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Proc. nº 206/91
1ª Secção
Relator: Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Acórdão nº 58/92, a 1ª Secção do Tribunal Constitucional indeferiu reclamação deduzida pela A. e por B. contra um despacho do Presidente do Tribunal da Relação do Porto que não havia admitido recurso de constitucionalidade que os citados reclamantes pretendiam interpor de anterior despacho do juiz do 7º Juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto que havia fixado efeito meramente devolutivo e subida diferida ao recurso de agravo que os mesmos haviam deduzido de anterior despacho do mesmo juiz em que este magistrado deferira um pedido de apoio judiciário a que a A. e B. se haviam oposto, tendo condenado os opositores em custas.
O indeferimento da aludida reclamação assentou na verificação de que nunca os reclamantes questionaram a constitucionalidade ou legalidade da norma aplicada no despacho impugnado ( o artigo 39º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro ) antes da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, cujo requerimento não é já momento processual idóneo para colocar a questão da constitucionalidade ou legalidade de uma norma, em termos de a dever ter como suscitada no decurso do processo, como postulam as alíneas b) e f), do nº 1, do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Só assim, aliás, não seria, se estivéssemos perante um daqueles casos excepcionais em que o recorrente não tivesse tido, de todo em todo, oportunidade processual de suscitar tal questão antes de interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que não era manifestamente o caso dos autos.
2. Perante tal decisão os reclamantes vieram arguir a nulidade-inexistência jurídica daquele Acórdão nº 58/92, apresentando a seguinte fundamentação que se transcreve na íntegra por forma a que melhor se alcance o sentido último do que é pedido:
' 1. V. Ex.ªs indeferiram a reclamação dos autos porque os arguentes não suscitassem no momento processual idóneo a inconstitucional interpretação 'a quo' do Dec.-Lei nº 387-B/87, artº 39º.
2. Todavia, o objecto dos autos reporta a violação do fundamental direito, liberdade e garantia a Tribunal escorreito, hábil, équo, eficaz e efectivo.
3. 'Não podem os Tribunais aplicar normas ( por molde ) que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados ' (C.R.P., artº 207º; e Lei nº 28/82, de 15.11, artº 80º, 3 ).
4. 'Os preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas ' ( C.R.P., artº 18º, 1 ).
5. Isto é e no caso aforado, o Tribunal 'a quo' tinha de, até mesmo oficiosamente ou sem que se lho suscitasse, abster-se infringir a Lei ( e a Constituição ).
6. Assim, foi momento processualmente idóneo suscitar a inconstitucionalidade de 1. anterior só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
7. Por isto, o Ac. de V. Exªs de 11.2.1992, que, devendo, não conheceu do objecto dos autos, é juridicamente nulo-inexistente. 'Ut, maxime' : PIDCP, artºs 2º, 3 e 14º, 1, I e II;
8. DUDH, artºs 8º e 10º; CEDH, artºs 6º, 1, I e 13º; C.R.P., artºs
1º/3º, 13º, 16º/20º, 205º, 2, 206º/207º, e 288º, d); e C.P.C., artºs 201º, 660º,
2 e 668º, 1, d), I.'
Em função do que requerem os arguentes a sanação da
'nulidade-inexistência jurídica sobreditamente arguida'.
Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir.
3. Conforme resulta da peça jurídica acabada de transcrever, a arguição de nulidade do Acórdão nº 58/92 assenta na afirmação basilar contida no ponto 5. do texto, segundo a qual ' o Tribunal 'a quo' tinha de, até mesmo oficiosamente ou sem que se lho suscitasse, abster-se infringir a Lei ( e a Constituição )', de que os arguentes retiram a ilação ínsita no ponto 6. do mesmo texto, ou seja, de que ' foi momento processualmente idóneo suscitar a inconstitucionalidade de 1. anterior só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional'.
Destas afirmações resulta que os arguentes entendem que é causa de nulidade do Acórdão impugnado a interpretação acolhida pelo Tribunal Constitucional quanto à exigência que a Constituição faz na alínea b), do nº 1, do seu artigo 280º, segundo a qual '[Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais ] que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' e que é recolhida na alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em conjugação com o disposto no nº 4 do mesmo artigo 280º da Lei Fundamental, que dispõe que ' os recursos previstos na alínea b) do nº 1 [ e na alínea d) do nº 2 ] só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, devendo a lei regular o regime de admissão desses recursos'.
Contudo, não se vê que assista aos arguentes razão em tal pretensão.
Na realidade, o acesso ao Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade assenta quer na recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade constante de uma decisão judicial, quer na aplicação em decisão judicial de norma que qualquer parte haja reputado de inconstitucional no decurso do processo.
A obrigação constitucional de os tribunais não aplicarem normas contrárias à Constituição ou aos princípios dela constantes ( artigo 207º da Constituição ) não preclude - nem poderia precludir - o poder que a Constituição confere às partes de suscitarem, durante o processo, uma questão de inconstitucionalidade atinente a norma que o tribunal aplique ao caso, desta forma conferindo-lhes a possibilidade de 'provocarem' uma pronúncia do juiz da causa sobre a questão de constitucionalidade e, simultaneamente, abrirem, por tal meio, a via de recurso ao Tribunal Constitucional.
A Constituição, ao exigir, pois, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada no decurso do processo, pretende que sobre a mesma haja uma primeira ponderação por parte do juiz da causa, e só depois admitindo o recurso para o Tribunal Constitucional. É por isso que o Tribunal Constitucional tem afirmado que a locução 'durante o processo' há-de ser entendida como reportando-se a qualquer momento processual anterior ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz da causa, exceptuando-se apenas aqueles casos - manifestamente excepcionais - em que comprovadamente a parte não dispôs de nenhuma oportunidade processual adequada para submeter ao juiz da causa a questão de constitucionalidade.
Ora, como se disse no Acórdão agora impugnado, os arguentes poderiam ter suscitado a questão da constitucionalidade do artigo 39º do Decreto-Lei nº
387-B/87 'na reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto do despacho do juiz do 7º Juízo Cível do Porto que fixou o efeito e o regime de subida do agravo por eles interposto para aquele Tribunal da Relação - e poderiam perfeitamente tê-lo feito, tanto mais que aquele despacho invocava expressamente a referida disposição'.
Como o não fizeram, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 58/92, entendeu não estar preenchido o pressuposto processual incontornável de a questão de constitucionalidade ter sido suscitada 'durante o processo', pelo que indeferiu a reclamação em causa.
Neste contexto, em que o 'objecto dos autos' de reclamação consistia
única e exclusivamente em saber se o recurso de constitucionalidade devia ou não ser admitido ( e não em analisar a constitucionalidade da norma impugnada ), não podem restar dúvidas de que o Tribunal Constitucional se pronunciou expressamente sobre a admissão do recurso, decidindo que ele não seria de admitir, por a decisão de que se pretendia recorrer não se enquadrar em nenhuma das alíneas do artigo 70º, nº 1, da Lei nº 28/82, não havendo, por isso, qualquer omissão de pronúncia.
O que os reclamantes verdadeiramente censuram ao Acórdão nº 58/92, tanto quanto se pode inferir do requerimento de arguição de nulidade, não é, porém, esta (inexistente) omissão de pronúncia, mas sim a 'omissão de pronúncia' sobre a questão de constitucionalidade do artigo 39º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro. Mas é claro que nesta fase do processo nunca o Tribunal Constitucional se poderia pronunciar sobre tal questão. Mesmo que entendesse que os reclamantes tinham razão na sua reclamação, tudo o que o Tribunal poderia fazer era mandar admitir o recurso, e só depois dessa admissão e de o processo ter seguido todos os seus trâmites é que poderia ter tirado Acórdão sobre a questão de constitucionalidade da referida norma legal.
Sendo evidente que os arguentes não corroboram o entendimento jurisprudencial quanto aos pressupostos de admissão dos recursos de constitucionalidade, que tem sido, aliás, reiterada e uniformemente formulado pelo Tribunal Constitucional, não é menos evidente, contudo, que dessa divergência interpretativa não resulta qualquer nulidade do Acórdão nº 58/92, designadamente decorrente de eventual omissão de pronúncia, à luz dos critérios que o Código de Processo Civil ( artigo 668º) acolhe e que são aplicáveis por força do disposto no artigo 69º da Lei nº 28/82.
4. Nestes termos, indefere-se o pedido de declaração de nulidade do Acórdão nº 58/92, condenando-se os arguentes em custas e fixando a taxa de justiça devida em 4 UCs.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1993
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa