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Proc. nº 59/92
1ª Secção Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No processo de expropriação por utilidade pública de uma parcela de terreno situada no concelho da ------, destinada à construção de uma variante entre a Estrada Nacional ---- e a Estrada Nacional ----, da decisão arbitral que fixou em 1.182.000$00 o respectivo valor, interpuseram recurso, para o Tribunal da Comarca do Porto, o Ministério Público, em representação da expropriante JUNTA AUTÓNOMA DAS ESTRADAS - DIRECÇÃO DE ESTRADAS DO PORTO
(defendendo a redução da indemnização para quantia não superior a 737.078$00) e o expropriado, A. (defendendo a fixação da indemnização em 7.045.000$00).
Efectuada a avaliação, chegaram os peritos às seguintes quantias indemnizatórias:
a) perito do expropriante - 777.000$00;
b) perito do tribunal - 1.791.130$00;
c) perito do expropriado - 5.254.142$00.
Por sentença de 4 de Março de 1991, foi fixado em 3.782.470$00 o valor da indemnização em causa.
2. Desta sentença apelou o Ministério Público, considerando
'exagerada e não correspondendo ao valor real e corrente da parcela expropriada' a indemnização fixada pelo Tribunal, expondo as seguintes conclusões:
' - De acordo com as premissas em que assentou a indemnização esta seria de 3.492.470$00 e não de 3.782.470$00 (conclusão 3ª);
- O Tribunal não poderia fixar valor superior em mais de 50% acima do laudo maior entre os peritos do tribunal e os árbitros (conclusão 4ª);
- Ora, sendo o laudo dos peritos do tribunal unânime e de valor superior ao dos árbitros é aquele que condiciona (conclusão 5ª);
- O valor do laudo dos peritos do tribunal é de 1.791.130$00, resultando então o máximo para valor da sentença de 2.686.695$00 (conclusão 6ª);
- Seria pois de 2.686.695$00 o valor máximo legal a fixar ( conclusão
7ª);
- Mas até este valor é exagerado (conclusão 8ª);
- Sendo, assim, o valor real e corrente da parcela expropriada de
777.000$00 (conclusão 12º).'
Por seu turno o expropriado defendeu a improcedência do recurso.
3. Por acórdão de 6 de Janeiro de 1992, o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento parcial ao recurso e fixou a indemnização em
3.492.470$00, podendo ler-se nesta decisão, quanto às conclusões 4ª a 7ª da apelante:
'A argumentação da apelante funda-se no artigo 83º, nº 2, do Código das Expropriações.
Face aos princípios referidos em I e à doutrina dos mencionados acórdãos do Tribunal Constitucional, tem de se entender que as limitações estabelecidas nesse nº 2 do artigo 83º viola o princípio constitucional consagrado no referido artigo 62º, nº 2, da Constituição, por serem susceptíveis de impedir a fixação de uma justa indemnização, nos termos expostos (...).
Assim, não há que argumentar com esse artigo 83º, nº 2, pelo que, portanto, improcedem as conclusões 4ª a 7ª.'
4. Deste acórdão interpôs recurso o Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a) e nº 3 e 70º, nº 1, alínea a) e
73º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em virtude de se ter verificado recusa de aplicação do artigo 83º, nº 2 , do Código das Expropriações, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Alegando neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que 'é inconstitucional, por violação do artigo 62º, nº 2, da Constituição, a norma do nº 2 do artigo 83º do Código das Expropriações
(Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro), na medida em que pode impedir que o tribunal arbitre ao expropriado a indemnização considerada justa quando o seu valor for superior ao laudo maior entre os três peritos designados pelo presidente do Tribunal da Relação, acrescido de metade, ou inferior, em igual percentagem, ao menor desses laudos, nos casos em que a esses laudos não pode ser imputada qualquer infracção à lei', pelo que concluiu dever ser confirmada a decisão recorrida.
No mesmo sentido contra-alegou o recorrido A..
Foram corridos os vistos legais.
II
1. Objecto do presente recurso é, pois, a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 83º do Código das Expropriações que, com tal fundamento, foi desaplicada na decisão recorrida, na medida em que estabelece limites à fixação da indemnização por expropriação.
Sobre esta temática foram já tirados os Acórdãos nº 316/92 ( da
2ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Fevereiro de
1993) e nº 370/92 (da 1º Secção, de 26 de Novembro de 1992, ainda inédito), seguindo-se de perto a orientação do primeiro daqueles arestos, já que no segundo não se chegou a tomar conhecimento do pedido.
2. Dispõe a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida:
'........................................... ..
2 - O juiz decide segundo a sua convicção, formada sobre a livre apreciação das provas, mas a indemnização, variável entre o máximo e o mínimo indicado pelas partes, na petição de recurso e na resposta, não pode ser fixada em valor superior ao do laudo maior entre os três peritos designados pelo tribunal e o árbitro indicado pelo presidente do Tribunal da Relação, acrescido de metade, nem inferior ao do menor desses laudos, diminuído de igual fracção.'
Conforme se refere no já citado Acórdão nº 316/92, a norma em causa pode, desde logo, suscitar a dúvida de se saber se ela estatui directamente um limite ao montante indemnizatório ou se, pelo contrário, tal limitação só operará indirectamente, por força de uma limitação aos poderes de cognição do juiz de que resultará, pois, a compressão do montante indemnizatório.
Contudo, tal questão, em si mesma, não releva decisivamente, pois que, seja como for, o que é certo é que a limitação imposta pelo preceito em crise comporta a possibilidade de, em certos casos, não seja atribuído ao bem expropriado o valor da 'justa indemnização' postulado pelo artigo 62º, nº 2, da Constituição.
Que assim se podem passar as coisas resulta da crítica dirigida ao preceito por FERNANDO ALVES CORREIA (As garantias do particular na expropriação por utilidade pública, in 'Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Suplemento XXIII, págs. 341 e 342), onde se pode ler:
'A atribuição ao particular de uma garantia judicial de fixação do montante da indemnização revela-se deveras importante, sobretudo pelo facto de a nossa lei seguir um critério material na determinação do montante da indemnização, de acordo com o valor real e corrente dos bens. Através da fiscalização judicial, o juiz poderá avaliar ele mesmo o prejuízo suportado pelo expropriado, fixando o montante de acordo com o valor real e corrente do bem expropriado.
Todavia, aquela possibilidade pressuporia que ao juiz fosse atribuído sem quaisquer restrições um poder de decisão segundo a sua convicção, baseado na livre apreciação das provas.
Ora, a nossa lei não concede ao juiz uma liberdade completa, na medida em que estatui que a indemnização, variável entre o máximo e o mínimo indicado pelas partes, na petição de recurso e na resposta, não pode ser fixada em valor superior ao do laudo maior entre os três peritos designados pelo tribunal e o árbitro indicado pelo Presidente do Tribunal da Relação, acrescido de metade, nem inferior ao do menor desses laudos, diminuído de igual fracção
(artº 83º, nº 3).'
Com efeito, atendendo à natureza material do critério legalmente imposto, casos poderá haver em que o valor assim determinado (pela adição de metade ao maior dos laudos dos três peritos designados pelo tribunal e do árbitro indicado pelo presidente do Tribunal da Relação) acabe por se mostrar inferior àquele que deveria ser considerado como 'justo', à luz do aludido critério do valor real e corrente dos bens, para efeitos de ressarcimento do prejuízo sofrido pelo expropriado. Ora, como resulta do trecho transcrito de ALVES CORREIA, a avaliação, pelo juiz, do sacrifício efectivamente sofrido pelo expropriado não se compagina com as limitações decorrentes da norma em apreço, uma vez que elas impedem ao juiz de formular uma decisão baseada na sua convicção com base na livre apreciação das provas.
3. Desta circunstância resulta que o sistema da norma em crise não se mostra idóneo para satisfazer as exigências do artigo 62º, nº 2, da Constituição, que dispõe que 'a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento da justa indemnização'.
É bem certo que a nossa Lei Fundamental não fornece um específico critério indemnizatório susceptível de ser directamente reportado ao conceito constitucional de 'justa indemnização'.
Mas não é menos verdade que a doutrina e a própria jurisprudência constitucional têm vindo ao longo do tempo a fornecer relevantes subsídios para a sua densificação.
A este propósito escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 336):
'O pagamento da justa indemnização (...) não passa de uma expressão particular do princípio geral, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, de indemnização pelos actos lesivos de direitos e pelos danos causados a outrem (...). Em certo sentido, o direito de propriedade (...) transforma-se, em caso de requisição ou expropriação, no direito ao respectivo valor.
É certo que, determinando a Constituição que a indemnização há-de ser 'justa', ela não estabelece, porém, qualquer critério indemnizatório ('valor venal', 'valor de mercado', 'valor real' etc.); mas é evidente que os critérios definidos por lei têm de respeitar os princípios materiais da Constituição
(igualdade, proporcionalidade), não podendo conduzir a indemnizações irrisórias ou manifestamente desproporcionadas à perda do bem requisitado ou expropriado.
(...)
A ideia de indemnização comporta, desta forma, duas dimensões importantes: a) uma ideia tendencial de contemporaneidade (...); b) justiça de indemnização quanto ao ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado, o que pressupõe a fixação do valor dos bens ou direitos expropriados que tenha em conta, por exemplo, a natureza dos solos (aptos para construção ou para outro fim), o rendimento, as culturas, os acessos, a localização, os encargos, etc., isto é, circunstâncias e as condições de facto.'
Abordando esta temática, ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 532 e ss., preconiza a adopção de três parâmetros fundamentais quanto ao conceito de 'justa indemnização', expressos na proibição de atribuição de indemnização simplesmente nominal, simbólica ou irrisória, na atribuição de uma indemnização respeitadora do princípio da igualdade de encargos (tanto na relação interna como na relação externa da expropriação) e na atribuição de uma indemnização que tenha em conta o interesse público existente na expropriação.
Por seu turno, também o Tribunal Constitucional, em inúmeros arestos, tem vindo a sublinhar a ideia segundo a qual uma indemnização, para que possa ser tida por 'justa' há-de implicar a cobertura da totalidade ou da integralidade dos prejuízos suportados pelo expropriado em virtude da expropriação ( cfr., entre muitos outros, os Acórdãos nº 52/90, no Diário da República, I Série, de 30 de Março de 1990 e 37/91, na II Série do jornal oficial de 26 de Junho de 1991).
Ora, a solução normativa em crise traduz-se em que a lei, por via directa ou indirecta, acaba por consagrar um limite objectivo de natureza externa, definido aprioristicamente, quanto à possibilidade de a decisão judicial vir a permitir o total ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo expropriado por efeito da expropriação. Solução esta que posterga irremediavelmente a garantia constitucional da 'justa indemnização', tanto mais quanto não existam razões ligadas ao interesse público que a expropriação serve, e que eventualmente possam justificar a introdução de correcções ao princípio do ressarcimento integral dos prejuízos sofridos, como não se vislumbra existirem no caso da norma em apreço.
4. Acresce ainda que da solução ora censurada resulta uma flagrante desigualdade, como se pôs em destaque no já citado Acórdão nº 316/92, entre hipóteses 'em que, por um lado, o real [emprega-se aqui esta expressão por aproximação daqueloutra utilizada no nº 1 do artigo 28º do Código das Expropriações] prejuízo de um expropriado fosse plenamente coberto por uma indemnização que se postava num patamar situado entre o quantitativo maior dos laudos dos peritos designados pelo tribunal ou do árbitro designado pelo presidente da Relação e o montante a que se chegasse pela adição de metade a esse quantitativo (caso em que o juiz se não encontrava limitado na atribuição do ressarcimento devido pelo bem expropriado) e em que, por outro, o mesmo prejuízo se colocasse acima de tal patamar (caso em que, mercê da limitação efectuada pelo artigo 83º, nº 2, do Código das Expropriações, não era possível ao juiz decidir pela dita atribuição). [ Note-se que no Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, já não existe norma de teor semelhante à em apreço - cfr. seu artigo 64º, nº 1].'
Nestes casos, estando em causa, pois, uma realidade em termos substantivos idêntica, expresssa na determinação do quantum indemnizatório, haveria um tratamento diferenciado de ambas as situações sem que quaisquer razões ligadas ao interesse público coenvolvido na expropriação pudesse eventualmente justificar a introdução de correcções ao princípio da reparação integral dos prejuízos advindos da expropriação, pelo que a norma em crise se mostra atentatória da garantia de 'justa indemnização' constante do artigo 62º, nº 2, da Constituição, conjugada com o artigo 13º, nº 1 da Constituição.
III
Termos estes em que se decide julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62º, nº 2 , da Constituição, a norma do artigo
83º, nº 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de
11 de Dezembro, na parte em que impede o juiz de fixar a indemnização em valor superior ao do laudo maior entre os três peritos designados pelo tribunal e o
árbitro indicado pelo presidente do Tribunal da Relação, acrescido de metade, e consequentemente negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Lisboa, 2 de Março de 1994
António Vitorino Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Dinis Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida