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Proc. nº 238/89
1ª Secção
Rel.: Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional :
I
1. A empresa A., viu ser considerada improcedente por sentença do juiz do
7º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa a impugnação que havia deduzido da liquidação da contribuição industrial, referente ao exercício de
1977, que, no montante de 19.009.423$00, lhe foi efectuada pela Repartição de Finanças do 10º Bairro Fiscal de Lisboa.
A empresa em causa havia, com efeito, apresentado oportunamente, no ano de
1978, a declaração modelo 2 referente ao exercício do ano de 1977, devidamente instruída com os elementos exigidos pelo artº 46º do Código da Contribuição Industrial (referentes aos contribuintes do grupo A). A Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, em Janeiro de 1982, efectuou exame à escrita da empresa em causa e, em resultado da investigação levada a cabo, fixou como lucro tributável para o aludido ano o montante de 75.188.435$00, tendo notificado a empresa para reclamar, querendo-o, nos termos do artigo 70º do Código da Contribuição Industrial ou, em caso contrário, para proceder ao pagamento da importância de 19.009.423$00 relativa a contribuição industrial grupo B e juros compensatórios, não tendo a empresa apresentado qualquer reclamação referente a tal fixação, pelo que procedeu ao pagamento da primeira prestação da quantia devida.
Contudo, segundo alegações da referida empresa, porque não fora notificada quanto aos fundamentos de facto e de direito em que se baseara a decisão de a tributar pelas regras do grupo B, procurou a mesma informar-se desses fundamentos junto da competente Repartição de Finanças, tendo apurado que as correcções introduzidas ao lucro tributável declarado resultavam do desrespeito pela contribuinte do disposto no artº 38º do Código da Contribuição Industrial, sendo, por isso, decidido que, nos termos do § 2º do artigo 114º do mesmo Código, a sociedade fosse tributada pelas disposições aplicáveis aos contribuintes do grupo B.
Perante o quadro assim traçado, a A. deduziu recurso contencioso de anulação daquela decisão da administração fiscal para o Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos de Lisboa.
2. Fundamentando o seu recurso, a A. invocou que ' a determinação da matéria colectável da impugnante - contribuinte do grupo A - foi notificada por forma deficiente já que não se deu conhecimento dos fundamentos da supressão do direito de ser tributada pelas regras do grupo A, encontrando-se, por isso, o acto tributário inquinado, nesta parte, de um vício de forma ou ilegalidade manifesta. Também há ilegalidade porque a Administração Fiscal não fundamentou ou provou , como poder vinculado a que se encontra adstrita, a verificação dos requisitos para a tributação segundo as regras do grupo B.'
Considerou ainda a referida empresa que ' o acto tributário enferma ainda de outros vícios ou ilegalidades porquanto do relatório atrás referido resultam duas conclusões : insuficiência para a proposta de transposição do regime do grupo A para o regime do grupo B e falta de cumprimento do artº 138º do C.C.I.'.
3. Alegando naquele Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos de Lisboa, o representante do Ministério Público apresentou o seguinte quadro de conclusões para defesa da tese da improcedência da aludida impugnação :
' Em face de todas estas circunstâncias se verifica que a impugnante não organizou a sua escrita de acordo com o preceituado no artº 51º do Código, facto que justifica a tributação pelas regras do grupo B ( § 2º do artigo 114º);
Os resultados apurados pela impugnante na sua escrita não correspondem à realidade, para efeitos fiscais e neste caso não haverá qualquer notificação nos termos do artº 138º, como a mesma impugnante pretende (veja-se Ac. do STA de
23/11/77, in pág. 77 dos Acord. Doutrinais, nº 193 );
A impugnante foi notificada para efeitos do artº 70º do Código onde poderia fazer valer os seus direitos e argumentos;
Não há ofensa dos direitos dos contribuintes do grupo A, que sejam tributados pelo grupo B ; além disso a impugnante podia interpor recurso hierárquico dessa decisão para o Ministro das Finanças e do seu resultado para a
1ª Secção do STA ;
O Tribunal é incompetente em razão da matéria para se debruçar sobre a verificação dos pressupostos do § 2º do artº 114º do C.C.I. (Acord. da 2ª Secção do STA de 8/3/78 in Acórdãos Doutrinais nº 202, pág. 1211 )'.
4. Apreciando o recurso, o juiz do 7º Juízo do Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos de Lisboa corroborou o entendimento do Ministério Público concluindo que está vedado aos Tribunais das Contribuições e Impostos apreciar ' os motivos que levaram a Administração a determinar a matéria colectável de um contribuinte do grupo A pelo sistema do grupo B ', já que a impugnante deveria ter usado das faculdades de reclamação, prevista no artº 70º do C.C.I., do subsequente recurso hierárquico e da impugnação judicial para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, conforme jurisprudência firmada deste Supremo Tribunal.
Referindo a este propósito o Acórdão de 27 de Junho de 1979 do S.T.A., aquele juiz do 7º Juízo sublinhou que ' a verificação dos pressupostos inscritos no § 2º do artigo 114º não é contenciosamente impugnável ', consideração essa que ' é inteiramente aplicável relativamente à questão de aceitação do critério substantivo do técnico que procedeu ao exame à escrita da impugnante, cuja apreciação implicaria intromissão quanto ao modo como foi apurada a matéria colectável ', intromissão essa que , 'dada a tecnicidade do sector, está expressamente vedada pelo artº 78º do Cód. da Contribuição Industrial, nos termos do que são insusceptíveis de impugnação judicial a deliberação quer do Chefe da Repartição de Finanças, quer da comissão distrital, na fixação dos rendimentos para efeitos de tributação em Contribuição Industrial, salvo se tiver havido preterição de formalidades legais, que não se verificam '.
Considerando-se competente para tomar conhecimento dos restantes fundamentos deduzidos pela impugnante, o juiz do 7º Juízo viria, contudo, a julgar improcedente a impugnação em causa, por não provada.
5. Inconformada com tal decisão, a A. recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, tendo suscitado nas alegações então proferidas a questão da inconstitucionalidade do § 2º do artº 114º do C.C.I., ao referir que ' a considerar-se como o exercício de um poder discricionário uma decisão com reflexos de tão grande gravidade para os contribuintes, como é a da aplicação das regras do Grupo B, estaria a desrespeitar-se o princípio da legalidade em matéria fiscal e ainda o princípio da igualdade tributária consagrados nos artºs 2º, 13º e 106º da Constituição da República Portuguesa' e ao aditar que ' ao considerar-se incompetente precisamente para conhecer a impugnação da decisão de aplicar as regras do grupo B, nos termos do artº 114º,
§ 2º, do Cód. Cont. Ind., o tribunal 'a quo ' tenha violado simultaneamente o referido normativo [artº 62º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril ] e ainda o artº 268º, nº 3 da C.R.P. '.
6. Apreciando este recurso, a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo concluiu que ' não compete aos tribunais tributários apreciar a concreta verificação de tais pressupostos que o então § 2º e hoje § único do artº 114º do Cód. da Cont. Ind. estabelece ou da sua suficiência '. Fundamentando tal decisão, pode ler-se neste aresto :
' É que o reconhecimento dessa impossibilidade de controlar a matéria colectável já determinada de harmonia com as disposições dos artºs 22 a 49 ou a existência de dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade ' são actos que o § 2º ( de então ) do artº 114º inequivocamente deixa
à apreciação subjectiva da própria Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, no sentido de que só a esta compete ajuizar das circunstâncias reveladoras daquela impossibilidade, e concluir pela existência destas - e de que só ela é também legítima detentora das dúvidas sobre se os resultados, em face do exame à escrita, correspondem ou não à realidade ', conforme se afirma no Acórdão deste Tribunal de 31/5/78, in Rev. Leg. e Jurisp., ano 111, pág. 356, onde são referidas as opiniões concordantes dos Doutores Cardoso da Costa, em Curso de Direito Fiscal, pág. 60, e Teixeira Ribeiro, em Contra Reforma Fiscal, pág. 19 e seguintes '.
E noutro passo sublinha-se no citado Acórdão que ' é, por isso, impossível aos tribunais censurar no que concerne à eficácia real, efectiva, à suficiência,
à operância, à idoneidade desses pressupostos, para ser tomada uma decisão, pois tal depende de juízos de mérito que só a Administração Fiscal pode formular no
âmbito de uma verdadeira discricionariedade técnica. E nesta o poder da Administração exerce-se no domínio da vinculação. E se se aceita a insindicabilidade desse poder é apenas porque, salvo o caso de erro grave e evidente, não haverá razões seguras para considerar melhor ou mais correcto o juízo do tribunal em face de situações de facto e dos conceitos legais ou técnicos aplicáveis do que o entendimento a que a Administração chegar.'
Perante este quadro de análise, o S.T.A. concluiu que 'a insindicabilidade de certos actos tributários não contradiz o disposto no nº 3 do artº 268º da actual Constituição, assim como não contradizia já o disposto no artº 8º, nº 21, da Constituição de 1933, pois que entende-se que se trata de um domínio altamente técnico, a perícia a que o tribunal teria de recorrer para fiscalizar os actos da espécie em causa não asseguraria um melhor e mais correcto entendimento do que o alcançado pela Administração, não havendo motivos para sobrepôr o critério do tribunal ao critério desta'.
Corroborando este entendimento, o citado aresto recorda que a Lei nº 9/86, de 30 de Abril, no seu artº 20º, nº 2, continha uma autorização ao Governo para aditar ao artº 54º do Cód. da Cont. Ind. dois parágrafos com as seguintes redacções :
' § 4º - Exceptuando o caso da falta de escrita, confirmada pelos serviços de fiscalização, a mudança de tributação do grupo A para o grupo B só pode ter lugar mediante despacho nesse sentido proferido pelo Secretário de Estado para os Assuntos Fiscais sob proposta fundamentada pelo Director-Geral das Contribuições e Impostos ;
§ 5º - O despacho referido no parágrafo anterior só tem efeito no domínio da determinação da matéria colectável e é judicialmente impugnável. '
Mas tal referência mostrava-se irrelevante para a solução do caso em apreço, porquanto, como referia o acórdão, ' o diploma legal que vier a consagrar esta solução tem natureza inovatória e, como tal, insusceptível de aplicação retroactiva'.
Apreciando ainda a parte da sentença recorrida em que se decidiu pela incompetência do tribunal para apreciar ' a deliberação quer do chefe da repartição de finanças quer da comissão distrital, na fixação dos rendimentos para efeitos de tributação em contribuição industrial, salvo se tiver havido preterição de formalidades legais, o que se não verifica ', o S.T.A., no acórdão a que temos vindo a aludir, decidiu corroborar a tese acolhida pelo tribunal ' a quo ', ao considerar que os contribuintes tributados pelo grupo B ficam sujeitos ao lucro presumido pelo chefe da repartição de finanças, e que, ' uma vez fixada a matéria colectável nos referidos termos, consoante ordena o § 2º do artigo
114º, será o contribuinte notificado dessa fixação ( e tão só dessa fixação ) para efeitos de reclamação, dentro do prazo de 15 dias, para o chefe da repartição de finanças, nos termos do artº 70º. Ora não manda a lei que de tal notificação conste qualquer outro elemento.'
Fundamentando esta asserção, pode ler-se neste acórdão:
' Vê-se que a lei não impõe que na notificação se houvesse de satisfazer as pretensões do contribuinte, de ser informado, de forma autêntica, dos fundamentos de facto e de direito da decisão de aplicação das regras do grupo B, assim como de lhe ser dado conhecimento dos dados em que se baseou a fixação da nova matéria colectável e ainda de lhe ser comunicado, previamente, as decisões da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, nos termos e para os efeitos do artº 138º do Cód. da Cont. Industrial e proferidas no âmbito do disposto no artº
28º ( remunerações excessivas ) e 38º, § único ( valorimetria das existências ).
E isto pelas razões já acima aduzidas, pois que, quanto à falta daquelas indicadas informações, em passo algum da lei vigente ao tempo a que esta lide se reporta e referente ao processamento da determinação da contribuição industrial pelo sistema que foi usado, surge a obrigatoriedade desses pretendidos elementos na notificação efectuada.'
