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Processo n.º 904/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
(Conselheiro Pamplona de Oliveira)
Acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. foi condenado no 1.º Juízo de Tribunal Judicial de Torres Novas como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275.º, n.º 1 do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 207-A/75 de 17 de Abril, na pena de três anos de prisão. Efectuado o cúmulo jurídico foi condenado na pena única de cinco anos de prisão.
Transitada em julgado a decisão condenatória, A. solicitou a reabertura da audiência, para aplicação retroactiva da lei mais favorável, ao abrigo do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal e do artigo 50.º do Código Penal.
O Ministério Público declarou nada ter a opor. Todavia, por despacho proferido em 6 de Outubro de 2008 foi decidido não aplicar a norma do artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal, com fundamento em inconstitucionalidade, por violar o caso julgado protegido nos artigos 2.º, 111.º, n.º 1, 205.º, n.º 2 e 282.º, n.º 3 da Constituição. Considerou-se que a decisão anteriormente proferida e já transitada ficaria parcialmente sem efeito, obrigando a que o Tribunal procedesse a nova ponderação da situação do arguido, alterando consequentemente tal decisão, com inadmissível prejuízo da garantia de certeza e segurança jurídica que são características do Estado de Direito.
Diz-se na decisão:
“[…] Na verdade nós recusamo-nos a aplicar o disposto no artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, na medida em que consideramos que a norma em causa é inconstitucional, por violar manifestamente o caso julgado de uma decisão anterior.
Na realidade, a protecção e o respeito pelo caso julgado encontram-se consagrados na Constituição, designadamente nos artigos 2°, 111°, n°1, 205°, n°2, e 282°, n°3. Aquele artigo 371º-A veio manifestamente pôr em causa o caso julgado e violar estas normas constitucionais.
De facto, o que aquele artigo 371 °-A determina é que a decisão anterior proferida no processo, que entretanto transitou em julgado, ficará parcialmente sem efeito, obrigando a que o Tribunal volte a ponderar a situação do arguido e proceda à alteração daquela. Consequentemente, qualquer decisão judicial, que transitou em julgado, deixa de ter eficácia em definitivo, podendo assim ser alterada a todo o tempo, bastando para o efeito que entre em vigor um regime que se mostra mais favorável ao arguido.
Ora, com o caso julgado de uma determinada decisão pretende-se que a mesma permaneça tendencialmente imutável. Só dessa forma haverá uma garantia de certeza e segurança jurídica e de paz judicial em relação àquela questão pois a mesma foi decidida em definitivo.
Pelo contrário a possibilidade de a todo o tempo uma decisão judicial poder ser modificada, bastante para o efeito que seja alterada a Lei que regula a situação em causa, provoca grande instabilidade e incerteza quanto à resolução da questão. Consequentemente, o não respeito pela decisão transitada em julgado cria uma enorme perturbação na ordem das decisões judiciais. A certeza, a paz judicial e a segurança jurídicas que são trazidas pelo caso julgado, e que são apanágio de um Estado Constitucional de Direito, são postas em causa pela possibilidade de poder ser modificada a decisão transitada a todo o tempo, que resulta daquele artigo 371°-A [...].
Deste modo, declarar-se que não se irá aplicar ao caso concreto a norma do artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, na medida em que se considera a mesma inconstitucional pelas razões já expostas supra. [...]”
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), nos seguintes termos:
“A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal, com a legitimidade que lhe conferida pelo artigo 1.º, 3.°, n.° 1, al. f) e o) e n.° 2 in fine do Estatuto do Ministério Público, não se conformando com o despacho exarado a fls. 414 a 415 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° 191/04.1PATNV referenciados em epígrafe, na parte em que recusou a aplicação da norma ínsita no artigo 371.°-A do Código de Processo Penal por considerar que a mesma é inconstitucional por violar o caso julgado formado sobre uma decisão anterior, dele vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 204.°, 219.° n.° 1, 223.°, n.° 1 e 280.°, n.° 1, alínea a) e n.° 3 da Constituição da República Portuguesa e 70.°, n.° 1, alínea a) e 72.°, n.° 1, al. a) e n.º 3 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. (…)”
3. O recurso foi admitido. Já no Tribunal Constitucional as partes foram convidadas a alegar. Na sua alegação, o Ministério Público recorrente louva-se na jurisprudência do Tribunal, invocando que situação idêntica foi já tratada nos processos n.ºs 1042/07 (3.ª Secção), 121/08 (1.ª Secção) e 283/08 (3.ª Secção), onde foram proferidos os Acórdãos n.ºs 164/2008, 265/2008 e a Decisão Sumária n.º 138/2008, que não julgaram inconstitucional a norma constante do artigo 371º-A do Código de Processo Penal.
Diz, em suma, o Ministério Público:
“(…) 1.2. Está-se perante uma situação idêntica à que foi apreciada nos processos nºs 1042/07-3ª Secção, 121/08-1ª Secção e 283/08-3ª Secção onde, respectivamente, foram proferidos os Acórdãos nºs 164/2008, 265/2008 e a decisão sumária nº 138/2008, que não julgaram inconstitucional, a norma constante do artigo 371°-A do Código de Processo Penal.
1.3. Remete-se, assim, para esta jurisprudência (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que vem entendendo que o caso julgado não pode sobrepor-se ao princípio da aplicação retroactiva das leis penais de conteúdo mais favorável, consagrado no artigo 29°, n° 4 da Constituição.
2. Conclusão
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1.O princípio da aplicação retroactiva do regime penal de conteúdo mais favorável ao arguido, no caso de sucessão de leis penais no tempo, consagra valores constitucionais superiores aos que são garantidos pelo princípio da intangibilidade do caso julgado, que deverá ceder perante aquele.
2. Não sendo inconstitucional a norma do artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, cuja aplicação foi recusada, deverá proceder o presente recurso, não se confirmando o juízo de desconformidade à Lei Fundamental constante da decisão recorrida.”
4. O Recorrido não contra-alegou, cumprindo apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Em primeiro lugar, impõe-se precisar o objecto do presente recurso, uma vez que o Ministério Público interpôs recurso da decisão na parte em que recusou a aplicação da norma ínsita no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, por considerar que a mesma é inconstitucional.
Sucede que, conforme jurisprudência consolidada neste Tribunal, apenas pode conhecer-se das normas que hajam sido efectivamente aplicadas ou desaplicadas – como é agora o caso – por parte do tribunal a quo. Da análise da fundamentação da decisão recorrida, resulta que a norma desaplicada é a que determina a reabertura de audiência para aplicação de um novo regime penal mais favorável, no que respeita à suspensão de execução da pena de prisão aplicada, nos termos do disposto no artigo 50.º, nº. 1 do Código Penal, pois só essa questão estava concretamente em causa.
É, portanto, esta a dimensão normativa do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal que constitui objecto de recurso.
6. Tal como alega o Ministério Público, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre questão relacionada com o artigo 371.º-A do Código de Processo Penal nos Acórdãos n.ºs 164/2008, 265/2008 e na Decisão Sumária n.º 138/2008.
No primeiro caso, (Acórdão n.º 164/2008) a questão relacionava-se com a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade.
Ali se referiu:
“ […] Em traços largos, e tendo em consideração a diferença de redacção do n.º 4 do artigo 2º do CP, antes e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, parece que o legislador quis deixar bem claro que o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ocorre “sempre”, haja ou não condenação com força de caso julgado formado sobre a questão jurídico-penal controvertida.
Posto isto, no que diz respeito às acções penais em que já exista condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da ‘lex mitior’, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstracta, o agente já tenha cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2º, n.º 4, ‘in fine’, do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371º-A do CPP).
[…] De acordo com a jurisprudência deste Tribunal sobre a constitucionalidade do n.º 4 do artigo 2º do CP (na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro) se admite a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável se sobreponha ao caso julgado penal: (i) quando está em causa uma mudança ‘qualitativa’ da pena (Ac. 644/98) ou (ii) quando a da lei nova descriminaliza ou produz efeitos substancialmente análogos (Ac. 677/98, seguido pelos Ac. 169/02 e 572/03).
FIGUEIREDO DIAS, escrevendo sobre o artigo 2º, nº 4, CP, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, diz o seguinte:
‘O mesmo que se expôs para as hipóteses de descriminalização deve defender-se para o caso em que a lei nova atenua as consequências jurídicas que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto. Também neste caso a «lex mitior» deve ser retroactivamente aplicada, todavia, de acordo, com o disposto no art. 2º-4, com ressalva dos casos julgados’. (JORGE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 201).
Todavia, mais adiante, discutindo a questão da constitucionalidade daquele preceito, o mesmo Autor sublinha:
‘A conformidade com o artigo 29º-4 da CRP da ressalva dos casos julgados prevista no art. 2º-4 do CP, não significa, como é evidente, que a mesma não possa ser eliminada ou restringida, fruto de uma nova opção legislativa. Nesse sentido vai a alteração do regime do art. 2º-4 proposta no Anteprojecto 2007. Nesse anteprojecto a actual ressalva dos casos julgados é substituída por uma outra, menos restritiva, do seguinte teor: “Se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior’. Desta proposta não resulta uma imposição de reabertura do processo para nova determinação da pena concreta no quadro da nova moldura penal aplicável, mas somente um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado, que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável. Em todo o caso, de acordo com o novo regime processual proposto para compatibilizar a lei adjectiva (cf. o art. 371º - A, aditado pelo art. 3º da Proposta de Lei nº 109/X) com esta alteração do art. 2º-4, ‘o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime’. (JORGE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, cit., p. 202 e 203).
Ora, no caso dos autos, embora a nova lei penal não descriminalize a conduta em causa, introduz uma mudança ‘qualitativa’, uma vez que atenua as consequências jurídicas que se ligam ao facto, permitindo, consequentemente, a reabertura da audiência com vista à suspensão da execução da pena.
[…]
Ora, sendo indubitável que a Lei Fundamental não pode deixar de reconhecer o caso julgado como uma necessária emanação do princípio da segurança jurídica, ínsito na ideia de dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1º da CRP), não é menos verdade que a ideia de caso julgado penal entronca num propósito de protecção do indivíduo face ao arbítrio do Estado-julgador – ‘ne bis in idem’. Quando o legislador constituinte protege, ainda que indirectamente, a força de caso julgado penal não visa proteger, de modo abstracto, a confiança de todos nos tribunais, enquanto órgãos que administram a Justiça em nome do Povo, mas antes visa, de modo concreto, assegurar que o cidadão acusado e julgado pela prática de um crime não fica permanentemente sujeito a uma reapreciação da sua responsabilidade penal.
[…]
Com efeito, se o propósito constituinte que presidiu à garantia do caso julgado foi precisamente evitar que o condenado viesse a ter que enfrentar um novo julgamento, no qual poderia ver agravada a sua situação jurídico-penal, então a intangibilidade do caso julgado não pode ser invocada em seu manifesto prejuízo, na medida em que o condenado não sofre qualquer agravação na sua esfera jurídica.
[…]
Obviamente que a necessidade de segurança jurídica justifica a protecção do caso julgado, mas este deve ceder quando as circunstâncias concretas do caso em apreço imponham a prevalência da lei penal de conteúdo mais favorável. Isso mesmo já foi entendido por este Tribunal, através do Acórdão n.º 677/98, de 02 de Dezembro, que rejeitou uma ideia de preponderância automática e absoluta do caso julgado:
‘Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do artigo 2º do Código Penal.
Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer dúvida, de um valor constitucionalmente protegido. Torna-se, todavia, indispensável demonstrar que o valor constitucional do caso julgado deva prevalecer nestas hipóteses perante o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável.
Afirmou-se no acórdão nº 644/98 deste Tribunal, ainda inédito, haver que averiguar se ‘aceite a consagração constitucional do valor ou interesse consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar a regra constante da parte final do nº 4 do artigo 29º como uma garantia constitucional fundamental, ... se, atentos os números 2 e 3 do artigo 18º, a restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela garantia’.
Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se considera que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no nº 4 do artigo 29º da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos substancialmente análogos.
Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos hipoteticamente abrangidos pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, há que entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma não respeita o conteúdo essencial do nº 4 do artigo 29º da Constituição. Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação da lei nova determinaria a não punição.” (cfr. Acórdão n.º 677/98, de 02 de Dezembro, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).”
Aliás, a própria relatividade do caso julgado penal, por comparação ao caso julgado civil, encontra-se eloquentemente consagrada na própria Lei Fundamental. Ao abordar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, o legislador constituinte procedeu, no n.º 3 do artigo 282.º da CRP, a uma notória distinção entre ‘caso julgado penal’ e ‘caso julgado civil’. É que se, em regra, o n.º 3 do artigo 282º ressalva ‘os casos julgados’, em sentido amplo – ou seja, abrangendo os casos julgados de qualquer uma das jurisdições especializadas –, logo de seguida se permite que o Tribunal Constitucional desconsidere os casos julgados ‘quando a matéria respeitar a matéria penal (…) e for de conteúdo menos favorável ao arguido’. Só esta constatação permite concluir que, na realidade, a Lei Fundamental manifesta uma evidente preocupação com a aplicação dos regimes penais mais favoráveis aos condenados, ainda que tal coloque em cheque eventuais casos julgados penais.
[…] A aplicação retroactiva de nova lei penal, de conteúdo mais favorável, não implica necessariamente a feitura de um novo julgamento. Conforme melhor se demonstrará no § 11 deste acórdão, todos os factos necessários à determinação dos pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão já se encontram dados como provados quer nos relatórios sociais quer no próprio acórdão condenatório. Assim, não colhe o argumento de paralelismo entre a situação dos autos e a situação que deu lugar ao Acórdão n.º 644/98 – em que, recorde-se, se decidia da aplicação de nova lei penal que alterou as molduras penais dos crimes de furto qualificado e de burla agravada. Naqueles autos, o condenado pretendia que fosse efectuado novo julgamento ‘com vista a decidir quais as disposições penais mais favoráveis ao arguido, se as vigentes no momento da prática dos factos puníveis ou as posteriores, as introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março’ (cfr. § 1 do Acórdão n.º 644/98).
Sucede que, in casu, a norma reputada de inconstitucional (artigo 371º-A do CPP) e, consequentemente, desaplicada não implica uma repetição automática do julgamento já efectuado, antes obrigando a uma mera reabertura da audiência, para estrita reapreciação da questão relativa à suspensão da execução de pena privativa liberdade, em função de nova redacção conferida ao n.º 1 do artigo 50º do CP.
Acresce ainda que a nova norma, introduzida pelo aditamento do artigo 371º-A do CPP, ‘ex vi’ Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não implica uma repetição automática de julgamentos, na medida em que condiciona a reabertura de audiência à formulação de um pedido por parte do interessado. Significa que, independentemente de os tribunais que proferiram acórdão condenatório poderem ‘ex officio’ aplicar retroactivamente a nova lei penal de conteúdo mais favorável, em estrito cumprimento do n.º 4 do artigo 29º da Constituição e do actual n.º 4 do artigo 2º do CP, a norma constante do artigo 371º-A do CPP não implica uma reapreciação de todos os acórdãos condenatórios proferidos, mas apenas daqueles que tenham sido objecto de pedido de reabertura de audiência por parte do condenado. Daqui decorre que os argumentos relativos a uma “enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais”, equacionados por este Tribunal, através do Acórdão n.º 644/98, não são repetíveis nem muito menos decisivos nos presentes autos. […]’
Com efeito, e como se disse no já citado Acórdão n.º 164/2008:
“A ideia de restrição mínima do direito à liberdade pessoal, ínsita no n.º 2 do artigo 18º da Lei Fundamental, já justificaria, por si só, a aplicação obrigatória da lei penal mais favorável. Isto porque, quando o legislador passa a entender que determinado bem jurídico, constitucionalmente protegido, pode ser suficientemente protegido através de outras medidas que não a sanção penal (ou quando abranda a severidade da respectiva punição) não seria justificável a persistência na aplicação da lei antiga. Se admitíssemos a aplicação de lei penal que, à data da respectiva aplicação, já não preenche a sua função de prevenção geral e de prevenção especial, estaríamos a legitimar uma restrição desproporcionada do direito fundamental do condenado à liberdade, na medida em que foi o próprio Estado quem reconheceu a desnecessidade da lei penal antiga (assim, ver, entre outros, Taipa de Carvalho, ‘Sucessão de Leis Penais’, 2ª edição revista, Coimbra, 1997, pp. 103 e 104).”
Por outro lado, e ainda na esteira do citado Acórdão n.º 164/2008
“ […] se o propósito constituinte que presidiu à garantia do caso julgado foi precisamente evitar que o condenado viesse a ter que enfrentar um novo julgamento, no qual poderia ver agravada a sua situação jurídico-penal, então a intangibilidade do caso julgado não pode ser invocada em seu manifesto prejuízo, na medida em que o condenado não sofre qualquer agravação na sua esfera jurídica. Assim entendem igualmente Jorge Miranda / Rui Medeiros (‘Constituição Portuguesa Anotada’, Tomo I, Coimbra, 2005, pp. 330 e 331). […]”
Assim, no caso em apreço, a norma constante do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal mais favorável, não ofende qualquer preceito constitucional.
III – Decisão
7. Deste modo, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade;
b) Conceder provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Maio de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração que se anexa)
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido, nos termos da declaração que junto.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida, resolvendo as dúvidas manifestadas na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 265/2008 no sentido da inconstitucionalidade da “norma constante do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade”, por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 2.º da Constituição). No essencial, pelas razões constantes da declaração de voto do Senhor Conselheiro Pamplona de Oliveira.
Partindo do princípio que os artigos 29.º, n.º 4, parte final, e 282.º, n.º 3, parte final, da Constituição ressalvam apenas leis descriminalizadoras (e equiparadas) e aceitando a protecção constitucional de uma dimensão objectiva do caso julgado penal (artigos 2.º, 111.º, n.º 1, 205.º, n.º 2, e 282.º, n.º 3, primeira parte, da Constituição), entendo que a restrição ao princípio da salvaguarda do caso julgado penal decorrente da norma em apreciação não é necessária para dar cumprimento ao princípio jurídico-constitucional da necessidade da privação da liberdade (artigos 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição). Face ao que se dispõe na parte final do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal e à previsão de incidentes de execução da pena de prisão (artigos 61º e 62º do Código Penal), na medida em que permitem um juízo actualizado sobre as exigências preventivas a satisfazer.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. O preceito que inclui a norma que veio a ser desaplicada na decisão recorrida foi introduzido no Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, com a seguinte redacção:
“Artigo 371º-A
(Abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável)
Se, após trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.”
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que está na base da Lei n.º 48/2007, refere-se: “Por fim, prescreve-se a reabertura da audiência para aplicar novo regime mais favorável ao condenado sempre que a lei penal mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena. Esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional (que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas).”
O legislador adoptou o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, através da reabertura da audiência de julgamento, haja ou não condenação com força de caso julgado.
A aplicação de uma pena criminal, com a inerente restrição de direitos pessoais, inscreve-se no núcleo essencial do poder do Estado, de tal modo que o poder punitivo é uma das características essenciais do Estado moderno. No quadro do sistema jurídico de um Estado de Direito, o processo penal é um instrumento de aplicação do direito penal, desempenhando as finalidades deste no que respeita às garantias de defesa e à disciplina do Estado na repressão do crime.
O caso julgado material visa garantir fundamentalmente a segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, numa dupla dimensão: uma dimensão objectiva, que se consubstancia na ideia de estabilidade das instituições; e uma dimensão subjectiva, que se projecta na tutela da certeza jurídica das pessoas ou na estabilidade da definição judicial da sua situação jurídica.
Assim entendido, o caso julgado destina-se a evitar uma contradição prática de decisões, obstando a decisões concretamente incompatíveis, pois além da eficácia intraprocessual, é susceptível de valer num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada; existindo caso julgado material a título principal, quando se trata da repetição de uma causa em que foi proferida a decisão, e caso julgado material a título prejudicial, em acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação.
2. A Comissão Constitucional, no seu Acórdão n.º 87, sobre a 'garantia do caso julgado relativamente a leis gerais que, incidindo sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de sentença, vão determinar a sua alterabilidade', aceitou que não se justificava qualquer dúvida acerca da 'inconstitucionalidade de uma decisão política ou administrativa, até sob a forma de lei, que pusesse em causa uma sentença com trânsito em julgado', baseando-se nos princípios e valores do Estado de direito democrático, no princípio da separação de poderes e da natureza soberana das sentenças judiciais e, por fim, no princípio da certeza a segurança dos direitos dos cidadãos e das demais entidades privadas ou públicas interessadas nas decisões dos tribunais. E sublinhou 'a natureza soberana das sentenças, cuja eficácia se funda na Constituição e não na lei'.
A segurança inerente à estabilidade e imodificabilidade do caso julgado, baseada na garantia dada pelo Estado aos cidadãos de que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros órgãos não irão diminuir a força obrigatória das decisões, sugere que o caso julgado não é um valor em si mesmo, pois visa defender interesses de natureza substantiva que a ordem jurídica quer proteger. Por essa razão, o Tribunal tem entendido que o caso julgado tem consagração implícita na Constituição, baseado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos e do Estado de direito democrático, conforme se extrai do artigo 2.º e, também, num princípio de separação de poderes, consagrado igualmente naquele artigo e no n.º 1 do artigo 111.º e do n.º 2 artigo 205.º da Constituição.
Mas a própria Constituição prevê restrições à segurança do caso julgado, como a constante do n.º 3 do artigo 282.º e a do n.º 6 do artigo 29.º. O n.º 3 do artigo 282.º da Constituição, aditado na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, prescreve que da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral 'ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido'. A Constituição reconhece que o respeito pelo caso julgado apenas pode ceder em determinadas situações restritas, como é o caso da fiscalização do Tribunal Constitucional, uma vez que as decisões de inconstitucionalidade com força obrigatória geral fazem com que a norma inconstitucionalizada seja eliminada do ordenamento jurídico, nos termos fixados pelo Tribunal Constitucional. O nº 4 do artigo 29º da Constituição obriga à proibição de retroactividade da lei penal, excepto quando a mesma for de conteúdo mais favorável ao arguido. Do confronto entre os n.ºs 4 e 6 do artigo 29.º resulta que o n.º 4 trata de pessoa acusada, sujeito passivo do processo penal, e não de condenado, este já sujeito passivo de sentença transitada em julgado. É o n.º 6 do artigo 29.º que prevê que os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos. Trata-se de um sistema destinado a evitar que as condenações injustas se mantenham apenas porque transitadas em julgado; o caso julgado não deve sobrepor-se, obviamente, ao interesse da reposição da justiça. Deve, por isso, entender-se que o nº 4 do artigo 29.º impõe, unicamente, a aplicação da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, antes da formação do caso julgado (cedendo o trânsito em julgado nos casos de descriminalização ou a tal equiparados).
Quando, por força de leis de amnistia, os tribunais procedem à reformulação do cúmulo jurídico das penas, como o caso de crime praticado em período não abrangido pelo perdão e o caso de crime praticado em período abrangido pelo perdão, devem realizar a audiência prevista nos artigos 471.º e 472.º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 78.º do Código Penal, efectuando as diligências necessárias. Em todo o caso, os factos dados como provados nas sentenças condenatórias são inalteráveis, apenas se admitindo a realização de diligências quando o Tribunal repute necessário e unicamente para efeito de realização de cúmulo jurídico.
Semelhante sistema ocorre no caso da verificação da reincidência (artigo 75.º do Código Penal), do desconto da pena (artigo 81.º do Código Penal), da contagem dos prazos de prescrição da pena (artigo 122.º do Código Penal), da contagem dos prazos das medidas de coacção (artigos 214.º e 215.º do Código de Processo Penal), e ainda os casos de apreensão de objectos (artigo 186.º do Código de Processo Penal), destruição de escutas telefónicas (artigo 188.º do Código de Processo Penal), recursos extraordinários de fixação de jurisprudência ou de revisão (artigos 437.º e seguintes e 449.º e seguintes, todos do Código de Processo Penal) bem como para execução das sentenças condenatórias (artigo 467.º do Código de Processo Penal e 477.º e seguintes do Código de Processo Penal).
3. Todavia, a norma do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal prescreve algo de diverso: a reabertura da audiência para aplicação de novo regime penal mais favorável, apesar do trânsito em julgado da decisão condenatória. Ora, a reabertura da audiência implica a possibilidade (e, em alguns casos, a necessidade) de alterar os factos provados, consolidados em caso julgado, e até o impedimento do juiz que tivesse intervindo no julgamento anterior, resultante da actual redacção do artigo 40.º do Código de Processo Penal.
É que a norma em apreço não restringe a matéria a tratar na audiência reaberta à matéria da prova da sanção a aplicar, como adiante se referirá. Mas mesmo esta obriga à repetição de diligências de prova para apuramento de factos quanto à personalidade e condições de vida do arguido, seja através de perito, relatório social ou inquirição de testemunhas. Daqui decorre que deverá ser elaborada uma nova sentença, onde constem os factos provados anteriormente e os factos provados na nova audiência. Havendo recurso, fica alterada a data do trânsito em julgado da mesma, o que, para além do mais, interfere com o próprio caso julgado jurisdicional.
Por outro lado, apesar de a questão ter vindo a ser suscitada com mais premência para aplicação do regime de suspensão da execução da pena, como nas decisões já proferidas neste Tribunal, na verdade a redacção do preceito não deixa lugar a dúvidas de que abarca toda a lei penal mais favorável e não delimita à matéria da pena, o que, obviamente, inclui a alteração dos elementos essenciais da condenação, como a própria culpa.
No caso de supressão de expressão do tipo legal, há alargamento da punibilidade existindo uma verdadeira relação de identidade normativo-típica e, logo, uma sucessão de leis penais stricto sensu, pelo que haverá que reponderar a questão da culpa, no âmbito da escolha da lei que estabelece uma menor responsabilidade penal.
A alteração de elementos constitutivos, fundamentadores ou modificativos, nos tipos qualificados ou privilegiados, quando a lei substitui no tipo legal a circunstância descrita por outra, de idêntico sentido mas diversa (caso exemplificado na doutrina de substituição da expressão “por motivo da honra” pela expressão “por motivo de abandono moral”, no caso do infanticídio, que não coincidem obviamente). Embora nestes casos não haja relação de identidade normativo-típica, a configurar uma sucessão de leis penais, o que implica sempre a aplicação do tipo privilegiado de forma a não lesar o princípio da irretroactividade da lei penal, esse mesmo tipo pode ter diferente pena, por não se ter alterado apenas o elemento constitutivo mas ainda a pena aplicável ou o regime da mesma, como adiante se mencionará, carecendo o caso de produção de prova quanto ao tipo legal.
E bem assim quando a lei não especialize mas antes especifica o elemento do tipo, caso em que a lei anterior exija apenas que o agente “esteja armado” e que a lei nova especifique o tipo de arma, fazendo graduações da pena em função da mesma. Tal implicará a produção de prova quanto aos factos necessariamente, para verificação de que tipo de arma era o condenado portador, de forma a aferir da efectiva aplicação da lei penal mais favorável, quando tal não se apurou por, na altura, ser irrelevante (caso em que o Tribunal dá como provado a posse da arma sem que a especifique porque as testemunhas eram contraditórias acerca das características da mesma e ela não tenha sido apreendida).
Por outro lado, a aplicação da lei penal mais favorável implica a ponderação concreta do regime aplicável, pressupondo que o Tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta face a cada uma das leis, já que a ponderação deve ser unitária, do confronto da aplicação em bloco dos regimes legais aplicáveis. Da mera previsão abstracta das normas não se retira, a maior parte das vezes, o regime mais favorável, como acontece quando o regime anterior pode prever pena de prisão de um ano a cinco anos e o regime novo de um ano a três anos mas com interdição de exercício de profissão, o que implica a reanálise da medida da culpa.
Além disso, a realização de um novo julgamento acarreta inegáveis dificuldades de obtenção de prova e dos elementos necessários à adequação da nova pena a impor.
Basta até atentar no caso destes autos, em que houve sucessão de leis penais por duas vezes, a implicar, por isso, a ponderação de três regimes em concreto: o crime de detenção de arma prevê actualmente pena maior do que a prevista anteriormente e mais recentemente implica pena maior quanto ao crime de homicídio na forma tentada, apesar de no regime actual penal se prever a suspensão da execução da pena de prisão aplicada até cinco anos. Assim, no regime aplicado, a lei antiga previa uma pena de dois a cinco anos de prisão, pela disposição conjugada dos artigos. 3º, nº 1, al. a) do DL. nº 207-A/75 de 17/04/1975 e 275.º, n.º 1 do Código Penal, sendo a pena aplicável ao crime de homicídio simples na forma tentada a de dezanove meses e seis dias a dez anos e oito meses de prisão de acordo com a disposição conjugada dos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º, todos do Código Penal, sendo o regime de suspensão de execução de pena até três anos de prisão; no regime que se lhe seguiu, com a Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, que entrou em vigor em 23 de Agosto na sua generalidade e na parte que agora importa, o crime em causa passou a ser o previsto nos artigos 86.º, n.º 1, al. a) e 3., n.º 2 dessa Lei, com a moldura penal de dois a oito anos de prisão, mantendo-se a pena aplicável ao crime de homicídio simples na forma tentada a de dezanove meses e seis dias a dez anos e oito meses de prisão de acordo com a disposição conjugada dos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º, todos do Código Penal, sendo o regime de suspensão de execução de pena até três anos de prisão; no regime que se lhe seguiu, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009 de 6 de Maio à Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, que entraram em vigor, na parte que agora importa, em 6 de Junho de 2009, a pena aplicável ao crime previsto nos artigos 86.º, n.º 1, al. a) e 3., n.º 2 dessa Lei, manteve a moldura penal de dois a oito anos de prisão, mas aditou um agravamento às penas aplicáveis a crimes cometidos com arma, em um terço nos limites mínimo e máximo, pelo que o crime de homicídio simples na forma tentada passou a ter a moldura de vinte e cinco meses e dezoito dias a catorze anos, dois meses e vinte dias de prisão de acordo com a disposição conjugada dos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º, todos do Código Penal, sendo o regime de suspensão de execução de pena até cinco anos de prisão.
A exemplificação efectuada é bastante para compreender as implicações da norma em análise.
4. A legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente protegidos. Se, em momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária por ter havido descriminalização ou equiparação a tal, ela é inequivocamente ilegítima.
Acontece que à ocorrência simultânea de circunstâncias que traduzem, no fundo, a finalidade da execução da própria pena, com vista a prevenir a prática de futuros crimes, remete a lei para a liberdade condicional.
Tal instituto, assenta num juízo de prognose, que permite antecipar, verificados que se mostrem os requisitos enunciados nos n.º 2 e 3 artigo 61° do Código Penal, que o condenado, em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. E ainda de considerar que, nos termos do disposto no artigo 42° do mesmo diploma legal, a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de futuros crimes, se deve orientar no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável.
Ora, a aplicação da liberdade condicional, embora dependendo sempre do consentimento do arguido, permite, na medida do razoável, ajustar o tempo da prisão consoante ocorra, entretanto, alterações da moldura penal aplicada ao caso.
Com efeito, constituindo a pena de prisão a ultima ratio do sistema, preside à sua aplicação um juízo de adequação particularmente rigoroso e exigente onde se destaca a demonstração de que é a única ajustada à satisfação das finalidades da pena. Pelo que, uma vez efectuado, pelo tribunal da condenação, tal juízo de adequação que preside à aplicação da pena efectiva de prisão, é perfeitamente concebível que o cumprimento da pena seja avaliada pelo funcionamento institucional dos órgãos intervenientes no processo de concessão da liberdade condicional, em que intervém igualmente um juiz que actua mediante juízos de oportunidade, em que ainda cabem valorações concernentes à vigência de uma nova lei penal mais favorável, que são, essencialmente, as abrangidas pela norma em causa, mas sem ofender a garantia de intangibilidade do caso julgado penal, por efeito da superveniência de lei penal mais favorável.
No caso em apreço, a norma constante do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal mais favorável, ofende, de forma desproporcionada, o conteúdo de protecção ou garantia do caso julgado, que a Constituição reconhece nos seus artigos 2º, 111.º n.º 1, e 205.º n.º 2.
Em suma, julgaria inconstitucional tal norma.
Carlos Pamplona de Oliveira