havendo lugar a segundo julgamento pelo júri se anulada, por iníqua, a primeira decisão, hipótese a implicar redução da prova a escrito. Neste último caso, a Relação podia conhecer de facto e de direito
(artigo 517º).
O texto do artigo 665º foi alterado em 1931, nos termos já transcritos, por se reconhecer, consoante se retira do preâmbulo e do artigo 1º do Decreto nº 20 147, a 'necessidade de esclarecer e alterar algumas disposições' do novo Código (de 1929).
A alteração introduzida no texto alargou o poder cogniscitivo das Relações, que, desse modo, passaram a ter também competência para conhecer, de facto, as decisões dos tribunais colectivos, baseando-se, para o efeito, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos.
Não obstante, a modificação do texto levou um autor a interrogar-se: 'de que serve a lei conferir à Relação o poder de alterar o que decidiu, em matéria de facto, o tribunal colectivo, se, em regra, os autos não a habilitam a formar o seu juízo com aquela ponderação que se impõe sempre e principalmente tratando-se de um crime grave? A principal prova, quanto à descoberta dos agentes do crime, é a testemunhal. Mas se não ficaram reduzidos a escrito os depoimentos das testemunhas no plenário, como há-de a Relação modificar a decisão do colectivo?' [cfr. José Mourisca - Código de Processo Penal (Anotado), vol. IV, 1933, pág. 310].
Num curto estudo publicado pouco depois do assento, a Revista de Justiça, mostrando-se crítica quanto à iniciativa do Supremo, que terá, no seu entender, 'invalidado a faculdade que o artigo 665º do Código de Processo Penal conferia às Relações', não deixa, porém, de considerar não fazer sentido dar competência às Relações para alterar as decisões dos colectivos, em matéria de facto, e não lhes proporcionar todos os meios de prova de que elas carecem para as censurar: a modificação do preceito pelo Decreto nº 20 147 revelou-se, em geral, ineficaz. 'Nos recursos [escreveu-se nessa publicação] as Relações mantinham, quase sempre, as decisões dos colectivos, por os processos lhes não fornecerem toda a prova produzida no julgamento e por não lhes ser possível, em regra, modificar essas decisões em face duma prova que podia ter sido destruída no julgamento' ( cfr., 'O assento de 29-6-344', na Rev. cit., ano
19, nº 442, de 25 de Julho de 1934).
Na prática, a competência das Relações para conhecer da matéria de facto, permitia-lhes desprezar as respostas do tribunal colectivo que julgassem 'contrárias à lei e à verdade patente dos autos', como se lê no acórdão do Supremo de 11 de Maio de 1934 (in - Colecção Oficial, ano
33, págs. 136 e 137).
Para outros, os 'inconvenientes e perigos' da inexistência de recurso com a nova redacção não só não desapareceram, como se terão agravado. Assim opina a Gazeta da Relação de Lisboa, para a qual
'contendo o processo, quando subido à 2ª instância, todos os elementos, que tinha na 1ª instância, compreende-se que a Relação possa julgar, não só de direito, mas de facto; mas, sendo, em regra, orais os depoimentos das testemunhas, quer no processo criminal, quer no cível e no comercial, e, portanto, não tendo o processo na 2ª instância os mesmos, todos os elementos, que tinha na 1ª, como é que a Relação há-de poder julgar a matéria de facto?'
(sublinhados originais; Rev. cit., ano 46º, 1933, nº 16, pág. 252, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Novembro de 1932, reflectida também no breve comentário ao acórdão do mesmo tribunal de 6 de Junho de 1933 - a pág. 69 do ano 47º, 1935, nº 5, pág. 69).
Em vésperas do assento, respondendo a consulta feita, a Revista de Legislação e de Jurisprudência considerava evidente que a Relação, por lhe faltar a prova prestada oralmente na audiência de julgamento, só podia basear-se 'nos elementos dos autos que não possam ter sido afectados por essa prova que a Relação não pode apreciar, por não ter sido escrita no processo, nem perante ela produzida' (sublinhados originais).
E, logo a seguir:
'É esta a única interpretação admissível da lei para não cairmos num absurdo manifesto que poderia dar causa a decisões infundadas e iníquas', pois seria absurdo a alteração de um julgado com base em prova que aquele tribunal desconhece, como, outrossim, poderia a Relação, com base em parte da prova, ou numa prova que no julgamento se alterou, reformar injustamente uma decisão justa apoiada em toda a prova do processo, naquela que dele consta e mais na que no julgamento foi produzida (Rev. cit., ano 67,
1934-35, pág. 24).
4.3.- A redacção introduzida pelo diploma de 1931 gerou, por conseguinte, uma dialéctica argumentativa a proporcionar interpretações divergentes.
Como vimos, para uma das orientações jurisprudenciais mais significativas, as Relações não podiam modificar as decisões dos tribunais colectivos sem a defesa escrita dos réus em audiência ou sem documentação, superveniente ou já existente no processo, idónea para alterar aquelas decisões; nos termos de outra corrente, a latitude do poder das Relações permitia-lhes alterar a matéria de facto apurada por esses mesmos colectivos.
O assento optou pela primeira das apontadas vias, ou seja, interpretou a norma do artigo 665º no sentido de só ser possível às Relações alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância tendo em consideração os elementos constantes dos autos, não susceptíveis de ser contrariados mediante a prova obtida no julgamento, que haja determinado as respostas aos quesitos. Dito de outro modo, a Relação pode alterar as respostas do colectivo no caso dos elementos do processo não puderem ser contrariados por meio de prova produzida no julgamento.
A opção do assento face às orientações em confronto foi considerada lógica e inatacável pela Revista dos Tribunais (ano 51º, pág.
201), por se lhe representar intuitivo não poder a Relação esquecer a prova produzida em audiência de julgamento, sendo, por um lado, inviável reapreciá-la dada a sua oralidade e, por outro lado, não sendo de aceitar a possibilidade de reapreciação (ao menos parcial) se a prova tiver sido escrita em parte.
Não obstante, a competência 'reconhecida' às Relações pelo assento, em matéria de facto e nos processos julgados por tribunal colectivo, recortava-se restritamente. Como observou Maia Gonçalves, só era lícito às Relações alterar as decisões da primeira instância quando do processo constassem todos os elementos de prova que serviram de base às decisões ou quando se tratasse de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos; qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impedia as Relações de alterar as respostas aos quesitos, espartilhando-lhes os poderes cognitivos, uma vez que não podiam proceder a completa indagação da matéria de facto, quando a isso solicitadas por via de recurso (cfr. Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, Coimbra, 1984, pág. 689).
No comentário deste autor surpreende-se uma reserva que igualmente tem vindo a ser assinalada na jurisprudência deste Tribunal.
Com efeito, no Acórdão nº 219/89 - publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Junho de 1989 - a primeira das decisões do Tribunal que se pronunciou sobre a constitucionalidade da norma em causa, na interpretação que o assento lhe deu, entendeu-se que, no rigor dos princípios e no plano garantístico, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução encontrada para a questão de facto como da resposta dada à questão de direito.
E, acrescentou-se então - em passagem expressamente reiterada no Acórdão nº 340/90 e, de modo implícito, no Acórdão nº
236/91: '[...] Com efeito, podendo o vício do julgamento incorrecto provir tanto do juízo sobre a prova como do juízo sobre o direito aplicável, logicamente a defesa do arguido só estará garantida se lhe for permitido reagir e atacar a decisão final a qualquer nível'.
Insere-se neste ponto - cremos - a específica problemática jurídico-constitucional que nos deve preocupar; aceitando o anterior juízo de inconstitucionalidade emanado quanto à norma em apreço, quando interpretada pela forma como o assento a entendeu - e não vislumbramos motivação válida para abandonar a tese anteriormente perfilhada pelo Tribunal Constitucional, tal como maioritariamente foi elaborada - cumprirá determinar se o princípio constitucional da defesa e as garantias-corolário são, ou não, violados pela observância daquela norma na sua singeleza, de modo a justificar-se a recusa da sua aplicação, como o Supremo Tribunal de Justiça o fez.
5.- O princípio constitucional plasmado no artigo 32º, nº 1, da CR - 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa'
-, sem prejuízo da sua natureza residual, relativamente às concretizações dos números seguintes do mesmo artigo (cfr. Acórdãos nºs. 61/88 e 124/90, v.g., publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Agosto de 1988 e 8 de Fevereiro de 1991, respectivamente), ou, se se preferir, da sua configuração como expressão condensada dos números em que esse artigo se desdobra (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 202), contém, em si, um núcleo essencial que importa acautelar, como 'directa consequência do pensamento do Estado de direito democrático ao nível do processo judicial sancionatório e das garantias formais de que ele deve revestir-se para assegurar a dignidade e a liberdade dos arguidos', nas palavras do acórdão nº 164 da Comissão Constitucional (publicado no Apêndice ao Diário da República de 31 de Dezembro de 1979, pág. 81).
Esse núcleo não se esgota no desdobramento do princípio, constante dos nºs. 2 a 7 do artigo 32º.
Como se observou no Acórdão nº 17/86 (in Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1986) aquele núcleo é muito mais rico que a enumeração, pois 'abarca uma zona exterior à sua concretização constitucional e impõe-se em toda a plenitude a partir do momento em que é admitida no processo penal a possibilidade de aplicação de uma norma incriminadora a alguém que adquire o estatuto de arguido'.
O recurso das decisões do tribunal colectivo em matéria de facto inclui-se nesse elenco de garantias, como expressamente se reconheceu no anterior Acórdão proferido nestes autos - o nº 236/91 - alicerçado já no Acórdão nº 340/90.
Reiterando-se o então decidido, importará sublinhar que a articulação do artigo 665º com outros preceitos do mesmo Código, maxime o artigo 469º, sobre a não fundamentação das respostas aos quesitos, enfraquece, desde logo, intoleravelmente o poder das Relações previsto na norma aprecianda, tal como redigida ficou pelo Decreto nº 20 147.
Para o Supremo, na decisão recorrida, e numa linha de desenvolvimento argumentativo que se harmoniza com a citada jurisprudência do Tribunal Constitucional, a norma do artigo 665º, como tal considerada, configura-se inconstitucional, dado subsistirem, perante ela, as limitações dos poderes das Relações na apreciação da matéria de facto constante das decisões do colectivo.
Na verdade, essa alteração só é admissível se apoiada em elementos que não pudessem ter sido alterados pela prova produzida em julgamento e não reduzida a escrito e se (e quando) esses elementos autorizem legalmente a modificação.
De outro modo, o conteúdo essencial da defesa do arguido será posto em causa, ao negar-se-lhe a faculdade de recorrer, de facto e de direito (ou reconhecendo-a só em parte). O que, não significando poder recorrer-se de todo e qualquer acto judicial, não é passível de limitações perante decisões condenatórias ou respeitantes à situação do arguido, face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais
(cfr., a este propósito, Armindo Ribeiro Mendes - Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, pág. 103).
III
Em face do exposto, confirma-se o douto acórdão recorrido, na parte impugnada, e nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 1994
Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis António Vitorino Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca
Messias Bento [vencido pelo essencial das razões da declaração de voto que apus ao Acórdão nº 340/90 (Diário da República, II série, de 19 de Março de 1991)]
Fernando Alves Correia (vencido pelo essencial das razões constantes do Acórdão nº 124/90, utilizadas também nos Acórdãos nºs 340/90 e 401/91)
Vítor Nunes de Almeida (vencido, pelas razões constantes do voto de vencido aposto no Acórdão nº 340/90, aqui aplicáveis, no essencial dos seus fundamentos)
Bravo Serra (Vencido. Conforme declaração de voto que apus ao Acórdão nº 340/90, retomada na declaração de voto que igualmente apus ao Acórdão nº 401/91, pronunciei-me pela não inconstitucionalidade da norma constante do artº 665º do Código de Processo Penal de 1929 com a sobreposição interpretativa advinda do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, para tanto me tendo estribado na fundamentação carreada ao Acórdão nº 124/90, que subscrevi.
Porque entendo que aquele assento conferiu ao referido artº 665º uma interpretação restritiva, pois que a norma assim constituída veio reduzir os poderes cognitivos das Relações tais como resultavam da redacção daquele artigo resultante da redacção conferida pelo Assento nº 20.147, de 1 de Agosto de 1931, torna-se claro que, ao não considerar o preceito do mesmo artigo com a interpretação dada pelo assento de 1934 como estando ferido de inconstitucionalidade, identicamente haveria de considerar aquele preceito, já sem tal interpretação - e, logo, com menores restrições aos mencionados poderes cognitivos -, como não beliscando a Constituição, designadamente com o que se consagra no nº 1 do seu artigo 32º)
José Manuel Cardoso da Costa (Tive dúvidas - face à especificidade da situação em presença e face, por outro lado, ao entendimento dado no acórdão recorrido ao artigo 665º do Cód. Proc. Penal de
1929 sem a sobreposição do Assento de 29.XI.34 - quanto à admissibilidade do recurso. Deixando de lado e em aberto, porém, essa questão, votei vencido quanto ao fundo - naturalmente em sintonia com a posição assumida no Acórdão nº 340/90 e outros)