Ao que adiante acrescenta:
' Aquele artº 138º dispõe que as decisões da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos sobre aquela matéria e que envolvam divergência com o critério do contribuinte, ser-lhe-ão notificadas pelas formas previstas no nº 3 do artº 70º, com indicação dos respectivos fundamentos.
É, pois, necessário para que se observe o preceituado neste artigo que a Direcção-Geral das Contribuições e Impostos tenha tomado decisão sobre a referida matéria e que ela envolva divergência com o critério do contribuinte.
Ora, face ao que dos autos consta, mormente em matéria de facto, não se encontra provado que aquela Direcção-Geral tenha tomado ou tenha proferido qualquer decisão quanto às referidas matérias, revelando uma concreta divergência em relação ao contribuinte.
Bem, pois, decidiu a sentença recorrida em decidir pela incompetência do tribunal para dela conhecer, não infringindo com isso qualquer preceito da lei.'
Após apreciar outras questões suscitadas pela recorrente que não relevam para o presente processo, o S.T.A. decidiu negar provimento ao recurso na parte a que temos vindo a aludir.
7. Deste aresto, a A. interpôs recurso para o Pleno da Secção, invocando no respectivo requerimento de interposição que ' o recurso restringe-se às decisões que no Acórdão recorrido são desfavoráveis à recorrente, as quais, em seu entender, violam o disposto nos :
A) Artº 1º do Decreto-Lei nº 256-A/77, de 17 de Junho ; § 1º do artº 54º e
§ 2º do artigo 114º, ambos do Código da Contribuição Industrial e artºs 106º, nº
3 e 268º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa ;
B) Artº 62º, nº 1, a) do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril ; artº 5º do Cód. de Processo das Contribuições e Impostos e artºs 2º, 13º e 268º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa ;
C) Artº 668º do Cód. de Processo Civil.'
Alegando neste recurso, a A. apresentou o seguinte quadro de conclusões :
' A) Tendo sido invocada, como o foi, pela recorrente, a ilegalidade formal e substancial do processo que conduziu à liquidação adicional da contribuição industrial referente ao ano de 1977 que lhe foi notificada em 15 de Julho de
1982, o tribunal do contencioso tributário deveria ter-se considerado competente para conhecer de tais vícios, no respectivo processo de impugnação ;
B) Tendo-se declarado incompetentes, em razão da insindicabilidade do processo de liquidação, o Tribunal de 1ª Instância e depois a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo infringiram o disposto nos artºs 62º, nº 1, a) do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, bem como os artºs 268º, nº 3 e 106º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa ;
C) Uma vez, porém, que um dos vícios apontados pela recorrente foi o da falta de fundamentação do acto de liquidação adicional referido, os tribunais ao declararem-se incompetentes infringiram, também, o artº 1º do Decreto-Lei nº
256-A/77, de 17 de Junho e novamente o artº 106º, nº 3 da CRP, bem como os artºs
78º do Código da Contribuição Industrial e 5º do Código de Processo das Contribuições e Impostos '.
Apreciando o recurso, o Pleno da Secção forneceu o seguinte quadro de análise, que se transcreve no que presentemente releva:
' Na verdade, a mudança de sistema de tributação, como resultado derivado do § 2º do artigo 114º do CCInd. ( na redacção da época ) e imposta aos contribuintes do grupo A, é consequência de, após exame à escrita, se concluir por uma de duas situações : impossibilidade de controlar a matéria colectável já determinada de harmonia com o disposto nos artºs 22º a 49º ou dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade.
E o que o acórdão recorrido decidiu, nesta matéria, foi que os tribunais tributários apenas estão em condições - o mesmo é que habilitados - a decidir se ocorreu ou não qualquer daqueles dois pressupostos legais de mudança de sistema de tributação. Daí em diante, ou seja, apurar o 'quantum ' do tributo, escapa aos seus poderes de cognição, por revestir natureza técnica específica - que lhes escasseia. Salvo se, nesta parte ocorrer erro grave ou manifesto, - o que, no presente caso, nem sequer foi alegado.
Não se trata, portanto e em realidade, de falta de competência, já que esta lhes assiste precisamente para concluírem pela estremação dos dois campos de conhecimento ou habilitação. São eles próprios - porque competentes - que declaram o âmbito da sua actividade cogniscitiva e decisória.
Não foi, pois, violada a al. a) do nº 1 do artº 62º do ETAF.
Como também não foram violados os arts. 106º, nº 3 e 268º, nº 3 da CR, já que não foi impedido recurso da decisão administrativo-fiscal que ordenou a mudança de sistema de tributação. Tanto que foi, em recurso, que se declarou a existência dos pressupostos exigidos pelo § 2º do artº. 114º do CCInd. ( na redacção da época ) para tal mudança. Posto que decidindo a limitação de conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que toca à invocada ' falta de fundamentação do acto de liquidação adicional ', o mesmo § 2º apenas mandava (como ainda hoje ordena o § único - que o substituiu ) notificar a fixação 'tout court'. E isto - como acrescenta - para 'efeito de reclamação ', no prazo e termos que adianta.
Tão reduzida expressão legal mostra que o legislador não exigiu, ao contrário do que faz para outras notificações ( v. g. art. 138º do mesmo Código), que daquela constassem os fundamentos do acto notificado. Daí que não possa falar-se em irregularidade na sua prática ( neste sentido o ac. de
16.Novº.88, no rec. nº 5664 ).
Quando muito tal falta só poderá afectar a eficácia de tal acto, inclusive para efeitos de recurso ( mesmo acórdão). Mas, aqui, ficará ao contribuinte o uso da faculdade concedida pela al. b) do art. 14º do CPCI ( ac. de 6.Outº.88, no rec. nº 5245 ).
Tudo isto sem deixar de assinalar que, ao fim e ao cabo, se trataria de vício da própria notificação, e não do acto tributário que esta se propôs dar a conhecer ( 'notum facere'). '
Termos estes em que o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do S.T.A. decidiu negar provimento ao recurso.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
8. No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, a A. entende que ' a decisão recorrida faz uma aplicação da norma correspondente ao § 2º do artigo 114º do C.C.Ind. ( então em vigor ) que viola não apenas o disposto nos artºs 106º, nº 3 e 268º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.'
Nas alegações que produziu neste Tribunal, a recorrente sublinha que:
' A 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo se considera incompetente para apreciar a decisão da Administração Fiscal tomada ao abrigo do então § 2º do artigo 114º do C.C.I. de a sujeitar ao sistema de determinação da matéria colectável aplicável aos contribuintes do Grupo B. Entende o Pleno da mesma Secção que não é assim e que no Acórdão então recorrido o Tribunal apenas se teria considerado incompetente para apurar o 'quantum' do tributo, tendo-se considerado, porém, em condições de decidir se ocorreu ou não qualquer dos pressupostos de que a lei faz depender a mudança do sistema de determinação da matéria colectável ( § 2º do artigo 114º do C.C.I.).
Mas não é manifestamente isso o que se afirma no Acórdão então recorrido. O que aí claramente se afirma é antes que 'não compete aos tribunais tributários apreciar a concreta verificação de tais pressupostos ou da sua suficiência '.
Apoiada nesta linha argumentativa, a recorrente sustenta que a passagem ao sistema do Grupo B para determinação da matéria colectável havia sido determinada sem que tivesse ocorrido qualquer dos pressupostos enunciados no § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, e que quer o tribunal de 1ª instância, quer o S.T.A. se consideraram incompetentes para apreciar a verificação de tais pressupostos, matéria que consideraram da exclusiva competência da Administração Fiscal.
E a este propósito conclui:
'A não apreciação pelos tribunais da concreta verificação dos pressupostos de que o então § 2º do artigo 114º do C.C.I. fazia depender a determinação da matéria colectável dos contribuintes do grupo A pelo sistema do grupo B corresponde a negar a apreciação contenciosa da respectiva decisão tomada pela Administração Fiscal' e que 'considerar-se que tal atitude corresponde ao correcto entendimento do citado normativo, nas suas remissões para os artºs 70º e 78º do mesmo Código da C.I., corresponde à persistência na aplicação de normativos inconstitucionais porque contrários ao disposto nos artºs 268º, nº 3 e 106º, nº 3 da C.R.P.'.
Aludindo ao segundo fundamento ( a questão da falta de fundamentação do acto ), a recorrente alega que ' no Acórdão recorrido sustenta-se que o já citado § 2º do artigo 114º do C.C.I., ao mandar notificar apenas ( tout court ) a fixação da 'nova' matéria colectável, mostra claramente a intenção do legislador de que da notificação não constassem os fundamentos de tal fixação ', o que, no seu entendimento, significa que ' não chega mesmo a apreciar a questão da conformidade do citado normativo com o nº 2 do artº 268º da CRP, em que se exige a fundamentação expressa de todos os actos administrativos de eficácia externa, como é o caso.' Por isso, conclui que ' considerar-se como correcto o disposto no mesmo § 2º do artigo 114º do C.C.I. que mandava notificar o contribuinte da fixação da nova matéria colectável, sem exigir a fundamentação da respectiva decisão, corresponde à aplicação de um normativo inconstitucional porque contrário ao disposto no artº 268º, nº 2 da CRP e no artº 1º, do Decreto-Lei nº 256-A/77.'
9. Contra-alegando, a Fazenda Nacional entende, por seu turno, que o tribunal recorrido não se considerou incompetente para apreciar a existência dos pressupostos fixados no então § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, o que faz com os seguintes fundamentos :
' [A] recorrente pretendia que o Tribunal conhecesse da legalidade de decisão da Administração Fiscal (...) e que se pronunciasse sobre a correcção efectuada pela Administração.
Quanto à legalidade da decisão (...) o tribunal efectuou o controlo da existência dos pressupostos e considerou que pelos elementos disponíveis, ressaltavam do exame à escrita dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado correspondia ou não à realidade (...). Na verdade, ficou provado que os produtos em vias de fabrico ou fabricados, em 31 de Dezembro, se encontravam subavaliados por incorporarem apenas o valor das matérias primas e alguns gastos gerais de fabrico excluindo mão de obra e a maior parte dos gastos gerais de fabrico, sendo tal prática susceptível de reduzir o cálculo dos lucros reais.
(...) Recusou-se, contudo, o tribunal a levar o seu controlo tão longe que se devesse pronunciar substantivamente sobre o 'quantum' da suficiência : ou seja, dizer em que medida os critérios utilizados pela empresa se distanciam dos utilizados pela Administração Fiscal, o que significaria também censurar o novo valor da matéria colectável determinado de acordo com as regras do grupo B.
Mas tal limitação ao controlo judicial não violava o direito ao recurso contencioso previsto no nº 3 do artº 268º da CRP ( ou, na redacção anterior à Lei Constitucional nº 1/82, no nº 2 do artº 268º ).
O que acontece é que a lei fiscal, ao utilizar certos conceitos indeterminados ou ao remeter para a Administração Fiscal a fixação ou valoração de factos que constituem o objecto do processo tributário gracioso, atribui a essa mesma Administração uma liberdade de apreciação e fixação dos factos ( discricionariedade técnica, segundo alguns ) que leva a uma certa limitação por parte dos tribunais quanto ao controlo a exercer sobre actos que representem a concretização de elementos do tipo legal. Trata-se de uma irrevisibilidade limitada e justificada por razões processuais, a inconveniência de substituir a um juízo - decerto problemático, da Administração - um outro juízo - não menos problemático - do tribunal ( confr. Alberto Xavier, 'Conceito e natureza do Acto Tributário ', pp. 364 e ss.).
Assim o tribunal não tinha que - não podia - pronunciar-se sobre a correcção dos critérios utilizados, em alternativa, pela Administração Fiscal, a não ser que os mesmos sofressem de erro grave ou manifesto.
Quanto à nova fixação da matéria colectável a recorrente deveria ter, a não estar satisfeita com o seu resultado, reclamado, nos termos do artº 70º
(cuja inconstitucionalidade a recorrente invoca, embora sem explicar com que fundamento ).
É que, tendo a matéria colectável sido fixada, agora de acordo com as regras do grupo B, teria que ser seguido o processo previsto no Código para reacção contra a respectiva decisão.
E nem foi, no Acórdão recorrido, encarada a questão da impugnabilidade final dessa decisão, após o processo administrativo gracioso, nos termos do artº
78º do CCI, pelo que não tem cabimento a apreciação da constitucionalidade de tal disposição, também pretendida pela recorrente.'
Razões que levaram a representante da Fazenda Nacional a concluir que o artº 114º do Código da Contribuição Industrial não enferma de qualquer inconstitucionalidade porquanto:
' - não limita a apreciação pelos tribunais da verificação dos pressupostos de que faz depender a determinação da matéria colectável dos contribuintes do grupo A pelo sistema do grupo B;
(...)
- no caso concreto, o contribuinte poderia ter reagido contra nova determinação da matéria colectável através dos procedimentos previstos no artº
70º do CCI;
- mas isso não vicia o processo - apenas se trata de utilizar o procedimento administrativo de fixação da matéria colectável segundo as regras aplicáveis ao grupo B;
- quanto à eventual impugnabilidade da decisão tomada no final de tal processo ( artº 78º do CCI, aflorada nas alegações da recorrente ) ela não esteve em causa no caso concreto que deu origem a este recurso, já que o contribuinte nem utilizou o processo do artº 70º do CCI, pelo que não é objecto do presente recurso a apreciação do referido artº 78º [ al. b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, de 15/11 ] '.
Abordando a questão da notificação da fundamentação do acto, a representante da Fazenda Nacional, sustenta que 'há aqui uma clara confusão entre 'exigência de fundamentação' e 'exigência de notificação da fundamentação'. Corroborando a tese do Acórdão da Secção do S.T.A., afirma que
' apesar da consagração constitucional do dever da fundamentação dos actos e mesmo do dever da respectiva notificação, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos decorre que, embora deva constar da notificação dos actos administrativos, para efeitos de recurso, a respectiva fundamentação ( artº 30º LP ), a falta da mesma apenas leva a que o interessado possa requerer o aperfeiçoamento do acto (artº 31 - 1 ), com suspensão do prazo para interpor recurso ( nº 2 do artº 31º). Aliás, a própria CRP, em relação a actos normativos e outros actos de órgãos de soberania, prevê que a falta da respectiva publicação apenas implica a sua ineficácia ( artº 122º, nº 2 da CRP)'.
Razões estas pelas quais conclui que :
' - o direito ao recurso do contribuinte não fica (não ficou !) afectado : o mesmo pode exigir a comunicação dos fundamentos ( artº 14º do CPCI
) ; aliás conhecia-os perfeitamente ;
- nem a LPTA considera inválidos os actos administrativos cuja fundamentação não foi notificada ( artº 31º LP) , e a CRP considera os actos de
órgãos de soberania não publicitados, apenas ineficazes '.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre decidir. II
1. Uma primeira e relevante questão que se coloca diz respeito ao objecto do recurso em apreço.
Do requerimento de interposição deste recurso resulta que o mesmo visa apreciar a aplicação feita na decisão recorrida da norma constante do § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, e nas suas alegações a recorrente indica que o Acórdão recorrido ( o Acórdão do Pleno da 2ª Secção do S.T.A. ) 'persiste na aplicação de normas do C.C.I. e do C.P.C.I. cuja inconstitucionalidade foi repetidamente invocada pela recorrente '.
Conforme resulta do disposto na alínea b), do nº 1, do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Tem o Tribunal Constitucional entendido de maneira uniforme que este pressuposto só se encontrará cabalmente preenchido desde que o tribunal 'a quo' tenha tido oportunidade de apreciar a questão de constitucionalidade objecto do recurso, o mesmo é dizer que a parte a tenha suscitado antes de esgotado o poder jurisdicional daquele tribunal.
Ora, conforme resulta dos autos, a A. suscitou a questão da inconstitucionalidade do § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial pela primeira vez nas alegações que produziu no recurso interposto para a 2ª Secção do S.T.A., deduzido da sentença do juiz do 7º Juízo do Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos de Lisboa, tendo retomado a mesma questão nas alegações que proferiu no recurso que posteriormente interpôs para o Pleno da Secção. Foi, aliás, sobre a conformidade constitucional do aludido preceito - e só dele - que se debruçaram os arestos que decidiram aqueles dois recursos.
Neste contexto, evidente se torna que apenas em relação à norma do §
2º do artigo 114º do C.C.I. se encontra preenchido o aludido requisito de admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade, pelo que apenas a ela teremos que atender de ora em seguida.
2. Cumpre, contudo, e desde já, encarar uma outra faceta preliminar do presente recurso, atinente ainda à delimitação do seu objecto. Como é sabido, porque esse tem sido o entendimento pacífico e uniforme deste Tribunal, objecto do controlo de constitucionalidade são apenas as normas jurídicas e já não outras decisões ou actos que não revistam a especial natureza normativa que a Constituição e a Lei nº 28/82 identificam como pressuposto de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade.
Ora, se é verdade que a recorrente, quer no requerimento de interposição do recurso , quer nas alegações produzidas neste Tribunal, identifica como pretensão sua a apreciação da conformidade constitucional da
'aplicação da norma correspondente ao § 2º do artigo 114º do C.C.I.', não é menos nítido que até ao momento de se dirigir ao Tribunal Constitucional a invocada violação da Constituição parece reportar-se não tanto à norma em si, ou
à interpretação aplicativa que dela foi feita quer pelo juíz do 7º Juízo quer pela 2ª Secção do S.T.A. quer pelo Pleno desta mesma Secção, mas aparentemente a vícios imputáveis às próprias decisões judiciais impugnadas.
Com efeito, nas alegações que produziu no recurso para a 2ª Secção do S.T.A., a recorrente afirma expressamente que 'ao considerar-se incompetente precisamente para conhecer a impugnação da decisão de aplicar as regras do grupo B, nos termos do artº 114º, § 2º do Cód. Cont. Ind., o tribunal 'a quo' tenha violado simultaneamente o referido normativo [ a alínea a) do nº 1 do artº 62º do Decreto-Lei nº 129/84 ] e ainda o artº 268º, nº 3 da C.R.P.'.
De igual forma, no requerimento de interposição do recurso para o Pleno da Secção, a recorrente de novo afirma que 'o recurso restringe-se às decisões que no Acórdão recorrido são desfavoráveis à recorrente ', as quais, no seu entendimento, violavam, em plano de identidade, diversas disposições legais
[ artº 1º do Decreto-Lei nº 256-A/77, de 17 de Junho, § 1º do artº 54º e § 2º do artigo 114º, ambos do Código da Contribuição Industrial, artº 62º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, artº 5º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, artº 668º, nº 1 do Código de Processo Civil) e certos normativos constitucionais (artºs 106º, nº 3, 268º, nº 2, 2º, 13º e 268º, nº 3 da Constituição), o que retoma nas alegações produzidas no mesmo recurso, onde entende que o Tribunal de 1ª Instância e a Secção do Contencioso Tributário, ao terem-se declarado incompetentes 'infringiram o disposto nos artºs 62º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, bem como os artºs 268º, nº 3 e 106º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa', tendo infringido também
'o artº 1º do Decreto-Lei nº 256-A/77, de 17 de Junho e novamente o artº 106º, nº 3 da CRP, bem como os artºs 78º do Código da Contribuição Industrial e 5º do Código de Processo das Contribuições e Impostos'.
Neste contexto, forçoso é reconhecer que ao estarmos perante um caso que incide sobre a delimitação dos poderes de cognição dos tribunais administrativos, daí decorre que a destrinça entre vícios imputáveis a normas jurídicas e vícios reportáveis às próprias decisões que, com base em tais normas, determinam a competência e o âmbito de poderes de cognição das instâncias jurisdicionais, não se compadece, pelo menos à partida e num juízo liminar, com distinções especiosas ou excessivamente formalistas, uma vez que neste tipo de situações sempre haverá zonas de sobreposição e de penumbra entre o que constitui estatuição normativa fornecida ao intérprete (e portanto susceptível de apreciação nesta sede de controlo de constitucionalidade), e que comporta uma determinada dinâmica interpretativa- aplicativa, em si mesma também fiscalizável, e o que já representa valoração própria do órgão julgador exclusivamente imputável à latitude da própria conformação interna da decisão judicial, e que, inexistindo uma acção constitucional de defesa, entre nós se encontra excluída de um específico controlo de constitucionalidade.
Esta questão, aliás, foi objecto de uma reflexão por parte de GOMES CANOTILHO ( ' Constituição e Défice Procedimental' in 'Estado e Direito', nº 2,
2º semestre de 1988 ), onde defende a tese de que se justificaria a instituição no nosso ordenamento constitucional de uma 'acção constitucional de defesa contra violação autónoma, pelos tribunais, de direitos fundamentais', aproximando o seu enquadramento dogmático da Verfassungsbeschwerde alemã.
3. Importa, pois, reconhecer que a recorrente suscitou no decurso do processo e agora coloca à apreciação do Tribunal Constitucional três distintas questões de constitucionalidade, balizadas por três preceitos constitucionais:
- por um lado, a recorrente questionou a conformidade do § 2º do artigo
114º do Código da Contribuição Industrial, na parte em que confere à Administração fiscal o poder de apreciar certos pressupostos legalmente estatuídos e consequentemente determinar que a tributação de um contribuinte do grupo A da Contribuição Industrial se processe segundo as regras do grupo B do mesmo imposto, face ao princípio da legalidade tributária, constante do nº 3 do artigo 106º da Constituição;
- por outro, a recorrente entendeu que o mesmo preceito, na projecção de que se reveste quanto ao âmbito dos poderes de cognição dos tribunais em termos de verificação dos aludidos pressupostos e das condições de mudança do sistema de tributação, face à garantia do recurso contencioso constante do artigo 268º, nº 3, da Constituição ( na redacção decorrente da revisão constitucional de
1982, actualmente nº 4 do mesmo preceito constitucional) ;
- e por outro ainda, a recorrente questionou a conformidade do aludido parágrafo face ao artigo 268º, nº 2, da Constituição (também na redacção decorrente da revisão de 1982, actualmente nº 3 do mesmo artigo), quanto à forma de notificação e de fundamentação dos aludidos actos praticados pela Administração.
São estas, pois, as questões de constitucionalidade que passaremos de seguida a apreciar.
4. O Código da Contribuição Industrial foi aprovado pelo Decreto-Lei nº
45.103, de 1 de Julho de 1963, e foi objecto de diversas alterações ao longo do seu período de vigência. O § 2º ora impugnado foi aditado pelo Decreto-Lei nº
48.316, de 5 de Abril de 1968, sendo do seguinte teor:
'Sempre que em face do exame à escrita se verifique a impossibilidade de controlar a matéria colectável já determinada de harmonia com as disposições dos artigos 22º a 49º ou desse exame ressaltem dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade será a matéria colectável determinada de novo de harmonia com as disposições aplicáveis aos contribuintes do grupo B, com as necessárias adaptações e com notificações das fixações aos contribuintes para efeito de reclamação dentro do prazo de quinze dias, nos termos do artigo 70º, sendo de observar o disposto no § 3º do artigo 54º'.
Este § 2º viria a passar a § único do mesmo artigo quando da alteração introduzida no Código da Contribuição Industrial operada pelo Decreto-Lei nº
474/85, de 11 de Novembro.
A introdução, em 1968, do aludido § 2º (acompanhando a alteração do próprio corpo do artigo), foi desde logo considerada como controversa por algumas opiniões doutrinárias.
Com efeito, J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, num estudo intitulado 'A Contra Reforma Fiscal', publicado no Boletim de Ciências Económicas , vol. XI, pág. 115 e ss., foi mesmo ao ponto de afirmar que tal alteração (conjugada com a do §
único do artigo 54º do mesmo Código) representou uma verdadeira 'contra-reforma legislativa', pois que determinou uma rotura com o modelo originário da contribuição industrial.
A este propósito escreveu o professor de Coimbra (pág. 125):
'Preceituava o § único do artigo 54º do Código que - no caso de o contribuinte não apresentar a sua declaração ou esta ser insuficiente - se procederia a exame à escrita, a fim de determinar a matéria colectável; e que - no caso de o exame não permitir determiná-la - se lançaria mão do sistema do grupo B, que é o da fixação do lucro por uma comissão. A contribuição industrial acabava, assim, por incidir sobre o lucro presumido.
Decerto que o contribuinte podia apresentar a declaração em termos, e acompanhada dos requeridos documentos, e, no entanto, haver divergência entre os valores nela indicados e os constantes da escrita; como podia a própria escrita encontrar-se falsificada ou viciada. Precisamente para averiguar dessas eventuais fraudes é que o artigo 114º prescreveu a obrigatoriedade do exame à escrita de cada contribuinte pelo menos uma vez em cada cinco anos. E parece fora de dúvida que, se a Administração cumprisse o disposto naquele artigo, não só se descobririam todas as fraudes importantes como se evitaria, pelo temor de serem descobertas, a prática de muitas outras. Parece fora de dúvida, numa palavra, que o sistema do grupo A funcionaria capazmente.
A verdade, porém, é que a Administração não cumpriu: vão decorridos os primeiros cinco anos e só pequena percentagem dos contribuintes tiveram entretanto a sua escrita examinada (é este, aliás, um dos flagrantes aspectos da contra-reforma administrativa). Em tais condições, não admira que o funcionamento do sistema do grupo A tenha conhecido largas deficiências: perante uma tributação dos lucros particularmente gravosa e uma fraca probabilidade de serem detectadas as fraudes, claro que se tornou tentador cometê-las.'
E mais adiante, concluía o mesmo autor (pág. 128 e 129):
' O que, porém, já contende, e em muito, com os princípios da contribuição industrial é (...) a tributação dos contribuintes do grupo A pelo lucro real presumido, não apenas no caso de ser impossível, em face da escrita, averiguar o seu lucro real efectivo, mas ainda no caso de surgirem fundadas dúvidas sobre se os resultados da escrita correspondem à realidade. Pois isso significa que a escrita das empresas, quando devidamente organizada - isto é, quando organizada em termos de revelar o saldo de ganhos e perdas -, deixa de ser necessariamente a base do apuramento do lucro tributável; agora, é à Administração que compete decidir, sem contestação possível do contribuinte, se o seu lucro há-de ser determinado perante a contabilidade, ou há-de ser presumido pela comissão de fixação de rendimentos.
Não há dúvida de que se deu, assim, forte machadada no sistema do grupo A.'
5. O sistema assim instituído em 1963 vigorou, embora com alterações, até ao termo da vigência da contribuição industrial enquanto imposto sobre os lucros das empresas, operado pela entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), aprovado pelo Decreto-Lei nº 422-B/88, de 30 de Novembro.
A aplicação do § 2º do aludido artigo 114º no processo ora em apreço pode, com efeito, analisar-se desde logo numa dupla vertente:
- por um lado, ao seu abrigo, a Administração Fiscal entendeu que, face ao exame à escrita, estavam verificados os pressupostos do aludido preceito legal que justificavam a passagem da tributação da A. do grupo A para o Grupo B da contribuição industrial quanto ao exercício do ano de 1977;
- por outro lado, procedeu à aplicação das regras atinentes ao grupo B para efeitos de cálculo do lucro presumido da A. e consequente aplicação da tributação devida em contribuição industrial referente ao aludido ano de 1977.
A decisão de aplicação do sistema do grupo B decorreu, conforme resulta dos autos, do exame à escrita da empresa levado a cabo pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos em Janeiro de 1982, na sequência do que a mesma entidade fixou o lucro tributável e notificou a empresa para reclamar, querendo-o, nos termos do artigo 70º do Código da Contribuição Industrial.
Este artigo 70º dispunha que 'dos valores a que se referem as alíneas a) e b) do artigo 66º poderão os contribuintes ou a Fazenda Nacional, reclamar para o chefe da repartição de finanças' [ redacção do Decreto-Lei nº 137/78, de 12 de Junho, ulteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 474/85, no sentido de a Fazenda Nacional ser representada pelo Ministério Público]. Previa-se assim um sistema de reclamação graciosa da decisão do chefe da repartição de finanças ao abrigo do disposto na alínea a) do citado artigo 66º, ao qual cabia calcular os proveitos e os custos de cada um dos contribuintes do grupo B do ano anterior, fixando o montante dos lucros tributáveis, quando devesse presumir que os tivessem obtido [ de acordo com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº
474/85 tal cálculo passou a incidir sobre 'o volume de negócios, o total dos proveitos e o total dos custos' dos mesmos contribuintes].
Nos termos do § 5º do artigo 70º [ introduzido pelo Decreto-Lei nº
137/78, de 12 de Junho], se o contribuinte não aceitasse a decisão do chefe da repartição de finanças que viesse a incidir sobre a sua reclamação, 'deverá comunicá-lo por escrito ao chefe da repartição de finanças, nos cinco dias imediatos ao da notificação, o qual, no prazo de cinco dias, a contar da recepção, enviará a reclamação, acompanhada do processo individual do contribuinte, à comissão referida na alínea b) do § 3º para decisão [ comissão distrital de revisão dos valores a que aludem as alíneas a) e b) do artigo 66º, com a composição e atribuições constantes do artigo 72º do Código da Contribuição Industrial]'.
Na sequência deste processo, o artigo 78º do Código da Contribuição Industrial dispunha que 'o lucro tributável fixado pelo chefe de repartição ou pela comissão distrital de revisão não é susceptível de reclamação nem de impugnação, nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos, salvo se tiver havido preterição das formalidades legais, caso em que os contribuintes poderão recorrer para o tribunal de 1ª instância das contribuições e impostos'
[redacção do Decreto-Lei nº 408-A/75, de 5 de Agosto, alterado posteriormente pelo Decreto-Lei nº 474/85, onde a expressão 'lucro tributável' foi substituída pela expressão 'valores calculados, determinados e fixados' e a referência ao
'tribunal de 1ª instância das contribuições e impostos' pela referência ao
'tribunal tributário de 1ª instância'].
Ora, no caso em apreço, a A. não apresentou qualquer reclamação quanto à fixação do lucro tributável segundo as regras do grupo B da contribuição industrial e inclusive procedeu ao pagamento da primeira prestação da quantia devida.
Sem embargo, segundo alega, porque não fora notificada das razões que levaram a Administração Fiscal a aplicar o § 2º do artigo 114º, procurou obter tal informação, tendo sido comunicado que as correcções introduzidas ao lucro tributável decorriam do desrespeito pelo contribuinte do disposto no artigo 38º do Código da Contribuição Industrial (atinente aos valores das existências de materiais, produtos ou mercadorias a considerar nos proveitos e custos, ou a ter em conta na determinação dos lucros ou perdas do exercício), em face do que deduziu recurso contencioso de anulação para o Tribunal de 1ª Instância das Contribuições e Impostos de Lisboa.
Neste recurso, a recorrente entendeu que houve deficiência na forma de notificação da decisão de ser tributada não pelo grupo A mas sim pelo grupo B, bem como se mostrava insuficiente a proposta de transposição de grupo e ainda que não fora dado cumprimento ao disposto no artigo 138º do Código da Contribuição Industrial, o qual determinava que 'as decisões da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos a que se referem os artigos 26º, 30º, § único, 31º,
35º, 37º, alínea a), 38º, § único, 40º, 41º e 51º-A, que envolvam divergência com o critério do contribuinte ser-lhe-ão notificadas, pela forma prevista no §
3º do artigo 70º, com a indicação dos respectivos fundamentos'[ na redacção do Decreto-Lei nº 503-B/76, de 30 de Junho, que viria a ser alterada pelo Decreto-Lei nº 40/85, de 11 de Fevereiro, que substituiu a referência ao § 3º pela do § 4º do artigo 70º, em virtude da alteração entretanto operada neste
último].
Apreciando o recurso, o Tribunal de 1ª Instância entendeu que lhe estava vedado apreciar 'os motivos que levaram a Administração a determinar a matéria colectável de um contribuinte do grupo A pelo sistema do grupo B' e que, para o efeito pretendido, a recorrente deveria ter usado a faculdade de reclamação prevista no artigo 70º do Código da Contribuição Industrial, do subsequente recurso hierárquico e da ulterior impugnação contenciosa para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo.
Entendeu o mesmo Tribunal que não cabia impugnação contenciosa dos pressupostos inscritos no § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, tal como não cabia apurar do critério substantivo do técnico que procedeu ao exame da escrita da impugnante, em virtude da limitação decorrente do artigo 78º do mesmo Código.
Este entendimento foi corroborado pelo Acórdão da 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (de 1987) que apreciou o recurso deduzido pela A. daquela decisão do Tribunal de 1ª Instância. Aí expressamente se afirma que o reconhecimento da impossibilidade de controlar a matéria colectável ou da existência de dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade é matéria deixada à apreciação subjectiva da própria Administração, pois 'tal depende de juízos de mérito que só a Administração Fiscal pode formular no âmbito de uma verdadeira discricionariedade técnica. E nesta o poder da Administração exerce-se no domínio da vinculação. E se se aceita a insindicabilidade desse poder é apenas porque, salvo o caso de erro grave e evidente, não haverá razões seguras para considerar melhor ou mais correcto o juízo do tribunal em face de situações de facto e dos conceitos legais ou técnicos aplicáveis do que o entendimento a que a Administração chegar'. Mais entendeu este Acórdão que tal 'insindicabilidade de certos actos tributários não contradiz o disposto no nº 3 do artº 268º da actual Constituição'.
Deste aresto a A. recorreu para o Pleno da Secção, em cujo Acórdão (de
1989) se pode ler:
'[O] acórdão recorrido [da 2ª Secção] decidiu (...) que os tribunais tributários apenas estão em condições (...) a decidir se ocorreu ou não qualquer daqueles dois pressupostos legais de mudança do sistema de tributação. Daí em diante, ou seja, apurar o 'quantum' do tributo, escapa aos seus poderes de cognição, por revestir natureza técnica específica - que lhes escasseia. Salvo se, nesta parte ocorrer erro grave ou manifesto, - o que, no presente caso, nem sequer foi alegado.
Não se trata, portanto e em realidade, de falta de competência, já que esta lhes assiste precisamente para concluírem pela estremação dos dois campos de conhecimento ou habilitação. São eles próprios - porque competentes - que declaram o âmbito da sua actividade cogniscitiva e decisória.
Não foi, pois, violada a alínea a) do nº 1 do artº 62º do ETAF.
Como também não foram violados os artºs 106º, nº 3 e 268º, nº 3, da CR, já que não foi impedido recurso da decisão administrativa-fiscal que ordenou a mudança de sistema de tributação. Tanto que foi, em recurso, que se declarou a existência dos pressupostos exigidos pelo § 2º do artº 114º do CCInd. (na redacção da época) para tal mudança. Posto que decidindo a limitação de conhecimento do objecto do recurso.'
6. Chegados a este ponto, importa clarificar as questões a decidir.
Desde logo resulta evidente que a recorrente discorda frontalmente da interpretação dada pelo Acórdão do Pleno à decisão da 2ª Secção quanto ao âmbito dos poderes de cognição dos tribunais nesta sede.
Com efeito, o Pleno entende que os tribunais estão em condições de decidir se ocorreu ou não a verificação de qualquer um dos dois pressupostos legais de aplicação do § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, os quais determinam a alteração do sistema de tributação. Isto é, de acordo com o acórdão recorrido, compete aos tribunais apreciar se, num dado caso, a decisão
(da Administração) de alterar o sistema de tributação resultou, em face do exame
à escrita do contribuinte, quer da impossibilidade, por parte da Administração Fiscal, de controlar a matéria colectável já determinada de harmonia com as disposições dos artigos 22º a 49º, quer da existência de fundadas dúvidas, da mesma Administração, quanto à efectiva correspondência entre o resultado apurado e a realidade.
E, nos termos do mesmo aresto, tanto é assim que, no caso em apreço, foi em sede de recurso contencioso que se declarou a existência dos pressupostos exigidos pelo § 2º do artº 114º do Código da Contribuição Industrial. Ou seja, o Acórdão do Pleno entendeu que a decisão recorrida procedeu à verificação da existência de um dos aludidos pressupostos de aplicação do referido § 2º e que apenas não tomou conhecimento da parte do recurso em que estava em causa a apreciação dos critérios técnicos de exame da escrita que constituiram fundamento da mudança do sistema de tributação, bem como da determinação do
'quantum' do imposto devido enquanto resultado da aplicação do sistema do grupo B, matérias estas excluídas do controlo jurisdicional em virtude da sua natureza eminentemente técnica.
A recorrente, por seu turno, entende que a decisão da 2ª Secção não tomou conhecimento do pedido em nenhuma das suas vertentes, isto é, nem quanto à verificação dos pressupostos e da correcção do exame à escrita nem quanto ao cálculo do imposto devido, daí resultando um vício de inconstitucionalidade da norma em função dos limites do poder de cognição do tribunal decorrentes da natureza dos poderes exercidos, o qual vício não se encontraria sanado por o Acórdão do Pleno dar por apreciada na decisão recorrida a primeira daquelas questões (a da verificação dos pressupostos).
Recordando de novo que nesta sede apenas cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade de normas jurídicas e não de decisões judiciais
(e muito menos da eventual divergência entre elas) importa, pois, apurar tão somente da constitucionalidade do preceito impugnado tal como interpretado e aplicado na decisão recorrida (a do Pleno da Secção).
7. A primeira questão de constitucionalidade colocada no presente recurso gira, pois, em torno de saber qual o grau de exigência constitucional quanto à densificação normativa face aos ditâmes do princípio da legalidade tributária
(artigo 106º, nº 3, da Constituição), o mesmo é dizer, quais os limites constitucionalmente consentidos ao preenchimento, pela Administração, dos conceitos jurídicos indeterminados constantes de uma norma fiscal e ao âmbito de poderes discricionários da mesma eventualmente pressupostos pelo § 2º do artigo
114º do Código da Contribuição Industrial. Questão esta que, atenta a sua íntima conexão com a projecção que assume na definição do âmbito de poderes de cognição dos tribunais administrativos e fiscais, aconselha, pois, que se aprecie paralelamente a segunda questão de constitucionalidade, a invocada violação da garantia do recurso contencioso constante do artigo 268º, nº 3, da Constituição.
8. O § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial é, quanto à sua natureza, uma norma jurídico-fiscal. Ora, como escreve CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal,(2ª edição actualizada, Coimbra, 1972, reimpressa e aditada de notas de actualização em 1977), pág. 57, 'não vemos (...) motivo para abandonar a conclusão, já antes avançada, de que as normas jurídico-fiscais se subsumem no âmbito mais geral das normas jurídico-administrativas: efectivamente, elas não disciplinam senão um especial sector de actividade da Administração - definindo os respectivos pressupostos e o conteúdo das relações jurídico-públicas dela decorrentes, e precisando os termos em que a mesma deve desenvolver-se - e fazem-no recorrendo aos dogmas fundamentais do direito administrativo.'
Esta identidade, segundo o autor, não invalida, que a actividade fiscal se processe segundo uma 'tonalidade própria dentro da actividade administrativa:
é-lhe a mesma conferida pelo seu carácter extremamente vinculado, em face da maior ou menor margem de poder discricionário de que gozam na generalidade dos outros sectores da Administração os respectivos órgãos ou agentes' (pág. 58).
Tal carácter 'extremamente vinculado', contudo, não impede que certos elementos típicos da actividade fiscal (v.g. a identificação da base do imposto, ou o cálculo da matéria colectável) comportem 'muitas vezes uma zona de mais ou menos livre apreciação por parte da Administração fiscal ou dos órgãos mistos
(i.é, compostos por agentes do Fisco e representantes dos contribuintes) a quem cabe tal tarefa. Mas - ao contrário do que já se tem entendido - trata-se apenas daqueles insuprimíveis momentos de liberdade - de apprezzamento subjectivo - por onde necessariamente passam, quer a interpretação das normas que a Administração tem de aplicar, quer a fixação (na sua identidade e medida) dos factos que vão ser o pressuposto da sua actuação' (pág. 59).
Segundo este autor, importa distinguir entre a 'liberdade discricionária', 'em que a lei devolve para o próprio critério do agente a escolha da medida mais conveniente e oportuna a tomar em cada caso em ordem à prossecução do interesse público em causa', e a 'liberdade científica', em que, pelo contrário, há uma 'simples liberdade de 'investigação ou crítica', no exercício da qual se não remete a Administração para o que esta considerar melhor em cada caso mas se pretende ainda que ela averigue o verdadeiro (e
único) sentido da lei e estabeleça a exacta (e única também) figuração dos factos', ou, na expressão de ALESSI (Istituzzioni di diritto tributario, com STAMMATI, Torino, s/d, pág. 103, também retomada por CARDOSO DA COSTA) ' não se trata de avaliar a base de facto segundo critérios de oportunidade e conveniência em relação com o interesse público de conseguir uma maior ou menor colecta; mas de determinar, com a maior aproximação possível, a sobredita situação na sua realidade'.
Neste contexto se insere a denominada discricionariedade técnica, reportável, pois, àqueles juízos subjectivos (apprezzamento subjectivo) dos agentes da Administração em sede de determinação da subsunção de uma dada realidade de facto ao âmbito de previsão de uma norma legal, isto é, os juízos técnicos destinados a apurar se um determinado facto ou uma determinada situação da vida se enquadram nas regras de incidência de um dado imposto ou qual o valor de determinados bens ou rendimentos sujeitos a tributação (CARDOSO DA COSTA, op. cit., pág. 61).
O autor que temos vindo a seguir alerta para o facto de a discricionariedade técnica constituir um 'conceito equívoco', quer pela plurisignificação que lhe tem sido atribuída pela doutrina [ em especial em Itália], quer pelo facto de 'a decisão discricionária verdadeira e própria se resolver[r] também afinal num juízo técnico: a autoridade que a profere desincumbe-se do dever de 'boa administração', a que está adstrita, escolhendo e adoptando para cada caso, não uma solução prefixada pelo legislador, mas também não uma qualquer solução, antes aquela que os seus conhecimentos e experiência - o seu saber técnico, em suma - lhe ditarem como a melhor' (pág. 61).
Sem embargo, CARDOSO DA COSTA sublinha que a discricionariedade em sentido verdadeiro e próprio, no Direito Fiscal, constitui um fenómeno marginal, surgindo sobretudo 'no que toca aos actos em que se concretiza o exercício dos poderes de vigilância e de controlo da Administração financeira - num campo, pois, acessório e instrumental relativamente ao exercício do poder tributário propriamente dito. Na verdade, a lei defere aí frequentemente à Administração o encargo de decidir ela própria - guiada pelo seu juízo de oportunidade e conveniência formulado à luz do objectivo legal da cobrança correcta dos impostos, e dentro evidentemente da margem de liberdade que lhe é concedida - se, quando e quais desses actos devem efectivamente ter lugar: cfr., por ex., entre muitos outros, os artºs 88º do Cód. Sisa e 114º do Cód. Cont. Ind.'(pág.
62) [ sublinhado nosso].
Noutro passo da mesma obra, CARDOSO DA COSTA, ao analisar o fundamento jurídico dos deveres acessórios da obrigação fiscal (em que se insere o exame à escrita de uma empresa), que reconduz à ideia de cooperação dos particulares e das entidades públicas com a Administração fiscal, em ordem a um funcionamento tanto quanto possível perfeito e completo do sistema tributário [ 'estamos, pois, em face de deveres públicos de colaboração no exercício de uma dada função estadual (pág. 359)], identifica-o como o princípio da legalidade : 'o Fisco só pode exigir aos contribuintes o cumprimento dos deveres que tenham fundamento na lei' (pág. 362).
Contudo, relativizando tal afirmação, o autor distingue entre os deveres acessórios que derivam directamente da lei e aqueles que encontram o seu fundamento imediato num acto administrativo, 'pois que, quanto a eles [estes
últimos], o legislador se limita a conferir aos agentes do Fisco a faculdade de impô-los e a definir as circunstâncias e condições em que este poder fiscal secundário ou instrumental há-de ser exercido'(pág. 363).
A que acrescenta (pág. 363-364):
'Quando a exigência de certo dever acessório fica dependente do exercício do correlativo poder fiscal secundário, ou seja, dum acto administrativo, deparam-se-nos algumas situações em que os órgãos fiscais dispõem de faculdades discricionárias para a sua prática - isto é, deparam-se-nos situações em que a imposição do dever é deixada, nos casos concretos, ao critério da Administração: é o que, por exemplo, claramente sucede na hipótese contemplada pelo artº 114º do Cód. Cont. Ind.(sublinhado nosso).
Não tem de estranhar-se o facto: com efeito, o princípio da legalidade não assume relativamente aos deveres acessórios alcance idêntico ao que possui quando referido aos elementos essenciais dos impostos, isto é, quando referido à obrigação fiscal. Na verdade, enquanto para estes elementos vale, com todas as específicas consequências a seu tempo vistas, o princípio da tipicidade inscrito no artº 70º, § 1º, da Constituição [de 1933, actualmente artigo 106º, nº 2 da Constituição de 1976], já quanto aos deveres acessórios - uma vez que os mesmos se não acham compreendidos no âmbito definido por tal preceito constitucional e escapam por isso à zona de influência do princípio nele fixado - vigora antes, simplesmente, o princípio comum de legalidade da Administração. Sendo assim, neste domínio já se torna possível ao legislador conceder aos agentes do Fisco faculdades discricionárias.'
A questão da delimitação entre o conteúdo da lei em matéria fiscal e a margem de livre decisão da Administração é também objecto da reflexão de JOSÉ LUÍS SALDANHA SANCHES, A Segurança Jurídica no Estado Social de Direito. Conceitos Indeterminados, Analogia e Retroactividade no Direito Tributário, in
'Ciência e Técnica Fiscal', nºs 310-312, Outubro-Dezembro de 1984, que coloca o problema à luz das diferentes concretizações que têm sido ensaiadas, no domínio do direito fiscal, de superação da permanente relação de tensão entre a defesa da certeza e segurança do direito e da execução das normas constitucionais que impõem a generalidade das obrigações fiscais e a igualdade perante o fisco, escrevendo, pois, que 'a linha principal da argumentação a ser seguida consiste em que essa abordagem do problema - que reflecte, no campo do direito fiscal, como já se afirmou - a concretização do normativismo positivista, se pode hoje considerar esgotada, dados os problemas que tem encontrado, sem conseguir resolver, nos sistemas fiscais dos países industrializados do ocidente, onde se reflecte com mais intensidade a problemática das modernas formas de fuga legal ao imposto - a 'fiscal avoidance' dos anglo-saxónicos, a que se tem chamado entre nós elisão fiscal, mas a que se poderia talvez chamar, com maior rigor e propriedade, evitação fiscal.(...) [P]erante o aparecimento de esquemas cada vez mais generalizados de evitação fiscal é sistematicamente posta à prova a capacidade do legislador fiscal para abranger na sua previsão todas as manifestações de capacidade contributiva que deverão, para a manutenção dos princípios fundamentais da justiça tributária, ser sujeitas a tributação.' (pág.
286-287).
Apreciando, a este propósito, a evolução do sistema fiscal inglês ( e a crise do sistema da interpretação estrita - subordinada ao principle of strict interpretation -), SALDANHA SANCHES (op. cit., pág. 289) refere:
' É um sistema que tem como fundamento uma distinção de base entre interpretação e integração jurídica, desconhecendo - ou mais exactamente, recusando-se a admitir - a existência de um continuum entre a interpretação e a integração. Mas esta concepção (...) acaba por ser de todo abandonada (...) quando a jurisprudência, ao ser chamada a conhecer dos litígios entre a administração fiscal e os contribuintes acerca da exacta determinação das realidades económicas que realizam ou não os tipos fiscais pela lei determinados, vêm não só proceder a um julgamento sobre a intenção dos contribuintes - caso da recente jurisprudência britânica sobre o fiscal planning
- permitir o uso de cláusulas gerais anti-evasão por parte do legislador fiscal
- caso da legislação alemã -, recuar nas suas exigências de formulação da lei fiscal através de uma expressão verbal que permita uma interpretação e inequívoca - como sucede nos direitos britânicos e alemães - ou aceitar pelo legislador o uso de conceitos indeterminados ou de preceitos-poder
(Kann-vorschrift) que remetem para uma valoração que será efectuada pelo encarregado da execução da lei, como sucede frequentemente no direito fiscal português.'
Neste contexto, cumpre reconhecer que a possibilidade de utilização, pelo legislador, no domínio fiscal, quer de cláusulas gerais, quer de conceitos indeterminados, pressupõe, para efeitos da sua aplicação, uma certa margem de livre apreciação da administração fiscal na aplicação desses preceitos aos casos concretos. O que faz com que, como sublinha SALDANHA SANCHES (op. cit., pág.
296) 'a sua inclusão nas leis fiscais [esteja] sempre em potencial conflito com os princípios da determinabilidade e mensurabilidade das obrigações fiscais, uma vez que a sua utilização envolve necessariamente um certo grau de indeterminação. E a relação bipolar justiça-segurança surge com contornos de particular nitidez, pois a utilização de conceitos indeterminados, conceitos de valor ou cláusulas gerais constituem 'instrumentos de consideração das circunstâncias concretas dos actos e dos problemas, enquanto exigência da igualdade e da justiça materiais' [ A. CASTANHEIRA NEVES, A Instituição Jurídica dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais ].(...) O aumento da complexidade da decisão - ou mesmo da imprevisibilidade da mesma, se estas possibilidades pela lei conferidas forem utilizadas de forma abusiva pela administração fiscal sem que os tribunais o impeçam - vem pôr em causa o principio da segurança do direito, se entendermos que esta só pode ser garantida se da letra da lei tiverem de constar todos os elementos da decisão'.
9. Feito este enquadramento, consideremos agora o parâmetro constitucional invocado em primeiro lugar, o artigo 106º, nº 3 da nossa Lei Fundamental, que dispõe que 'ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se não façam nas formas prescritas na lei'.
Comentando este preceito, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 459, escrevem:
'Fora da reserva parlamentar de lei fiscal parece ficar a matéria da liquidação e da cobrança (cfr. nº 3), naquilo que não afecte as garantias dos contribuintes, pois ela não consta do elenco mencionado no nº 2. Em todo o caso, mantém-se a regra da reserva de lei, não podendo a liquidação e a cobrança ser reguladas por via regulamentar':
A que acrescentam (op. cit., loc. cit.):
'Os impostos são uma das poucas obrigações públicas dos cidadãos constitucionalmente consagradas (...). Como tal, está sujeita a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artº 12º-1), e devem estar sujeitos a ele em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artº 13º-2). É nisto que consiste o princípio da igualdade tributária (o qual, evidentemente, em nada contraria o princípio constitucional da progressividade dos impostos)'.
De igual forma os citados autores defendem, como corolário do princípio da legalidade tributária, a aplicação dos princípios da necessidade (no sentido de não ser concebível um imposto 'arbitrário') e da não retroactividade (neste
último caso, contudo, com algumas limitações).
Considerando o problema numa outra perspectiva, centrada no plano do Direito Administrativo, JORGE MIRANDA, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, pág. 281 e ss., retira da reserva de lei (no confronto com a administração), o corolário da 'proibição ou limitação rigorosa do exercício de poder discricionário da Administração (ou da discricionariedade da actuação administrativa) - previsão pela lei do contéudo e das circunstâncias das decisões individuais e concretas sobre matérias de reserva de lei, não podendo a Administração emitir juízos de oportunidade e de conveniência acerca delas'.
Abordando especificamente a questão da admissibilidade de conceitos indeterminados em direito fiscal, DIOGO LEITE DE CAMPOS, Evolução e Perspectivas do Direito Fiscal in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, Dezembro de 1983, págs. 664 e ss., partindo do pressuposto de que a referência constitucional do nº 2 do artigo 106º à incidência dos impostos abarca tanto a matéria colectável como a sua determinação, refere que 'em direito fiscal o único modo de a lei se adaptar à evolução social e à riqueza de vida é através da sua modificação e da sua valia técnica', donde 'no direito fiscal não cabe[re]m, pois, conceitos indeterminados nem normas 'incompletas' ou 'elásticas', atendendo a que 'o princípio da legalidade, com todas as suas implicações, transforma um conceito indeterminado em lacuna 'intra legem'; ou seja, o princípio da legalidade não encontra suficiente expressão nas normas em causa, que se transformam em normas
'abertas' postulando a sua integração.'
Ao que acrescenta que 'nestes casos não se trataria à primeira vista de discricionariedade da Administração, e que nada impede que a integração possa ser controlada pelo tribunal - através da aplicação da doutrina germânica do controlo total.'
Num sentido totalmente diverso se pronuncia SALDANHA SANCHES (op. cit., pág. 298) socorrendo-se da evolução doutrinária e jurisprudencial verificada na Alemanha. A este propósito refere que 'o tribunal constitucional alemão começou por definir, através do princípio da determinabilidade - Bestimmenheitgrundsatz
- que exige das normas fiscais uma construção do tipo que, assegurando um mínimo de clareza e de transparência do tipo, permita a calculabilidade e a previsibilidade da obrigação fiscal.' O mesmo tribunal, contudo, não impede a utilização de conceitos indeterminados no domínio da tributação do rendimento, pois que 'o princípio da determinabilidade tem o seu núcleo essencial na reserva da competência da lei para a selecção dos factos da vida social que devem ser objecto de tributação, na manutenção do dictum do legislador ordinário quanto à determinação dos factos tributáveis: não impede que este se sirva de uma formulação suficientemente ampla para abranger factos da mesma natureza e igualmente indiciadores de capacidade tributária, ainda que com características que entre si os diferenciem', daí decorrendo a admissibilidade, na ordem jurídica alemã, de cláusulas gerais, de conceitos jurídicos indeterminados, de conceitos tipológicos e de tipos discricionários.
Nesta linha de pensamento, SALDANHA SANCHES afirma:
' Há crescente tendência para utilização de preceitos-poder (os Kann-Vorschrift da doutrina alemã, onde se mantém um elemento de irredutível indeterminação), uma vez que a lei atribui 'ao órgão aplicador do direito poder para fazer uma valoração' em campos do direito fiscal, como na tributação das empresas do grupo A, onde a determinação do lucro tributável se deverá fazer através dos elementos fornecidos pela escrita do contribuinte, ou seja, deverá apreender a realidade concreta dos lucros obtidos por uma determinada empresa e não operar através de uma simples avaliação administrativa ou presunção fiscal.'
Tendo em atenção que os conceitos indeterminados concedem à administração fiscal um espaço de 'livre apreciação', 'não porque estejamos perante questões
'substancialmente discricionárias' mas por razões de direito processual
'decorrentes da inconveniência de substituir um juízo - decerto problemático - da Administração - a um outro juízo - não menos problemático do tribunal
[Alberto Xavier]', SALDANHA SANCHES conclui que a jurisprudência assente do Supremo Tribunal Administrativo no sentido de não conhecer da quantificação dos custos, limitando-se à questão jurídica da qualificação [como custos de certas despesas feitas pelas empresas] não pode ser considerada, 'pelo facto de aceitar implicitamente a utilização de conceitos indeterminados pela lei fiscal, como em si mesma ofensiva do princípio da legalidade tributária.' (op. cit., pág. 302).
Em sentido divergente, FRANCISCO DE SOUSA DA CÂMARA, Direitos e Garantias dos Contribuintes, in 'Fisco', nº 35, Ano 3, Outubro de 1991, pág. 19, escreveu que:
' Os dois casos conhecidos por discricionariedade técnica ou discricionariedade imprópria (abrangendo os conceitos vagos e indeterminados), respectivamente, também não envolvem uma verdadeira discricionariedade, apesar da sua designação.
No primeiro caso, atribui-se apenas à Administração possibilidade de verificar se se encontra preenchido o conteúdo do tipo técnico elaborado pelo legislador, agindo em conformidade.
No segundo caso, concedeu-se à Administração a possibilidade de preencher o conteúdo dos conceitos vagos e indeterminados ou indirectamente determinados, mas atribuindo-lhes a tarefa constante de o fazer com base numa interpretação que se deve afigurar como a única solução juridicamente correcta e que, por isso, deve ser sempre susceptível de fiscalização judicial.'
Para mais adiante, depois de reconhecer que a 'margem de livre apreciação da Administração' na área do direito fiscal introduz sempre insegurança e incerteza, 'esteja ela ou não revestida da capa de uma actividade vinculada a uma interpretação correcta ou à aplicação do 'justo valor' ', conclui que 'se não vierem a reconhecer-se como inconstitucionais as múltiplas normas dos vários códigos tributários que as prescrevem, por contrárias ao princípio da legalidade, pelo menos, deve admitir-se hoje - sem os limites do passado - a sua sindicância jurisdicional, de modo a se poder questionar se a Administração respeitou ou não os pressupostos definidos na lei.' (op. cit., pág. 20).
10. Feito este enquadramento, resulta evidente que, no plano doutrinário, se definem posições muito diversificadas entre si quer quanto à caracterização dos conceitos jurídicos em presença (a 'polissemia' da discricionariedade técnica a que aludia CARDOSO DA COSTA, conforme já se referiu) quer quanto à admissibilidade (constitucional) do recurso a conceitos indeterminados ou indirectamente determinados no domínio do direito fiscal.
Registe-se, contudo, que os autores citados constróem as suas posições com base não só no princípio da legalidade, mas também em função da conjugação desse princípio com o da tipicidade e à luz do âmbito de poderes de cognição dos tribunais administrativos, tal como eles decorrem da garantia constitucional de recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos (definitivos executórios, na redacção do preceito constitucional decorrente da revisão de 1982), a qual garantia o Tribunal Constitucional deverá também chamar à colação conjugadamente enquanto parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma impugnada, neste último caso, contudo, com o limite já atrás assinalado de que não cabe no âmbito da competência do Tribunal Constitucional apreciar vícios não imputáveis à norma em crise mas apenas eventualmente atribuíveis à decisão recorrida.
Na realidade, a decisão administrativa adoptada ao abrigo do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial traduz-se num acto administrativo-fiscal que não se pode ter por integralmente predeterminado pela lei. A este propósito
( e recorrendo agora ao ensino de SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, pág. 471), a ausência de predeterminação integral do acto pode verificar-se na previsão da norma
(facti species ou Tatbestand), quando respeita aos elementos da situação concreta, e pode igualmente verificar-se na estatuição da norma
(Rechtsfolgeseite) quando tem a ver com os efeitos de direito que devam ser produzidos.
Ora, no caso vertente, o acto em apreço foi praticado ao abrigo de uma disposição legal onde o carácter incompleto da predeterminação se reporta à sua previsão ou Tatbestand (à incompletude dos elementos da situação concreta a que a regra de direito se vai aplicar) e não aos efeitos de direito (à estatuição ou Rechtsfolgeseite ), pois que estes aparecem determinados (traduzindo-se na mudança de sistema de tributação). Nestes termos, a Administração é chamada a completar o Tatbestand com os pressupostos de facto por ela escolhidos em face do exame à escrita, gozando de uma certa autonomia quer nessa escolha quer na sua concreta aplicação ao caso do contribuinte em análise, para o que se socorre de elementos de natureza técnica e científica; e como corolário de tal exame e da verificação das situações genericamente descritas na norma ('impossibilidade de controlo' e 'fundadas dúvidas de não correspondência') cabe-lhe decidir se actua ou não como a norma postula (ou seja, se procede à alteração do sistema de tributação), devendo esta decisão ser a que congruentemente resultar dos pressupostos acima referidos por ela escolhidos, pois que, em caso de não haver tal congruência daí resultará , como refere SÉRVULO CORREIA, (op. cit., pág.
471, nota 275), 'violação da imposição de aptidão (Geeignetheit) dos meios em relação ao fim, que constitui uma das vertentes do princípio da proporcionalidade'.
Neste contexto, SÉRVULO CORREIA (op. cit., pág. 472) sublinha que 'tem de considerar-se ultrapassada a posição clássica, segundo a qual a concessão de discricionariedade se localizaria sempre na estatuição da norma, ao passo que se inscreveriam necessariamente no Tatbestand os conceitos jurídicos indeterminados, cuja aplicação se traduziria sempre em última análise numa tarefa interpretativa, ainda que executada com maior liberdade'.
E, depois de referir (op. cit., pág. 473) que 'a discricionariedade, mesmo quando formalmente situada na estatuição da norma, implica o carácter aberto da previsão, isto é, a necessidade de aditar aos pressupostos enunciados na norma aquele ou aqueles outros que se revelem indispensáveis para justificar uma certa decisão', o autor que temos vindo a seguir conclui que ' a abertura ou indeterminação da lei significa normalmente a vontade do legislador de deixar à administração poderes de decisão adaptativa (...), um modo de o legislador distribuir tarefas entre ele próprio e o aplicador ou executor das leis'.
Seguindo a orientação de WALTER SCHMIDT ( Einführung in die Probleme des Verwaltungsrechts, págs 38 e 59 a 63) quanto à livre apreciação dos conceitos jurídicos indeterminados, SÉRVULO CORREIA (op. cit., pág. 474) entende que só há verdadeira indeterminação quando o preenchimento do conceito legal não seja apenas uma questão de entendimento (pois que esta se resolve através da mera interpretação - e, como refere ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, Erro e ilegalidade no acto administrativo, Lisboa, 1962, pág. 217, 'a discricionariedade começa onde acaba a interpretação' -) mas antes quando a indeterminação só é ultrapassável através de uma avaliação ou valoração da situação concreta (baseada numa prognose a cargo do aplicador da lei ) que o próprio legislador pretendeu que fosse levada a cabo através da concreta experiência e conhecimento do órgão executor da lei, à luz não de uma determinação jurídica mas tão somente de um enquadramento fornecido por critérios jurídicos (cfr. SÉRVULO CORREIA, op. cit., pág. 474).
Assim sendo, e quanto aos poderes de cognição dos tribunais, SÉRVULO CORREIA refere ( op. cit., pág. 474-475) que 'o tribunal apenas pode controlar as zonas de vinculação que rodeiam a opção [da Administração] (competência, aplicabilidade da norma à hipótese, correcção da interpretação da norma, respeito do princípio da proporcionalidade na sua faceta da exigência de que o meio previsto não seja totalmente inapropriado à obtenção do resultado pretendido [Geeignetheit] ). Também a avaliação da situação concreta para saber se, no caso individual, se justifica ou não a aplicação da norma deve obedecer ao fim da norma. Quanto ao resto, porém, está-se perante uma margem de livre decisão ( Entscheidungsspielraum ) que abarca, designadamente mas não apenas, aqueles casos que uma jurisprudência e uma doutrina algo relutantes têm agrupado sob a designação de margem de livre apreciação (Beurteilungsspielraum ). A repetição - fora das referidas áreas de vinculação - do juízo de prognose pelo tribunal administrativo apenas faria suceder um segundo a um primeiro juízo subjectivo, sem nada acrescentar quanto a garantias de legalidade, por se estar numa área em que não cumpre, nem é objectivamente possível, medir o conteúdo da decisão segundo parâmetros legais'.
Os conceitos jurídicos indeterminados figuram, assim, na previsão da norma (Tatbestand) e traduzem-se, pois, na consagração de uma margem de livre decisão da Administração quanto à ocorrência de elementos da situação concreta de que depende a produção de certos e determinados efeitos jurídicos, operação essa que na jurisprudência francesa é designada por 'qualificação dos factos'
('e que respeita não à constatação da existência material dos pressupostos de facto, mas à valoração destes para concluir sobre se deve ou não agir') e em Portugal e na Itália recebe a já aludida designação de discricionariedade técnica ( SÉRVULO CORREIA, op. cit., pág. 475. Em sentido de certo modo divergente, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, 1991, pág. 805, entende que a discricionariedade 'diz respeito aos resultados jurídicos de uma norma. Todavia, já quanto à fixação dos pressupostos de facto (Tatbestandseit) e não simples (Rechtsfolgeseite) é inadmissível um poder discricionário da administração').
11. Como já vimos, a norma em causa insere-se de pleno no domínio fiscal, estando, por assim dizer, duplamente vinculada à lei, por um lado por força da cominação expressa do artigo 106º, nºs 2 e 3, da Constituição e, por outro, em virtude de a matéria em causa se inserir na esfera de competência reservada da Assembleia da República [artigo 168º, nº 1, alínea i) - 'criação de impostos e sistema fiscal'].
Ora, o que verdadeiramente a recorrente pretende criticar na norma em causa é a violação do princípio da legalidade tributária na óptica da insuficiente densificação legislativa das condições de aplicação do aludido preceito (ou seja, do insuficiente grau de precisão e determinabilidade das regras legais atinentes a esta específica situação tributária que poderiam colocar o regime em crise a descoberto das garantias decorrentes dos aludidos princípios constantes do artigo 106º, nºs 2 e 3, da Constituição).
Dito ainda de outra forma, estando em causa matéria tributária, matéria de definição dos pressupostos de aplicação de um determinado imposto, a recorrente parece entender que se mostra incompatível com o aludido princípio da legalidade tributária a circunstância de a lei, com base em conceitos indeterminados ou só indirectamente determinados, conferir uma certa margem de livre apreciação à Administração para efeitos de determinação da substituição de um sistema de tributação (típico do grupo A) por um outro (o do grupo B), este mais gravoso do que aquele, em virtude do incumprimento, por parte do contribuinte, de certas regras atinentes às suas obrigações fiscais.
Recorde-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional já teve ocasião de dizer que em sede de restrição de direitos, liberdades e garantias, a Constituição não veda ao legislador a possibilidade de este conferir à Administração a faculdade de actuar ao abrigo de poderes discricionários, desde que as balizas de exercício de tais poderes constem de forma suficientemente densificada na própria lei ( cfr. Acórdão nº 285/92, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Agosto de 1992). Ou seja: em sede de restrições de direitos, liberdades e garantias, o recurso a conceitos jurídicos indeterminados, para efeitos de definição dos pressupostos e da amplitude de exercício de poderes discricionários pela Administração, deve encontrar na letra da lei um tal grau de densificação normativa que correspondam a um mínimo de critérios objectivos que balizem essa actuação discricionária da Administração, em termos tais que permitam aos cidadãos, com um mínimo de segurança, saber com que quadro normativo contam quanto à possível aplicação dessa lei e que simultaneamente confiram aos tribunais elementos objectivos suficientes para apreciação da adequação e proporcionalidade no uso de tais poderes.
E se se chama este lugar paralelo da jurisprudência do Tribunal Constitucional para apreciação do caso em análise é apenas para tornar mais evidente que, desde logo para quem entenda que a actividade normativa de definição do sistema tributário, à luz do princípio da legalidade tributária, não se traduz numa verdadeira e própria restrição de direitos, liberdades e garantias, então parece não constituir obstáculo inultrapassável que a lei acolha na sua formulação conceitos jurídicos indeterminados e, com base neles, confira à Administração uma 'margem de livre apreciação' para analisar uma dada situação de facto de incumprimento ou de desvio de um dever fiscal e, consequentemente, decidir da aplicação do mecanismo de substituição do sistema de tributação (como resulta do § 2º do artº 114º do Código da Contribuição Industrial), desde que tal habilitação preencha o conteúdo mínimo exigível ao cabal cumprimento do aludido requisito da legalidade tributária (no sentido de previsão legal do imposto).
Mas mesmo para quem veja na definição normativa do sistema tributário, em concorrência com os ditames do princípio da legalidade e da tipicidade tributárias, uma específica forma de restrição de direitos, liberdades e garantias, ou melhor, de direitos fundamentais de natureza análoga, que beneficiariam do regime do artigo 18º da Constituição, por força do disposto no artigo 17º da Lei Fundamental, será também de concluir que, à luz do critério jurisprudencial atrás referenciado, quando a lei usa conceitos jurídicos indeterminados, embora daí resulte que a Administração vem a beneficiar de uma certa margem de liberdade de apreciação, não haverá ofensa da Constituição desde que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade administrativa assim desenvolvida.
No caso vertente, constituirá exigência do princípio da legalidade tributária que os conceitos indeterminados contenham uma densificação normativa que permitam aos particulares saber em que situações concretas possíveis é que pode ter lugar a substituição do sistema de tributação em contribuição industrial segundo o grupo A pelo do grupo B e aos tribunais conhecer da exigibilidade e da proporcionalidade da conduta da Administração ao determinar essa substituição do sistema de tributação.
Assim sendo, a norma em apreço torna claro que tal substituição só poderá operar quando 'em face do exame à escrita se verifique a impossibilidade de controlar a matéria colectável' bem como quando, face ao mesmo exame, resulte que existem 'dúvidas fundadas sobre se o resultado apurado corresponde ou não à realidade'.
É bem certo que a delimitação dos pressupostos de aplicação daquele normativo depende de um juízo valorativo tributário de elementos de carácter técnico - inexistência de elementos que permitam o controlo da matéria colectável e fundadas dúvidas de incorrecção ou inexactidão dos elementos constantes da escrita face à realidade económico-financeira da empresa -, mas não se afigura que da imposição constitucional constante do princípio da legalidade tributária decorra que tais pressupostos de aplicação do normativo impugnado legalmente estabelecidos se mostram insuficientemente densificados, atentas as especificidades do domínio fiscal, onde frequentemente, e em sede de exercício dos poderes de controlo, se terá que recorrer a conceitos jurídicos indeterminados e ao contributo de elementos de carácter técnico para fundar as decisões da Administração na prossecução do interesse público expresso numa correcta tributação dos agentes económicos.
Com efeito, o particular sabe, em face do postulado normativo, que não é toda e qualquer situação que justificará a mudança de sistema de tributação, mas apenas aquelas que, nos termos da lei, decorram de uma efectiva impossibilidade de controlo da matéria colectável, com base na escrita da empresa, e de fundadas dúvidas que a mesma escrita suscite quanto à correspondência entre o resultado atinente à matéria colectável apurado e declarado pelo contribuinte e a realidade da empresa, tal como a Administração a aprecia.
Ora a escrita é um elemento objectivo de prova, constitui matéria de facto constante do processo administrativo, e a impossibilidade de determinação da matéria colectável há-de resultar da sua insuficiência (ou mesmo inexistência), podendo sempre ser objecto de contradita quer em sede de reclamação quer de recurso contencioso.
De igual forma as 'fundadas dúvidas' sobre a efectiva correspondência entre os resultados declarados pelo contribuinte e a realidade económica da empresa hão-de resultar de elementos objectivos da escrita da empresa, designadamente quando cotejados com a prática da Administração na apreciação de situações paralelas de outros contribuintes em situações similares.
Assim sendo, a norma em crise contem um quadro normativo definido por referência a conceitos jurídicos relativamente indeterminados, cujo preenchimento vai ser levado a cabo pela Administração em função do exame à escrita do contribuinte (aquilo a que CARDOSO DA COSTA chama 'momentos insuprimíveis de liberdade', de apprezzamento subjectivo ) e, para o efeito, socorrendo-se dos elementos de carácter técnico (da 'liberdade de investigação ou científica') que se mostrem operativos face ao seu grau de conhecimentos e de saber e que correspondem a uma certa flexibilidade adaptativa da norma à complexidade das relações sociais e ao próprio progresso e sofisticação das técnicas envolvidas nos casos de fraude ou de 'evitação' fiscal. Tal quadro normativo contido no preceito legal confere directrizes genéricas que permitem, pois, ao contribuinte saber em que casos e situações é que pode vir a sofrer as consequências de mudança do sistema de tributação.
Sem embargo, não se pode deixar de reconhecer que a efectiva adequação do procedimento da Administração face aos pressupostos legais é matéria que, em boa verdade, só pode ser realmente apurada partindo dos próprios resultados da actividade administrativa. Com efeito, quando se trata de saber se houve 'erro manifesto', o tribunal tem que partir do resultado da actividade da Administração para verificar se a decisão de aplicar a norma ao caso encontrava fundamento nos próprios pressupostos de facto da situação, ou seja, se a situação fáctica do contribuinte podia ou não ser subsumida à previsão legal na sua assinalável latitude.
O que só por si indicia que a efectiva observância do princípio da legalidade tributária não se pode quedar pela análise do grau de densificação normativa na óptica do seu conhecimento pelos particulares, antes tem que ir mais longe, num sentido de maior exigência quanto à garantia das posições jurídicas subjectivas dos administrados e, consequentemente, tem também que ser vista à luz da possibilidade de controlo jurisdicional da exigibilidade e da proporcionalidade dos juízos emitidos pela Administração no preenchimento daqueles conceitos indeterminados e na sua aplicação ao caso concreto. O mesmo é dizer que, nesta segunda vertente, a observância do próprio princípio da legalidade tributária vai de par com a garantia de recurso contencioso e com a amplitude dos poderes de cognição dos tribunais fiscais.
