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TÍTULO - investigação policial
Procº nº 478/93 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório.
1. O Presidente da V Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de ----------------- de --- de ----------- de 19--- (V CPIA---) solicitou, por ofício de 8 Julho de 1993, ao Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa a remessa de dois relatórios periciais - o relatório A. (--------) e o relatório do Instituto de Medicina Legal de Coimbra -, bem como dos 'fragmentos contidos na denominada amostra H e que foram alvo do estudo do Relatório A.', constantes do Processo nº 1020/90 do 3º Juízo daquele tribunal, invocando, para o efeito, o disposto na Resolução da Assembleia da República nº 19/93, publicada no Diário da República, I Série-A, nº 137, de 14 de Junho de 1993, e o preceituado no artigo 13º da Lei nº 5/93, de 1 de Março, 'e demais legislação aplicável', e aduzindo, como fundamento, o interesse daqueles elementos 'para o desenvolvimento dos trabalhos' da referida Comissão Parlamentar de Inquérito.
2. O Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, por despacho de fls. 3580-3595 dos autos, indeferiu, porém, o requerido pela Comissão Parlamentar de Inquérito, por entender que 'quer a Resolução da Assembleia da República nº 19/93, maxime no seu nº 4, quer os artigos 5º e 13º da Lei nº 5/93, violam a Constituição da República Portuguesa, pelo que não podem fundar o solicitado'.
Aquele despacho judicial alicerça-se, em síntese, nos seguintes fundamentos:
a) Articulando os objectivos da V CPIA--- com as conclusões extraídas da IV Comissão, é um dado adquirido que aquela se propõe 'investigar a prática de um crime e descobrir os seus responsáveis', usurpando, por isso,
'funções que o ordenamento constitucional vigente reserva aos tribunais', o que implica uma violação do 'princípio da separação de poderes entre os órgãos de soberania';
b) O objecto da V CPIA---- não se enquadra nos fins constitucionalmente definidos para os inquéritos parlamentares pelo artigo 165º, alínea a), da Lei Fundamental, o qual, ao determinar que compete à Assembleia da República, no exercício de funções de fiscalização, 'vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração', exclui do âmbito daquelas funções o órgão de soberania Tribunal;
c) Não pode a Assembleia da República ignorar a existência dos presentes autos e a titularidade da instrução criminal por este Tribunal de Instrução Criminal, bem como o trânsito em julgado da decisão de arquivamento dos autos, por inexistência de indícios de crime e pela procedência da explicação acidental apresentada pela Direcção-Geral da Aeronáutica Civil. Não pode também ignorar que, como se salienta no despacho de arquivamento, essa decisão pressupõe um determinado quadro probatório, pelo que, surgindo novos e decisivos elementos de prova, o princípio da descoberta da verdade material impõe a existência de mecanismos processuais que permitam a prossecução da investigação, designadamente através do instituto da revisão;
d) Os elementos solicitados pelo Presidente da V CPIA---- são indispensáveis para que este Tribunal mantenha plenos poderes de instrução criminal. Ora, no caso concreto, a V CPIA---- e a Resolução da Assembleia da República que lhe conformou o objecto não só coarcta com a sua actividade a função de instrução criminal deste Tribunal de Instrução Criminal, invadindo o núcleo essencial da função jurisdicional, como procura ser ela própria a estabelecer a conclusão final sobre um evento que caracteriza como crime. Ao fazê-lo está, por um lado, a exercer a função jurisdicional (o que não se confunde com o exercício de poderes reconhecidos aos tribunais) e a pôr em causa uma decisão judicial transitada em julgado - a de arquivamento destes autos por inexistência de crime -, para além de não prosseguir qualquer das competências da Assembleia da República;
e) Paralelamente, e pela mesma ordem de razões, as normas dos artigos 1º, nºs. 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e 13º, nºs. 2 e 3, da Lei nº 5/93, de 1 de Março, são também inconstitucionais, ao permitirem a constituição de comissões de inquérito parlamentar perante uma qualquer sobreposição com processo judicial em curso ou com decisão transitada em julgado, sem imporem a paralisia imediata do inquérito parlamentar quando o decurso dos trabalhos envolve a afirmação da existência de crime, com o envio dos elementos pertinentes para o Ministério Público.
Com base nestes fundamentos, o Mmº Juiz 'declarou organicamente inconstitucionais' a Resolução da Assembleia da República nº 19/93, na sua parte normativa, e, bem assim, as normas dos artigos 1º, nºs. 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e
13º, nºs. 2 e 3, da Lei nº 5/93, recusando, consequencialmente, a sua aplicação, por violação dos artigos 32º, nº 4, 114º, nº 1, e 205º, nºs. 1 e 2, da Constituição.
3. Por ofício de 9 de Setembro de 1993, o Presidente da V CPIA---- solicitou ao Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que fosse facultada àquela Comissão a 'amostra em plexigasse H que contém o produto de raspagem proveniente dos calcanhares do piloto B. e os contratipos directos das radiografias', invocando expressamente o disposto nos nºs. 4 e 5 do artigo 13º e no artigo 19º da referida Lei nº 5/93.
No entanto, o Mmº Juiz indeferiu igualmente este pedido, através do despacho de fls. 3599/3608, no qual são repetidos os fundamentos constantes do primeiro despacho de indeferimento.
4. Daqueles dois despachos interpôs o Ministério Público obrigatoriamente o presente recurso para o Tribunal Constitucional, de harmonia com o estatuído no artigo 280º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Constituição e no artigo 70º, nº 1, alínea a), e 72º , nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional
(Lei nº 28/82, de 15 de Novembro).
Neste Tribunal apenas foram produzidas alegações pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto aqui em funções, as quais são rematadas com o seguinte quadro conclusivo:
1º- A Resolução nº 19/93 da Assembleia da República não é, pelo seu conteúdo, configurável como acto normativo, já que dela não resulta a definição de regras de conduta ou de critérios de decisão vinculativos para a Administração, para os Tribunais ou para as entidades privadas.
2º- Tal resolução configura-se como verdadeiro acto político, não competindo aos Tribunais sindicar a definição dos objectivos assinalados à Comissão de Inquérito constituída e não sendo, consequentemente, objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
3º- Não violam qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental as normas constantes dos artigos 1º, nºs.1 e 2, 5º, nº 1, e 13º, nºs. 2 e 3, da Lei nº
5/93, de 1 de Março.
4º- O artigo 5º, nº 2, daquela Lei, ao consentir que o inquérito parlamentar possa versar sobre matérias que foram objecto de um processo criminal já findo, por decisão transitada em julgado, não viola identicamente qualquer princípio ou preceito constitucional, designadamente o da separação de poderes ou da 'reserva do juiz'.
5º- Na verdade, as finalidades e objectivos de um inquérito parlamentar e de um processo judicial são radicalmente diversos, mesmo quando incidam sobre matérias ou temas comuns, não se traduzindo as diligências e a elaboração do relatório parlamentar no exercício de uma actividade materialmente jurisdicional, nem consistindo as averiguações parlamentares na realização de uma actividade de instrução criminal.
6º- Termos em que deverão proceder os presentes recursos, determinando-se a reforma da decisão recorrida, no que se refere à recusa de satisfação do solicitado pela Comissão Parlamentar de Inquérito, em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade das normas cuja aplicação foi recusada.
5. Foi apenso por linha aos presentes autos, por despacho do relator, um Parecer da autoria do Dr. Nuno Piçarra, o qual foi remetido a este Tribunal pelo Presidente da República.
6. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II- Fundamentos.
7. Como foi referido anteriormente, considerou o Mmº Juiz, nas decisões recorridas, que a Resolução da Assembleia da República nº 19/93 contém uma 'parte normativa', a qual é integrada especialmente pelo seu nº 4. E, em coerência com esta posição, recusou a aplicação daquele Resolução, na sua parte normativa, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Nas suas alegações, o Exmº Procurador-Geral Adjunto sustenta, no entanto, uma posição diferente daquela, negando carácter 'normativo' à Resolução nº 19/93, já que, na sua perspectiva, 'a Resolução questionada no presente processo limita-se a decidir a constituição da comissão de inquérito, a reger sobre certos aspectos do seu funcionamento e composição e a delimitar-lhe as concretas finalidades e tarefas a realizar'. Ainda na óptica do alegante, a referida Resolução não incorpora 'um verdadeiro 'acto normativo' da Assembleia - mas um verdadeiro e concreto 'acto político' deste órgão de topo do sistema de representação democrática', o qual, por força do princípio da 'separação de poderes', não pode ser sindicado pelos tribunais.
Importa, por isso, começar por analisar a questão prévia suscitada pelo Representante do Ministério Público neste Tribunal, averiguando se a Resolução da Assembleia da República nº 19/93 integra ou não o conceito de
'norma' referido na alínea a) do nº 1 do artigo 281º da Constituição e no artigo
70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional como pressuposto do recurso de constitucionalidade. Da consideração ou não da referida Resolução como 'norma' depende a sua inclusão ou não no objecto do presente recurso.
7.1. É o seguinte o conteúdo da Resolução:
'Resolução da Assembleia da República nº 19/93
Inquérito parlamentar ao acidente de ----- de --- de --- de 19----
A Assembleia da República resolve, ao abrigo dos artigos 181º, nº 4, da Constituição, e 256º, nº 2, do Regimento, e nos termos da Lei nº 5/93, de 1 de Março, o seguinte:
1- É constituída uma comissão parlamentar de inquérito para continuar a averiguação das causas e circunstâncias em que ocorreu a tragédia que, em --- de
--- de 19---, vitimou o C., o D. e seus acompanhantes.
2- A comissão terá a composição que lhe for fixada pelo Presidente da Assembleia da República, de acordo com o nº 1 do artigo 6º da Lei nº 5/93, de 1 de Março.
3- Nos trabalhos desta comissão poderão participar, querendo, representantes das famílias das vítimas, nos termos das normas legais aplicáveis.
4- A comissão considerará o trabalho das anteriores comissões parlamentares de inquérito sobre esta matéria, competindo-lhe dar-lhes continuidade, com vista a remover as dúvidas que persistem e o apuramento da verdade.
5- A comissão apresentará o relatório final no prazo de 180 dias.
Aprovada em 13 de Maio de 1993'.
7.2. Constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal, tal como já antes sucedia com a adoptada pela Comissão Constitucional, que o conceito de 'norma', para o efeito de fiscalização da constitucionalidade, não abrange apenas os preceitos de natureza geral e abstracta, mas inclui todo e qualquer acto do poder público que contiver uma 'regra de conduta' para os particulares ou para a Administração, um 'critério de decisão' para esta última ou para o juiz ou, em geral, um 'padrão de valoração de comportamento' [cfr., inter alia, os Pareceres da Comissão Constitucional nºs. 3/78, 6/78 e 13/82 (in Pareceres da Comissão Constitucional, Vol. IV, p. 221 ss., e p. 303 ss., e Vol.XIX, p. 149 ss.) e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 26/85, 63/91,
146/92 e 255/92, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Abril de
1985, 3 de Julho de 1991, 24 de Julho de 1992 e 26 de Agosto de 1992, respectivamente]. No conceito funcional e formal de 'norma' que o Tribunal Constitucional vem sistematicamente adoptando integra-se todo e qualquer preceito contido num diploma legal, ainda que se trate de um preceito de carácter individual e concreto e ainda que, neste caso, ele se revista de eficácia consumptiva, isto é, ainda que incorpore materialmente um acto administrativo (cfr. os citados Acórdãos nºs. 26/85 e 255/92), mas nele já não se incluem os actos administrativos propriamente ditos (não incorporados em diplomas legais), as decisões judiciais e os actos políticos ou de Governo.
A resolução da Assembleia da República constitui a forma dominante dos actos políticos deste órgão de soberania (cfr. o artigo 169º, nº 5, da Constituição), entendidos estes, nas palavras de A. Rodrigues Queiró, como volições primárias - e, por isso, situadas ao mesmo nível dos actos legislativos
-, provenientes de um órgão de soberania ou de um 'órgão supremo do Estado', de natureza individual e concreta - sendo, ao nível do seu conteúdo, semelhantes aos actos administrativos -, as quais representam 'o exercício de faculdades directamente conferidas pela Constituição, sem sujeição à lei ordinária, fora, portanto, de qualquer propósito de traduzir, no que respeita ao seu conteúdo, uma actuação concreta, uma volição prévia do legislador ordinário' (cfr. A Função Administrativa - Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIV, Nºs 1, 2 e 3, p. 41-48, e Lições de Direito Administrativo, vol.I, Coimbra, 1976, p. 72 ss.).
O artigo 169º, nº 5, da Constituição, ao referir que assumem a forma de resolução os actos da Assembleia da República que não revistam a forma de lei constitucional, lei orgânica, lei ou moção, é inequívoco quanto à configuração da resolução como acto político e não como acto normativo, tese que é reforçada com a previsão do nº 6 do mesmo preceito da Constituição, nos termos do qual as resoluções são publicadas independentemente de promulgação. Ora, as resoluções da Assembleia da República, enquanto manifestações da função política, não estão sujeitas a controlo jurisdicional de constitucionalidade. Todavia, não se pode olvidar que algumas resoluções têm ou possuem também um carácter normativo ou produzem também efeitos normativos, não podendo deixar de estar, nessa medida, subordinadas ao controlo jurisdicional de constitucionalidade (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 1011). Com efeito, como vincou este Tribunal, no seu Acórdão nº 42/85 (publicado no Diário da República. I Série, de 6 de Abril de 1985), 'as resoluções deverão submeter-se a juízos de inconstitucionalidade ou de ilegalidade sempre que sejam de natureza normativa'
(cfr. também o Acórdão nº 184/89, publicado no Diário da República, I Série, de
9 de Março de 1989).
7.3. Chegados a este ponto, é ocasião de perguntar se a Resolução da Assembleia da República nº 19/93 tem ou não carácter normativo.
A resposta a este quesito não pode deixar de ser negativa. A Resolução nº 19/93 assume inequivocamente a natureza de um acto político, desprovido de carácter normativo, praticado pela Assembleia da República, ao abrigo do artigo 181º da Constituição, cujo conteúdo se circunscreve à criação de uma comissão parlamentar de inquérito e à fixação da sua composição, do seu objecto e da duração do seu mandato. É certo que a Resolução da Assembleia da República nº
19/93 constitui um elemento desencadeador ou detonador de efeitos constantes da Lei nº 5/93, de 1 de Março, que contém o regime jurídico dos inquéritos parlamentares, na medida em que o acto que cria uma comissão parlamentar de inquérito e define o seu objecto, a sua composição e a duração do seu mandato implica, entre o mais, a atribuição a essa comissão de um acervo de poderes ou competências (os constantes do artigo 13º da Lei nº 5/93), a fixação de um conjunto de direitos e deveres para os seus membros (os condensados no artigo
12º da Lei nº 5/93) e o estabelecimento de um naipe de deveres e direitos de que são destinatários qualquer cidadão convocado pela comissão para depor sobre factos relativos ao inquérito ou qualquer perito requisitado ou contratado para coadjuvar a comissão nos seus trabalhos (os inscritos nos artigos 16º a 19º da Lei nº 5/93). Mas isto não é suficiente para atribuir carácter normativo à Resolução nº 19/93, uma vez que aqueles efeitos normativos são verdadeiramente criados pela Lei nº 5/93, limitando-se aquela Resolução a aplicá-los.
Apurado que a Resolução da Assembleia da República nº 19/93 constitui um acto político daquele órgão de soberania e adquirido que, no ordenamento jurídico português, o controlo jurisdicional de constitucionalidade apenas abrange os actos normativos, (cfr. os artigos 207º e 277º a 283º da Constituição), tem de concluir-se que aquela Resolução não é susceptível de integrar o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Resolvida a questão prévia assinalada, é ocasião de prosseguir.
8. O objecto do presente recurso restringe-se, assim, às normas dos artigos 1º, nºs 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e 13º, nº 2 e 3, da Lei nº 5/93.
É o seguinte o conteúdo das normas desaplicadas da Lei nº 5/93:
Artigo 1º
Funções e objecto
1- Os inquéritos parlamentares têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e apreciar os actos do Governo e da Administração.
2- Os inquéritos parlamentares podem ter por objecto qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições da Assembleia da República.
3-............................................
Artigo 5º
Informação ao Procurador-Geral da República
1- O Presidente da Assembleia da República comunicará ao Procurador-Geral da República o conteúdo da resolução ou a parte dispositiva do requerimento que determine a realização de um inquérito.
2- O Procurador-Geral da República informará a Assembleia da República se sobre o mesmo objecto se encontra em curso algum processo criminal com despacho de pronúncia transitado em julgado, suspendendo-se neste caso o processo de inquérito parlamentar até ao trânsito em julgado da correspondente sentença judicial.
Artigo 13º
Poderes das Comissões
1- ..........................................
2- As comissões têm direito à coadjuvação dos órgãos de política criminal e de autoridades administrativas nos mesmos termos que os tribunais.
3- A comissão de inquérito ou a sua mesa, quando aquela não esteja reunida, podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito aos órgãos do Governo e da Administração ou a entidades privadas as informações que julguem úteis à realização do inquérito.
4- ...........................................
5-............................................
6- ...........................................
No entender do Mmº Juiz a quo, as normas transcritas da Lei nº
5/93 infringem os artigos 32º, nº 4, 114º, nº 1, e 205º, nºs. 1 e 2, da Constituição. Entende, porém, este Tribunal que não lhe assiste razão e que as normas desaplicadas não enfermam de qualquer vício de inconstitucionalidade. Vejamos porquê.
9. Antes de se confrontar directamente os preceitos da Lei nº 5/93 acima transcritos com as disposições constitucionais pretensamente violadas, importa referir, em traços muito gerais, algumas notas características das comissões parlamentares de inquérito, em direito comparado e no direito português.
9.1. Nos actuais Estados de direito, os inquéritos parlamentares realizados por comissões criadas tempo ralmente para o efeito constituem um importante instrumento de que o parlamento dispõe para o desempenho das funções que lhe estão constitucionalmente atribuídas, designadamente as funções de fiscalização do cumprimento da Constituição e das leis e de apreciação dos actos do Governo e da Administração.
É geralmente reconhecido que o objecto dos inquéritos parlamentares pode estender-se a qualquer assunto ou matéria de interesse público. Nalguns países, é a própria Constituição que define, naqueles termos, o objecto dos inquéritos parlamentares, tal como sucede com os artigos 51º da Constituição dinamarquesa, 76º da Constituição espanhola e
82º da Constituição italiana. Noutros, é a lei ordinária e (ou) a prática constitucional a definir com o mesmo alcance o objecto dos inquéritos parlamentares (é o que acontece, por exemplo, com a Alemanha, França, Bélgica, Holanda,Grécia, Irlanda e Reino Unido).
Alguns ordenamentos constitucionais conferem às comissões parlamentares de inquérito poderes de investigação análogos aos dos tribunais, revelando, por via disso, os inquéritos parlamentares pontos de coincidência com a fase instrutória dos processos jurisdicionais. Assim, o artigo 82º da Constituição italiana prescreve que 'a comissão de inquérito procede às averiguações e aos exames com os mesmos poderes e os mesmos limites da autoridade judicial', enquanto a Lei Fundamen
tal alemã determina, no seu artigo 44º, que, na recolha dos 'meios de prova necessários', são aplicáveis 'as regras de processo penal', não sendo afectados
'o segredo de correspondência, das comunicações postais e das telecomunicações', devendo os tribunais e as autoridades administrativas 'prestar auxílio e concurso às comissões' [cfr., quanto ao direito alemão, Klaus Stern, Die Kompetenz der Untersuchungsausschüsse nach Artikel 44 Grundgesetz im Verhältnis zur Executive unter besonderer Berücksichtigung des Steuergeheimnisses, in Archiv des öffentlichen Rechts, 109 (1984), p. 230 ss.].
Na generalidade dos ordenamentos jurídicos, constitui, porém, um dado assente que as comissões parlamentares de inquérito são órgãos essencialmente políticos, não sendo, nem podendo transformar-se em tribunais. Daqui resulta que os poderes de investigação daquelas comissões não podem nunca desembocar na prolação de uma sentença condenatória com força de caso julgado, nem podem afectar direitos fundamentais que, em investigação criminal, só podem sê-lo por decisão judicial (v.g. revistas e buscas, apreensões, etc.). Como refere A. Elvira Perales, reportando-se ao direito alemão, as comissões de investigação são órgãos parlamentares que se propõem 'a clarificação do estado de coisas real mediante meios parlamentares, com o fim de obter uma valoração política'. Daqui resulta, em primeiro lugar, que 'os meios para obter a informação são meios parlamentares, o que significa, principalmente, que as comissões de investigação em nenhum caso desenvolvem uma tarefa de carácter judicial, uma vez que, por muito que o objecto de ambos os tipos de investigação coincida em numerosas ocasiões, as indagações dos tribunais e das comissões são feitas independentemente umas das outras e sem que as conclusões das comissões de investigação condicionem a decisão judicial ...'. Em segundo lugar, 'o controlo
é de carácter político e não administrativo, próprio dos tribunais administrativos e não do Parlamento. Como salientou o Tribunal Constitucional,'o controlo parlamentar é um controlo político e não um super controlo administrativo'. Este limite permite que o trabalho das comissões de investigação se mantenha dentro das funções conferidas pela Constituição ao Parlamento, para o bom funcionamento do sistema de governo por ela articulado e sem que resultem perturbados os limites da distribuição dos poderes' [cfr. Comisiones de Investigacion en el 'Bundestag'. Un Estudio de Jurisprudencia, in Revista Española de Derecho Constitucional, Ano 7, nº 19 (1987), p. 266-268].
Outra nota caracterizadora do inquérito parlamentar, em direito comparado, é a de que o êxito daquele instrumento de controlo político do parlamento depende, na maioria dos casos, da recolha de meios de prova documental que se encontram na posse de outras entidades públicas (governo, administração e tribunais). Daí que, em vários países, um dos principais elemen tos do regime jurídico dos inquéritos parlamentares, previsto ora nas constituições, ora na lei ordinária, seja o direito das comissões parlamentares de inquérito à coadjuvação por parte do governo, tribunais e administração
(incluindo os órgãos de polícia criminal), nos mesmos termos em que aos tribunais é reconhecido tal direito. O dever de coadjuvação que impende sobre o Governo e os Tribunais apenas pode ser legitimamente inobservado, em casos excepcionais, quando o órgão a quem a coadjuvação é solicitada provar inequivocamente que o envio de um determinado documento impediria o desempenho das funções que lhe são constitucionalmente atribuídas ou implicaria a violação de direitos fundamentais [cfr. Klaus Stern, ob. cit., p. 282--291, e Lorenzo Mannelli, Segreto Funzionale e Comissioni Parlamentari di Inchiesta, in Giurisprudenza Costituzionale, Ano XXXVII (1992), p. 4536 ss.].
Por fim, é geralmente admitida, em direito comparado [com excepção do direito francês - cfr., quanto a este, Jacques Desandre, Les Comissions Parlementaires d'Enquête ou de Controle en Droit Français, in Notes et Études Documentaires, nºs. 4262-4263-4264 (1976), p. 44,45], a denominada figura do
'inquérito paralelo', isto é, a possibilidade da existência simultânea de um processo de inquérito parlamentar e um ou mais processos criminais incidindo sobre os mesmos factos, dada a diferença essencial entre a função desempenhada pelas comissões parlamentares de inquérito e aquela que é cometida aos tribu
nais. Na verdade, as comissões parlamentares de inquérito não visam exercer a função jurisdicional, não tendo, por isso, como finalidade julgar e punir crimes, com força de verdade legal, mas tão-só investigar factos e recolher elementos probatórios relativos a determinadas matérias de interesse público, apresentado posteriormente as suas conclusões ao parlamento e habilitando-o, dessa forma, a exercer eficazmente as suas funções constitucionais, designadamente as de fiscalização dos actos do governo e da administração pública (cfr. Lorenzo Mannelli, ob. cit., p. 4536 ss., Alessandro Pace, Inchiesta Parlamentare, in Enciclopedia del Diritto, XX, p. 992 ss., e A. Elvira Perales, ob. cit., p. 263 ss.).
9.2. No direito constitucional português, as comissões parlamentares de inquérito foram previstas pela primeira vez no 1º Acto Adicional à Carta Constitucional de 5 de Julho de 1852 (artigo 14º).
Nos termos do artigo 181º da Constituição de 1976, a Assembleia da República pode constituir comissões eventuais de inquérito ou para qualquer outro fim determinado (nº 1). Sem prejuízo da sua constituição nos termos gerais, as comissões parlamentares de inquérito são obrigatoriamente constituídas sempre que tal seja requerido por um quinto dos Deputados em efectividade de funções, até ao limite de uma por Deputado e por sessão legislativa (nº 4), correspondendo a sua composição à representatividade dos partidos na Assembleia da República (nº 2). As comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (nº 5 do artigo
181º da Lei Fundamental).
A nível do direito ordinário, é a Lei nº 5/93, de 1 de Março (a qual veio substituir a Lei nº 43/77, de 18 de Junho), que disciplina os inquéritos parlamentares, os quais, nos termos do nº 1 do artigo 1º, têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração, podendo ter como objecto, segundo o nº 2 do mesmo preceito, qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições da Assembleia da República.
No ordenamento jurídico português, os inquéritos parlamentares não têm, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, uma função de julgar, mas de habilitar a Assembleia da República com conhecimentos que podem, eventualmente, levar a tomar medidas (legislativas ou outras sobre o assunto inquirido), estando, por isso, particularmente vocacionados como instrumento da função de fiscalização política da Assembleia da República, designadamente na 'apreciação dos actos do Governo e da Administração' [artigo 165º, alínea a), primeira parte, da Constituição] (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 719. Cfr. também o Parecer da Comissão Constitucional nº 14/77, in Pareceres da Comissão Constitucional, Vol. II, p. 53 ss.).
Tendo em conta o quadro constitucional e legislativo assinalado, podem epitomar-se, nos seguintes termos, as características principais das comissões parlamentares de inquérito no direito português:
a) As comissões parlamentares de inquérito podem ter como objecto quaisquer factos ou questões de interesse público, isto é, quaisquer matérias, desde que devidamente determinadas e delimitadas, que caibam nas competências da Assembleia da República. Não podem, aquelas ter por objecto questões que tenham a ver com interesses estritamente privados ou incidir sobre matérias que extravasem a competência da Assembleia da República ou se incluam na competência exclusiva de outros órgãos constitucionais.
b) As comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (artigo 181º, nº 5, da Constituição). Da conjugação deste preceito constitucional com o princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais, constante do artigo 205º da Lei Fundamental, resulta que, no domínio penal, detêm os tribunais o monopólio de aplicação da lei penal, traduzida no julgamento e na condenação ou absolvição pela prática de crimes, mas não lhes está constitucionalmente reservado o monopólio da investigação de factos que indiciam um crime, nem o monopólio da recolha dos correspondentes meios de prova, podendo aquela investigação e esta recolha caber às comissões parlamentares de inquérito.
c) Sendo, nos termos do artigo 18º, nº 1, da Constituição, os preceitos respeitantes aos direitos, liberdades e garantias directamente aplicáveis e vinculativos para todas as entidades públicas e privadas,devem as comissões parlamentares de inquérito, no exercício dos seus poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, respeitar aqueles preceitos. Deste modo, aqueles órgãos, no desempenho das suas funções, não poderão deixar de ter em atenção que a integridade moral e física dos cidadãos é inviolável
(artigo 25º, nº 1); que a todos os cidadãos é reconhecido o direito ao bom nome, reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º, nº
1); que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis (artigo 34º, nº 1); que das conclusões a publicar ou dos elementos susceptíveis de consultar não poderá constar matéria que possa ofender a integridade moral das pessoas, nomeadamente a imputação de crimes, tendo em vista sobretudo o artigo 32º, nº 2, segundo o qual todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação
(cfr. o citado Parecer da Comissão Constitucional nº 14/77). A isto acresce, como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, que os poderes das comissões de inquérito têm um limite naqueles direitos fundamentais dos cidadãos que, mesmo em investigação criminal, não podem ser afectados senão por decisão de um juiz (cfr. ob. cit., p. 720).
d) Da circunstância de o artigo 181º, nº 5, da Constituição atribuir
às comissões parlamentares de inquérito poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, bem como do princípio da interdependência entre os órgãos de soberania, plasmado no artigo 114º, nº 1, da Lei Fundamental, resulta que aquelas têm direito, no exercício das suas funções, à coadjuvação das autoridades judiciais e administrativas, nos mesmos termos em que o direito de coadjuvação está previsto para os tribunais no artigo 205º, nº 3, da Constituição.
Com base em tal direito, podem as comissões parlamentares de inquérito requerer aos tribunais o fornecimento de documentos ou de outros meios de prova que estejam em poder destes e que elas considerem necessários para levar a cabo um determinado inquérito parlamentar, recaindo sobre os tribunais, em princípio, o dever de facultar aqueles elementos. Só em casos excepcionais é que os tribunais poderão desrespeitar aquele dever de coadjuvação. Isso apenas poderá suceder quando o envio de tais documentos e outros meios de prova puser em causa o núcleo essencial das funções constitucionais do tribunal ou quando a disponibilização dos mesmos implicar a violação de direitos fundamentais das pessoas por eles visadas.
O nº 2 do artigo 13º da Lei nº 5/93 refere que as comissões parlamentares de inquérito têm direito à coadjuvação dos órgãos de polícia criminal e de autoridades administrativas nos mesmos termos que os tribunais. Por seu lado, o nº 3 do mesmo artigo determina que a comissão parlamentar de inquérito ou a sua mesa, quando aquela não esteja reunida, pode, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito aos órgãos do Governo e da Administração ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem
úteis à realização do inquérito. No enunciado linguístico destes dois preceitos não está previsto um dever de coadjuvação para os tribunais. Todavia, as disposições conjugadas dos artigos 114º, nº1, 165º, alínea a), 181º, e 205º, nº
3, da Constituição reclamam uma interpretação extensiva daqueles dois preceitos legais, de modo a que eles possam ser entendidos como impondo também às autoridades judiciais o dever de coadjuvação e de transmissão às comissões parlamentares de inquérito das informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito.
e) Situando-se a actividade das comissões parlamentares de inquérito no terreno exclusivamente político,com vista a habilitar o órgão máximo de representação democrática a adoptar as medidas adequadas, no âmbito da sua competência política ou legislativa, e não sendo os resultados e as conclusões daquelas comissões vinculativos para os tribunais onde existam ou tenham existido processos judiciais que versem sobre os mesmos factos ou situações, a Constituição não veda o denominado 'inquérito pararelo', isto é, a possibilidade de um mesmo facto ou situação ser simultaneamente objecto de um inquérito parlamentar e de um processo judicial. O nº 2 do artigo
5º da Lei nº 5/93 estabelece, no entanto, um limite à admissibilidade do
'inquérito paralelo', determinando que, no caso de sobre o mesmo objecto do inquérito parlamentar se encontrar em curso algum processo criminal com despacho de pronúncia transitado em julgado, deve ser suspenso o processo de inquérito parlamentar até ao trânsito em julgado da correspondente sentença judicial.
10. Nas decisões recorridas, refere-se que as normas dos artigos 1º, nºs. 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e 13º, nº 2 e 3, da Lei nº 5/93, de 1 de Março, infringem os artigos 32º, nº 4, 114º, nº 1, e 205º, nºs. 1 e 2, da Lei Fundamental, porquanto: com base nelas, podem constituir-se comissões parlamentares de inquérito com objecto coincidente com processo criminal em qualquer fase, seja de inquérito, seja de instrução e mesmo após decisão transitada em julgado; as referidas normas apenas estabelecem a obrigação de mera suspensão dos trabalhos entre o trânsito em julgado de despacho de pronúncia e o trânsito em julgado da sentença final, o que deixa em aberto a coincidência absoluta de funções a montante da pronúncia (incluindo a instrução criminal) e a jusante da sentença final (incluindo a discussão dos fundamentos da sentença condenatória ou absolutória, o que passa pela discussão do caso julgado); por fim, as normas apontadas comportam claramente como objecto possível de um inquérito parlamentar a definição da prática de um crime por um qualquer cidadão
(não importando as garantias fundamentais estabelecidas para o processo crime) ou a discussão sobre a justeza ou não de uma sentença condenatória ou absolutória (cessando com o trânsito em julgado da sentença a suspensão dos trabalhos do processo de inquérito parlamentar, a respectiva comissão apreciará então os mesmos factos da sentença e elaborará relatório que poderá dar como provados outros factos), o que não deixará de marcar os cidadãos em geral e os afectados pelo processo judicial em particular.
Que dizer desta augumentação?
10.1. O nº 1 do artigo 1º da Lei nº 5/93 estatui que os inquéritos parlamentares têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração. E o nº 2 determina que os inquéritos parlamentares podem ter por objecto qualquer matéria de interesse público relevante para o exercício das atribuições da Assembleia da República. Limitam-se estas duas normas a explicitar que a função das comissões de inquérito parlamentar (previstas, como vimos, no artigo 181º da Constituição) coincide potencialmente com a competência de fiscalização atribuída à Assembleia da República pelo artigo 165º, alínea a), da Constituição e que o objecto daquelas pode abranger qualquer matéria de interesse público que caiba no âmbito das competências daquele órgão de soberania. Assim sendo, não se vê como aquelas normas possam infringir qualquer dos preceitos constitucionais invocados, mesmo na parte em que elas possibilitam que possa ser objecto de um inquérito parlamentar um facto ou uma questão coincidente com um processo judicial, em fase de inquérito ou de instrução ou com decisão transitada em julgado. É que, como já foi referido, são totalmente diferentes a natureza da actividade prosseguida pela comissão parlamentar de inquérito, a finalidade da sua acção e o alcance do resultado que pretende alcançar, quando comparados com as funções cometidas aos tribunais.
Acrescente-se que o objecto da V CPIA---- - o qual consiste na averiguação das 'causas e circunstâncias' em que ocorreu a tragédia que, em ---- de --------- de 19----, vitimou o C., o D., e seus acompanhantes, dando continuidade ao trabalho desenvolvido por anteriores comissões parlamentares de inquérito, 'com vista a remover as dúvidas que persistem e ao apuramento da verdade' - cabe perfeitamente na função constitucionalmente cometida aos inquéritos parlamentares pelo artigo 165º, alínea a), da Lei Fundamental, dado que, com aquela Comissão, a Assembleia da República, enquanto forum político do país, propõe-se não só apurar eventuais responsabilidades decorrentes da intervenção no caso de vários organismos administrativos dependentes do Governo, mas também esclarecer definitivamente, com vista à salvaguarda da
'normalidade constitucional' no seu sentido mais amplo, um acontecimento de inegável interesse público.
10.2. O nº 1 do artigo 5º da Lei nº 5/93 prescreve que 'o Presidente da Assembleia da República comunicará ao Procurador-Geral da República o conteúdo da resolução ou a parte dispositiva do requerimento que determine a realização de um inquérito'. É manifesto que a norma que consagra um tal dever de informação não briga com qualquer preceito constitucional invocado nas decisões recorridas.
Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo determina que 'o Procurador-Geral da República informará a Assembleia da República se sobre o mesmo objecto se encontra em curso algum processo criminal com despacho de pronúncia transitado em julgado, suspendendo-se neste caso o processo de inquérito parlamentar até ao trânsito em julgado da correspondente sentença judicial'. O Mmº Juiz a quo contesta a legitimidade constitucional deste preceito, devido ao facto de ele, a contrario sensu, permitir, de um lado, a tramitação em paralelo do inquérito parlamentar e de um processo criminal que se encontre em fase anterior à pronúncia e, do outro lado, que seja aberto ou dado seguimento a um inquérito parlamentar sobre uma matéria que tenha sido objecto de um processo criminal, logo que este se encontre findo por decisão transitada em julgado - sendo este precisamente o caso dos autos.
Esta norma não infringe, porém, o princípio da separação de poderes, condensado no artigo 114º, nº 1, da Constituição. É sabido que o princípio da separação de poderes, tal como está previsto no artigo 114º, nº 1, da lei Fundamental, veda, por um lado, que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente
órgão e, do outro lado, que um determinado órgão de soberania se atribua competências em domínios para os quais não foi concebido, nem está vocacionado
(cfr., neste sentido, os Pareceres da Comissão Constitucional nºs. 16/79 e 1/80, in Pareceres da Comissão Constitucional, Vol. VIII e XI, p. 205 ss, e 23 ss.; o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 26/84, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Abril de 1984; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., cit., p. 497; e Nuno Piçarra, A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional, Coimbra, Coimbra, Editora,
1989, p. 247-265). Ora, aquela norma não implica a invasão por parte das comissões parlamentares de inquérito do núcleo essencial da competência jurisdicional dos tribunais em matéria penal, no sentido de a estes estar reservada, com exclusão de quaisquer outros órgãos ou entidades, a condenação pela prática de um crime, bem como a aplicação das penas correspondentes, nem importa a assunção de poderes jurisdicionais por parte daquele órgão parlamentar, isto é, de poderes para os quais não está vocacionado, no que respeita à sua estrutura, legitimação, procedimento e responsabilidade.
Têm cabimento, neste local, as seguintes palavras de A. Elvira Perales, a propósito da relação entre as comissões parlamentares de inquérito e o princípio da separação de poderes: 'Parte da polémica suscitada acerca das comissões de investigação gira em redor da questão de saber se elas atentam contra o princípio da divisão de poderes. A resposta deve ser negativa. A separação de poderes na actualidade não corresponde aos mesmos princípios que regiam nos inícios do constitucionalismo; na actualidade, os termos mais adequados não são os de divisão ou separação, mas os de distinção ou colaboração de poderes, o que resulta bem visível da consideração dos textos constitucionais e, em concreto, da Lei Fundamental de Bona. A colaboração entre poderes tem múltiplas manifestações, sendo uma delas, precisamente, a das comissões de investigação, através das quais um órgão do Parlamento investiga o Governo, exercendo uma inovadora forma de controlo mais efectiva do que, por exemplo, a tradicional moção de censura e que, dada a actual articulação maioria-minoria, permite exercer um controlo real ainda que sempre sujeito à limitação que decorre do predomínio da maioria.
Deste modo, importará considerar que o conceito de separação de poderes não é um princípio inamovível, mas algo sempre adaptável às circunstâncias concretas e a cada regime político em particular, desde que se mantenha a independência entre os diversos poderes que caracteriza o Estado de direito democrático, tal como é concretamente configurado na Constituição.
As comissões de investigação não implicam, deste modo, um atentado à
'divisão de poderes', mas antes uma forma de levá-la a cabo, já que a existência e os direitos das comissões de investigação têm na sua base o sistema parlamentar de governo, ocupando um papel relevante dentro dos mecanismos de controlo previstos face a um governo responsável.
Por outro lado, as comissões de investigação, tal como o próprio Bundestag, são independentes face aos outros órgãos do Estado, especialmente às entidades administrativas e aos tribunais, ainda que, em determinadas ocasiões, necessitem da sua colaboração. As comissões de investigação são independentes tanto na sua actuação, como nas decisões que tomam, com os únicos limites estabelecidos na Constituição' (cfr. ob. cit., p. 265, 266).
Acrescente-se que a ideia de colaboração entre poderes, como algo não incompatível com o princípio de separação de poderes, foi expressamente recebida no artigo 114º, nº 1, da Constituição, que consagra simultaneamente os princípios da separação e da interdependência entre os órgãos de soberania.
De igual modo, a norma do nº 2 do artigo 5º da Lei nº 5/93, na parte em que possibilita a criação de uma comissão parlamentar de inquérito para averiguar um facto ou uma situação que foi objecto de um processo judicial com decisão transitada em julgado, não viola o princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais, inserto no artigo 205º, nºs 1 e 2, da Constituição.
É que, não obstante a coincidência ou sobreposição de objectos entre a comissão parlamentar de inquérito e o processo judicial findo, verifica-se uma profunda e radical diversidade entre os objectivos prosseguidos num e noutro caso. Como acentua o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, 'ao contrário do que, com base em 'presunções naturais', se parece dar como assente nos despachos recorridos - o fim do inquérito parlamentar não consiste, nem poderá nunca consistir em 'descobrir os autores do pretérito atentado', exercendo uma actividade materialmente jurisdicional, procedendo à instrução de um processo criminal à revelia do juiz e - provavelmente - culminando na 'revogação' do despacho de arquivamento proferido nestes autos...
Na realidade, o objectivo das indagações parlamentares só poderá consistir numa averiguação informal e global, destinada a habilitar a Assembleia da República - como órgão político e não obviamente como entidade jurisdicional
- a adoptar as medidas (legislativas, políticas, de fiscalização, etc.), situadas no âmbito da sua competência constitucional, que julgar adequadas.
Não ocorre, pois, em consequência do regime estabelecido no nº 2 do artigo 5º da Lei nº 5/93, qualquer 'partilha' de funções jurisdicionais entre a Assembleia da República e os Tribunais, que possa constituir infracção aos princípios constitucionais da independência do poder judicial e da reserva do juiz'.
10.3. O nº 2 do artigo 13º da Lei nº 5/93 estabelece que as comissões parlamentares de inquérito têm direito à coadjuvação dos órgãos de polícia criminal e de autoridades administrativas nos mesmos termos que os tribunais. Quanto ao nº 3 do mesmo preceito, dispõe ele que a comissão de inquérito pode solicitar por escrito informações e documentos pertinentes para o objecto do inquérito ao Governo, aos órgãos da Administração ou a entidades privadas.
As duas normas referidas não são mais do que o corolário do que se dispõe no nº 1 do artigo 13º, nos termos do qual as comissões parlamentares de inquérito gozam de todos os poderes de investigação das autoridades judiciárias
- preceito este que se limita a reproduzir o essencial do estatuído no artigo
181º, nº 5, da Constituição ('As comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais').
Tem-se, por isso, como líquido que o direito à coadjuvação e o direito de acesso a informações e documentos nas mãos do Governo, da Administração e de entidades privadas, previstos, respectivamente, nos nºs. 2 e 3 do artigo 13º da Lei nº 5/93, não infringem nenhum dos preceitos constitucionais invocados pelo Mmº Juiz a quo, tanto mais que do teor meramente literal destas duas normas não resulta a extensão aos tribunais do dever de coadjuvação e da obrigação de fornecimento às comissões parlamentares de inquérito das informações e documentos em seu poder necessários para a realização do inquérito.
Todavia, nos presentes autos, foi feita uma interpretação extensiva dos nºs. 2 e 3 do artigo 13º da Lei nº 5/93, em termos de o dever de coadjuvação e de transmissão de informações e documentos abranger também as autoridades judiciais. Aquela modalidade interpretativa foi feita, desde logo, pelo Presidente da V CPIA----, como resulta dos ofícios dirigidos ao Mmº Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa de fls.3571 e 3597. Mas foi igualmente utilizada pelo Mmº Juiz a quo, ao negar a disponibilização dos elementos solicitados e ao fundamentar uma tal negação na inconstitucionalidade das normas dos nºs 2 e 3 do artigo 13º da Lei nº 5/93, interpretadas com o sentido de elas incluirem também os tribunais.
Ora, entende o Tribunal que a interpretação que foi dada nos autos
àquelas duas normas não só não viola qualquer preceito constitucional, como ainda é a mesma imposta pelas disposições conjugadas dos artigos 114º, nº 1,
181º, nºs. 1 e 5, e 205º, nº 3, da Constituição. Na verdade, o legislador constituinte, ao prescrever, no nº 5 do artigo 181º da Constituição, que 'as comissões parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais', pretendeu seguramente que aqueles órgãos parlamentares sejam coadjuvados, no desempenho das suas actividades de investigação, pelas mesmas entidades e nos mesmos termos em que o são os tribunais. Ora, tendo os tribunais, nos termos do artigo 205º, nº 3, da Lei Fundamental, direito a coadjuvação das outras autoridades, nestas se incluindo as autoridades judiciais, deve entender-se, atento o disposto naquelas disposições constitucionais, que também às comissões parlamentares de inquérito assiste o direito à coadjuvação das outras autoridades, com inclusão dos tribunais.
10.4. As normas dos artigos 1º, nºs. 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e 13º, nºs. 2 e 3, da Lei nº 5/93 não violam, pois, cada uma de per si ou no seu conjunto, os artigos 114º, nº 1, e 205º, nºs. 1 e 2, da Constituição. Mas, além disso, elas não infringem, contrariamente ao que vem afirmado nas decisões recorridas, o artigo 32º, nº 4, da Lei Fundamental, que determina que 'toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais'. A não violação do princípio do monopólio judicial da instrução criminal, ínsito no artigo 32º, nº 4, da Constituição, por parte das normas desaplicadas nas decisões recorridas resulta claro, desde logo, de três ordens de razões. Em primeiro lugar, a investigação levada a cabo por uma comissão parlamentar de inquérito, ainda quando tenha objecto matérias que estão ou já estiveram pendentes de um processo judicial, não é equiparável à instrução criminal, já que se situa num plano político e não judicial. Os fins prosseguidos pelos tribunais e pelas comissões parlamentares de inquérito são distintos, uma vez que os primeiros visam determinar a responsabilidade jurídica (civil, penal ou administrativa), ao passo que as segundas apenas procuram apurar a responsabilidade política ou simplesmente realizar uma tarefa de informação para o parlamento (cfr. A. Elvira Perales, ob. cit., p. 267). Enquadrando-se a actividade desenvolvida pelas comissões parlamentares de inquérito e a exercida pelas autoridades judiciais no processo penal em dois procedimentos dotados de finalidades diversas, não deve haver qualquer influência de um sobre a outra, não podendo as provas documentais e não documentais obtidas por uma comissão parlamentar de inquérito ser utilizadas na instrução judicial, nem os resultados do inquérito podem ser invocados em favor ou em prejuízo dos sujeitos em relação aos quais tenha sido ou venha posteriormente a ser instaurado um processo penal. Com efeito, ainda quando a obtenção do material probatório por uma comissão parlamentar de inquérito tenha observado as regras e os princípios do processo penal, não se pode olvidar que aqueles elementos probatórios são o resultado da actividade de um órgão político, movido por finalidades políticas, e não da actividade de uma autoridade judicial, tendo como única preocupação a realização da justiça [cfr. Mario Risani, Appunti sul Segreto delle Commissioni Parlamentari d' Inchiesta, in Giurisprudenza Costituzionale, Ano XXI (1976), p.
254; Constantino Mortati, Dibattito sulle Inchieste Parlamentari, in Problemi di Politica Costituzionale, Vol. IV, Milano, Giuffrè, 1972, p. 125 ss.; e Franco Pierandrei, Inchiesta Parlamentare, in Scritti di Diritto Costituzional, Vol.II, Torino, Giappichelli,1964, p. 643, 644].
Do exposto resulta claramente que a instituição da V CPIA--- nunca poderá pôr em causa a decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa de arquivamento do processo sobre o caso --------------, uma vez que a actividade a desenvolver por aquela Comissão é totalmente independente da actividade daquele tribunal e os resultados a que a mesma chegar não são vinculativos para o referido órgão de administração da justiça.
Em segundo lugar, é o próprio artigo 181º, nº 5, da Constituição que prevê o gozo por parte das comissões parlamentares de inquérito de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. Deste preceito resulta claramente que aquelas comissões detêm poderes idênticos aos reconhecidos aos
órgãos de jurisdição penal na fase instrutória e que, no âmbito dos seus poderes de investigação, cabe perfeitamente a recolha de informações e de outros elementos de prova sobre factos ou comportamentos com relevância jurídico-penal ou em relação aos quais tenha sido instaurado ou venha a ser instaurado procedimento criminal. No exercício dos poderes de investigação, podem as comissões parlamentares de inquérito recorrer a inspecções, perícias e prova testemunhal, bem como requisitar documentos, com observância, porém, dos limites decorrentes do processo penal em matéria de direitos de defesa do arguido (cfr. Pietro Virga, Inchieste Parlamentari, in Annali del Seminario Giuridico, Vol.IV, Napoli, Jovene, 1950, p. 275 ss.; Alessandro Pace, ob.cit., p. 1019 ss.; e Franco Pierandrei, ob. cit., p. 637 ss.).
Em terceiro lugar, como já foi acentuado, os poderes de investigação das comissões parlamentares estão sujeitos a determinados limites, traduzidos uns no dever de respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos e outros na proibição da prática de actos de instrução criminal (v.g. revistas e buscas domiciliárias) que só podem ter lugar mediante prévia autorização dos tribunais. A adopção de medidas de investigação ou de instrução que se traduzam na imposição de restrições e sacrifícios importantes aos direitos fundamentais dos cidadãos apenas pode, assim, ser decidida por órgãos independentes e imparciais como os tribunais, isto é, por órgãos que não sejam determinados por outros interesses que não o da administração de justiça.
Eis, pois, como deve concluir-se que as normas da Lei nº 5/93 desaplicadas nas decisões recorridas não violam os preceitos constitucionais invocados, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
11. Importa, finalmente, deixar registada uma nota. No direito português, o Tribunal Constitucional não tem poderes para dirimir os conflitos de competências entre órgãos de soberania, mas apenas para apreciar as questões de constitucionalidade e, em certos casos, de legalidade de normas jurídicas. No caso dos autos, o conflito de competências entre a Assembleia da República, através da V CPIA---, e o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa teve, porém, como base uma questão de inconstitucionalidade de normas jurídicas, já que a resposta negativa dada pelo Mmº Juiz a quo à solicitação do Presidente da V CPIA--- teve como pressuposto um juízo de inconstitucionalidade da Resolução da Assembleia da República nº 19/93, na sua 'vertente normativa', e das normas dos artigos 1º, nºs. 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e 13º, nºs. 2 e 3, da Lei nº 5/93.
O juízo de não inconstitucionalidade das normas da Lei nº 5/93 questionadas pelo Mmº Juiz a quo agora proferido pelo Tribunal Constitucional implica a reformulação dos despachos recorridos, enquanto recusaram a satisfação do solicitado pelo Presidente da V CPIA----. É este, aliás, um resultado que, além do mais, é imposto pelos princípios da cooperação ou leal colaboração entre órgãos de soberania e da boa fé constitucional, que, conforme vem vincando a jurisprudência e doutrina comparadas, devem ser observados nas relações entre as comissões parlamentares de inquérito e os tribunais, dada a contiguidade entre a actividade desenvolvida por aquelas e estes.
A obrigação de reforma dos despachos recorridos por parte do Mmº Juiz a quo, em consequência da presente decisão do Tribunal Constitucional, não
é afectada pela circunstância de o Tribunal Constitucional não tomar conhecimento do recurso, no respeitante à Resolução da Assembleia da República nº 19/93 - com o consequente trânsito em julgado dos despachos recorridos, na parte em que recusaram a aplicação da referida Resolução -, uma vez que, conforme ressalta do discurso do presente aresto, o julgamento de não inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, nºs. 1 e 2, 5º, nºs. 1 e 2, e
13º, nº 2 e 3, da Lei nº 5/93 - normas estas que integram a disciplina jurídica por que se regem o objecto e a actividade da V CPIA--- - elimina, por si mesmo, os efeitos da decisão de recusa de aplicação da Resolução nº 19/93, despojando-a de qualquer consequência prática.
III- Decisão.
12. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso no respeitante à Resolução da Assembleia da República nº 19/93, publicada no Diário da República, I Série-A, nº 137, de 14 de Junho de 1993;
b) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 1º, nºs. 1 e
2, 5º, nºs. 1 e 2, e 13º, nºs 2 e 3, da Lei nº 5/93, de 1 de Março;
c) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar as decisões recorridas, que devem ser reformadas, no que se refere à recusa do solicitado pelo Presidente da V Comissão Parlamentar de Inquérito ao Acidente de --------- de ---- de ------- de 19----, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 1 de Março de 1994
Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito
Messias Bento
(vencido nos termos da declaração de voto que junto).
Bravo Serra (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto apresentada pelo Ex.mo Conselheiro Messias Bento) Luís Nunes de Almeida
Proc. nº 478/93 Cons. Messias Bento
Declaração de voto:
1. Acompanhando, embora, nas suas linhas gerais, o discurso argumentativo do acórdão, dele divirjo num ponto significativo.
É ele o seguinte: acompanho tal discurso, no ponto em que no acórdão se admite a possibilidade de que um inquérito parlamentar corra paralelamente a uma investigação criminal tendo por objecto os mesmos factos ou a mesma situação, e que a respectiva comissão obtenha a colaboração dos tribunais ou dos órgãos de polícia criminal.
Entendo também - e aqui ainda em consonância com o acórdão, segundo penso - que um inquérito parlamentar não pode ter o objectivo de averiguar a prática de crimes, nem o de indagar se, num dado caso, se justificou ou não a absolvição (ou a condenação), a pronúncia (ou a não pronúncia) de um arguido. O seu objectivo tem que ser o de apurar a existência de eventuais responsabilidades políticas - o que, naturalmente, pode passar pela indagação de factos que importem responsabilidade criminal.
O inquérito parlamentar é, com efeito, essencialmente, um instrumento ao serviço da função de fiscalização política que à Assembleia da República cabe exercer sobre os 'actos do Governo e da Administração' [cf. o artigo 181º, nº 1, em conjugação com o artigo 165º, alínea a) da Constituição]. Ele não é, seguramente, um instrumento ao serviço do objectivo de 'reprimir a violação da legalidade democrática', que é tarefa que a Constituição comete exclusivamente aos tribunais (cf. artigo 205º, nº 1) ou do desiderato de controlar o modo como os juízes administram a justiça: o exercício da acção disciplinar sobre os juízes compete ao Conselho Superior da Magistratura (cf. artigo 219º, nº 1, da Constituição).
As comissões parlamentares de inquérito podem, por isso, proceder à investigação de factos indiciadores de crime (e, assim, à recolha das provas respectivas), quando tal for necessário para o apuramento de responsabilidades políticas do Governo ou da Administração. Não o poderão fazer, se o seu propósito for tão-somente o de averiguar se, num dado caso, houve ou não crime. Do mesmo modo que não o poderão fazer, se esse caso já foi averiguado e objecto de despacho de não pronúncia ou de sentença (condenatória ou absolutória), com trânsito em julgado, nos termos dos artigos 307º, nº 1, 308º, nº 1, 375º e 376º do Código de Processo Penal, respectivamente.
É certo que, como se diz no acórdão, 'são totalmente diferentes a natureza da actividade prosseguida pela comissão parlamentar de inquérito, a finalidade da sua acção e o alcance do resultado que pretende alcançar, quando comparados com as funções cometidas aos tribunais'.
Isto, porém, não significa que certos valores (como os da certeza e da segurança jurídicas) não devam valer também para os inquéritos parlamentares.
A realização da justiça é o fim primeiro do processo penal - o que reclama que, aí, se busque a verdade (a verdade material, que não uma verdade puramente formal) e que, a fim de evitar condenações injustas, se observe a regra in dubio pro reo. No entanto, por razões de segurança e de certeza, nele deixam-se consolidar decisões materialmente injustas, que é o que acontece, por exemplo, com as sentenças absolutórias e com os despachos de não pronúncia, transitados em julgado, de que beneficiem criminosos.
A segurança e a certeza surgem, então, no processo penal, se não como um modo particular de ainda realizar a ideia de Direito (o
'justo'), ao menos, como um expediente destinado a subtrair os indivíduos à possibilidade (que, teoricamente, existe) de serem, sem quaisquer limitações de tempo, objecto de perseguição criminal - um expediente, em suma, para (a par de outros institutos, como o da prescrição das penas e do procedimento criminal) os defender contra o arbítrio incondicionado do aparelho punitivo.
O valor da certeza e da segurança (e, assim, da intangibilidade do caso julgado) só em casos muito contados pode ser afrontado: são as hipóteses em que é admissível o recurso extraordinário de revisão
(previstas, actualmente, no artigo 449º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal). Em tais situações, aquele valor entra em conflito aberto com o valor da justiça, em termos tais que, para a consciência jurídica, não é mais tolerável deixar subsistir a decisão judicial proferida. E isso é assim, porque, num tal caso, a segurança e a certeza passaram a mostrar-se como aquilo que, no processo, elas são na realidade: uma segurança e uma certeza do injusto - uma segurança falsa, porque meramente aparente.
Àparte esses casos, a decisão judicial transitada (seja sentença, seja despacho), ainda que não tenha chegado à verdade e, assim, realizado a justiça, subsiste intocável.
É que, seria contrário à paz jurídica - e, assim, à segurança dos cidadãos e à confiança que, nos quadros de um Estado de Direito, eles devem poder depositar nas instituições - que um processo penal pudesse ser reaberto a qualquer altura e que, desse modo, se transformasse numa espada afiada e sempre pronta a cair sobre as suas cabeças (ou seja, numa ameaça permanente à liberdade, à honra, ao bom nome e à segurança das pessoas, que, em
último termo, desse modo, se veriam atingidas na sua dignidade). Isso seria incompatível com o princípio do Estado de Direito, que, justamente, assenta na dignidade da pessoa humana, e, bem assim, com a força preclusiva que a própria Constituição, mesmo perante declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, atribui aos casos julgados (cf. artigo 282º, nº 3).
Ora isto - que é assim quando esteja em causa a reabertura de um processo criminal - não pode deixar de valer também para a reabertura de um inquérito parlamentar.
É que, estando em causa a indagação de factos susceptíveis de importar responsabilidade criminal, a circunstância de o inquérito parlamentar assumir uma natureza e ter uma finalidade e um alcance diversos dos do processo criminal não impede que a sua reabertura vá pôr em perigo aqueles bens jurídicos. Para além de que, investigar factos, que um tribunal já julgou por sentença (ou despacho) com trânsito em julgado, importa sempre, em maior ou menor medida, um 'julgamento' da decisão judicial - e, nesse ponto (mas só nele), é a separação de poderes que é afrontada.
Por isso é que, transitada em julgado a decisão judicial
(sentença penal, condenatória ou absolutória, ou despacho de não pronúncia), o inquérito parlamentar só deve poder ser reaberto nos mesmos casos em que é possível a revisão da sentença penal ou do despacho de não pronúncia.
2. Não cabe aqui pronunciar-me sobre a correcção jurídica do despacho de arquivamento proferido nos autos que é aqui insindicável.
Recordo, apenas que, no domínio do Código de Processo Penal de 1929, em que o mesmo foi proferido, só devia ordenar-se o arquivamento do processo, quando pela instrução se verificasse 'que os factos que dos autos constam não constituem infracção penal, ou que se extinguiu a acção penal em relação a todos os seus agentes' (cf. artigo 343º do Código de Processo Penal e, identicamente, o artigo 25º do Decreto-Lei nº 35.007, de 13 de Outubro de 1945). Se não houvesse 'prova bastante dos elementos da infracção ou de quem foram os seus agentes', então, o processo devia ser mandado aguardar a produção de melhor prova (cf. artigo 345º do Código e 29º do Decreto-Lei nº 35.007). E recordo também que, quando os autos fossem mandados aguardar a produção de melhor prova, podiam eles 'prosseguir logo que aparec[essem] novos elementos de prova' (cf. o
§ único do citado artigo 345º), tal como hoje sucede nos casos de arquivamento por falta da obtenção de 'indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os agentes', a que se refere o nº 2 do artigo 277º (cf. artigo 279º, nº 1).
Lembro, por outro lado, que, enquanto a jurisprudência se pronunciava no sentido que o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público era uma decisão de carácter puramente administrativo
(insusceptível, por isso, de transitar em julgado), certa Doutrina sustentava que um tal despacho tinha valor e eficácia análogos ao do caso julgado (cf. EDUARDO CORREIA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 93º, páginas 33 e seguintes, e FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, página
411, e a jurisprudência aí citada).
Sendo tal despacho proferido pelo juiz - caso em que assumia a natureza de despacho de não pronúncia (cf. artigo 367º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 185/72, de 31 de Maio, em conjugação com os artigos 43º e 44º do Decreto-Lei nº 35.007) - parece indubitável que ele transitava em julgado, em termos idênticos ao que hoje sucede com o despacho previsto nos artigos 307º, nº 1, e 308º, nº 1.
Quanto ao despacho que mandava os autos aguardar a produção de melhor prova, a força de caso julgado ficava submetida à cláusula rebus sic stantibus, como bem decorre da possibilidade de reabertura do processo
'logo que apareçam novos elementos de prova', consagrada no citado § único do artigo 345º (e, hoje, no nº 1 do artigo 279º).
Messias Bento