12. Reportando-se ao posicionamento da jurisprudência portuguesa sobre o controlo da denominada discricionariedade técnica, escreve SÉRVULO CORREIA, op. cit., pág. 475 e seguintes:
' A jurisprudência portuguesa tem designado, ao longo dos anos, sob a ideia de discricionariedade técnica, duas realidades distintas: de um lado, o emprego de verdadeiros conceitos jurídicos indeterminados na previsão da norma para referir a valoração de um elemento da situação concreta, e do outro, aqueles casos em que o legislador se limita a prever a emissão de juízos de
'accertamento' de um facto verificável com base em conhecimentos e instrumentos científicos e técnicos de aplicação exacta. O Supremo Tribunal Administrativo recusa-se, em geral, a sindicar a aplicação da 'discricionariedade técnica' pela Administração com o fundamento de que 'quando há lugar à qualificação técnica, não pode normalmente, o Tribunal, que só lida com a técnica jurídica, apreciar se as regras de uma ou outra arte foram bem aplicadas e por isso, em regra é definitiva a qualificação aplicada pelo agente, a quem a lei atribui então a qualidade de perito. Aqui não há discricionariedade perante a lei e, no entanto, a fiscalização contenciosa é impossível' [ Acórdão STA, Pleno, de 22/6/83 - in AD, 265, 93 ].
A razão assim adiantada é a de que, muito embora a Administração não disponha da liberdade de apreciação que caracteriza a verdadeira discricionariedade, o raciocínio em que se fundou a decisão administrativa não pode ser repetido pelo tribunal, por carência dos conhecimentos de técnicas extra-jurídicas para tanto necessárias. Assim surgiria uma segunda causa de insindicabilidade contenciosa, a par daqueles casos em que o legislador tenha querido uma efectiva liberdade de apreciação pela Administração. A jurisprudência abre no entanto uma excepção para os casos de erro manifesto, isto é, em que o critério adoptado pela Administração se revela manifestamente desacertado e inaceitável'.
E abordando especificamente a questão dos poderes de sindicabilidade deste tipo de situações à luz das garantias constitucionais, SÉRVULO CORREIA
(op. cit., pág. 476) refere que 'a premissa da impossibilidade processual do controlo mereceria ser afastada definitivamente porque conduz em linha recta à recusa do controlo da existência material de pressupostos de facto, quando o mesmo dependa do uso de meios técnicos. Mas o erro de facto nos pressupostos é fonte de ilegalidade e o tribunal não pode fugir ao seu exame sob pena de violar a garantia constitucional de recurso contencioso com fundamento em ilegalidade. Os tribunais comuns também têm muitas vezes que apreciar prova feita por arbitramentos baseados em técnicas complexas e distantes dos problemas jurídicos. O argumento de que nada adianta sobrepor os peritos do tribunal aos da Administração não é válido: os peritos da Administração agem movidos por interesses que esta prossegue, e os do tribunal devem imbuir-se (ou serem imbuídos pelos juízes, se necessário...) do espírito 'super partes' que tem de presidir à função jurisdicional. De resto o artigo 14º da LPTA preceitua, em execução do disposto pelo artigo 12º do ETAF, que 'quando num processo se devam resolver questões que pressuponham conhecimentos especializados, pode o tribunal determinar a intervenção de técnico, que tem vista do processo e, em tribunal colegial ou colectivo, é ouvido na respectiva discussão'.
Embora apreciando criticamente a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Administrativo, o mesmo autor assinala que, no já atrás citado Acórdão do Pleno, se reconhece existirem conceitos indeterminados cujo preenchimento se opera em sede axiológica, com base numa valoração e não apenas num mero juízo de verificação, e que o uso, pelo legislador, de tais conceitos na previsão das normas corresponde a uma habilitação da Administração para que esta leve a cabo, em termos autodeterminados, uma verdadeira prognose. Neste sentido ( e recordando uma passagem do Acórdão da 1ª Secção do S.T.A. de 2 de Maio de 1985, publicado nos Acórdãos Doutrinais, 288, pág. 1350 ) SÉRVULO CORREIA (op. cit., pág. 478) sublinha a destrinça que a jurisprudência portuguesa parece começar a acolher, aliás na senda da sua congénere italiana, entre juízos técnicos de existência ou de 'accertamento' técnico e juízos técnico-valorativos ou de probabilidade, referindo que os primeiros 'são raciocínios lógico-discursivos, cuja repetição é sempre admissível com o propósito de detectar possíveis erros no seu desenvolvimento', enquanto os segundos 'são prognoses, que requerem do autor uma estimativa subjectiva do modo como a realidade evoluirá', sendo, neste caso, uma juízo valorativo e não cogniscitivo, ainda que baseado em circunstâncias de carácter técnico, cuja previsão normativa representa a atribuição de uma margem de livre apreciação do órgão administativo competente.
13. Neste contexto, como já referimos, os poderes conferidos à Administração pelo § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial traduzem-se na habilitação da Administração para preencher elementos essenciais dos conceitos jurídicos indeterminados, ou só indirectamente determinados, contidos na lei, através do uso de meios técnicos, necessários à especificidade da actividade fiscal. Tal actuação da Administração foi, assim, pretendida pelo legislador como decorrente de uma margem de autonomia própria que a lei confere directamente, sendo censurável pelo Tribunal, pelo menos na óptica tradicional da nossa jurisprudência administrativa, em casos de erro manifesto, onde se entende que a instância jurisdicional possui os elementos necessários e suficientes para apurar o erro da Administração ao aplicar um dado conceito indeterminado a situações que lhe são de todo alheias. Sem embargo, embora ao Tribunal não seja consentido substituir-se à Administração na valorização dos elementos que integram tal conceito jurídico indeterminado (com as condicionantes a que adiante se aludirá mais em detalhe), daí não decorre, contudo, que ao Tribunal esteja vedada a apreciação da exactidão desses mesmos elementos, ou seja, o controlo dos aludidos juízos técnicos de existência ou de accertamento técnico.
Podem, pois, os tribunais controlar os juízos técnicos da Administração emitidos ao abrigo da norma em crise destinados a verificar a existência de elementos de facto predeterminados normativamente e tendo em vista a prossecução do interesse público que subjaz à intervenção administrativa, uma vez que, embora esta intervenção 'accertativa' se caracterize por uma assinalável subjectividade, ela não exclui a possibilidade da sua reedição e subsequente controlo, enquanto actividade de avaliação e de determinação de factos através de procedimentos técnicos, susceptíveis de controlo e de censura em sede de um juízo de legalidade.
Já assim não se passarão as coisas quando a Administração emita juízos valorativos com base no uso de técnicas específicas, porque estes assentam sobretudo numa valoração da atendibilidade de uma determinada relação causal, são verdadeiros e próprios 'juízos de probabilidade' (de mais profunda subjectividade), de vocação marcadamente valorativa, que os aproxima irreprimivelmente do âmbito das decisões de oportunidade e de uma certa assimilação às 'decisões de mérito', excluídas de um controlo directo e pleno em sede de contencioso de anulação com fundamento em ilegalidade.
Neste contexto, e em síntese, pode o juiz, em sede de recurso contencioso de anulação, e socorrendo-se dos meios técnicos que necessitar, controlar não só a verificação dos pressupostos constantes da lei como também as operações técnicas que levaram a Administração a adoptar certa decisão dentro dos limites de uma verificação da correcção do processo cogniscitivo seguido, reportando-se não apenas ao fim visado pela norma que o confere, mas também às regras do iter lógico que conduz à decisão, e que, como já vimos, SÉRVULO CORREIA - op. cit., pág. 499 - identifica com os princípios da imparcialidade e da proporcionalidade consagrados no artigo 266º, nº 2, da Constituição e, por seu turno, GOMES CANOTILHO - op. cit., pág. 806 - identifica como os princípios da exigibilidade, da proporcionalidade e da igualdade, podendo, pois, determinar a invalidade do acto se este ultrapassar os limites legais do exercício do poder discricionário
('excesso de poder') ou assentar num uso insuficiente ou logicamente viciado das regras técnicas para as quais reenvia a lei ('desvio do poder discricionário ou utilização viciada'); mas se o controlo assim entendido levar à conclusão da correcção aplicativa das aludidas regras técnicas, não poderá o juiz sobrepor a sua própria valoração à que tiver sido feita pela Administração.
Como refere em escrito recente GIORGIO PELAGATTI, 'Valutazioni techniche dell'amministrazione pubblica e sindacato giudiziario. Un'analisi critica dei recenti sviluppi della dottrina giuspubblicista', in Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, nº 1, 1992, pág. 173:
'No âmbito da compatibilidade com o preceito normativo, as diversas soluções susceptíveis de serem encontradas em concreto são equivalentes, e um controlo de tipo substitutivo da autoridade judiciária não resultaria num elemento de garantia, antes sim numa alteração de um princípio caracterizador da forma de Estado, o da separação dos poderes. Sobretudo, como já se disse enfaticamente, 'as dúvidas de carácter científico não se resolvem com o instrumento do poder (...): neste aspecto, a balança do juíz vale tanto quanto a espada do administrador' [ F. LEDDA, 'Potere, tecnica e sindacato guidiziario sull'amministrazione pubblica' in Dir. proc. amm., 1983, pág. 434]'.
14. Mas definido desta forma o âmbito da garantia constitucional do recurso contencioso, cumprirá perguntar se é legítimo, à luz da nossa Lei Fundamental, que se tenha por excluído um controlo 'mais profundo' [como o aparentemente pretendido pela recorrente], ou seja, um controlo que vá mais além do 'apprezzamento técnico', da verificação da atendibilidade do juízo expresso pelo órgão administrativo. Isto é, será constitucionalmente legítimo excluir, como atrás se afirmou, do controlo jurisdicional, ao abrigo da garantia de recurso contencioso (de anulação), a esfera de livre decisão da Administração criada por força de uma norma jurídica, quando esta se traduza na emissão de juízos de prognose ou de probabilidade mediante o recurso a meios técnicos, sem suporte directo numa norma legal?
A questão é tanto mais pertinente quanto tem-se chamado a atenção para a dificuldade de proceder à demarcação da análise e juízo técnico-científico e do ulterior momento atinente à escolha entre uma série de possibilidades equivalentes entre si do ponto de vista da compatibilidade com uma norma que impõe um determinado procedimento cogniscitivo, até porque entre essas duas fases pode existir uma relação de interpenetração, de influência recíproca
(cfr., neste sentido, GEORGIO PELAGATTI, op. cit., pág. 174).
Para responder a tal questão, de si extremamente complexa, importa desde logo sublinhar, por um lado, que a garantia do recurso contencioso, constante do nº 3, do artigo 268º da Constituição, não esgota, por si só, o complexo de instrumentos colocados à disposição dos particulares para fazerem valer os seus direitos e interesses legítimos (cfr. v.g. artigos 20º e 268º, nº 4) e, por outro, que a Constituição Portuguesa não consagra nenhuma 'reserva de administração' (Verwaltungsvorbehalt), isto é, não institui nenhuma área de actividade administrativa em relação à qual estejam excluídos os poderes do legislador e o controlo jurisdicional (cfr., neste sentido, SÉRVULO CORREIA, op. cit., pág. 487, GOMES CANOTILHO, op. cit., pág. 811 e NUNO PIÇARRA, 'A reserva de Administração' in 'O Direito', Ano 122º, 1990, II, pág. 325 e ss. e III-IV, pág. 571 e ss.).
Tradicionalmente a destrinça entre os juízos de 'accertamento' e os juízos propriamente valorativos assenta num pressuposto filosófico segundo o qual a ciência constitui uma actividade produtora de verdade, de certeza absoluta. Mas esta explicação tem vindo progressivamente a ser submetida a severas críticas, que põem em relevo a sua natureza de explicação/fundamento marcadamente ideológico, que parece cada vez mais claudicante face às mais recentes aquisições da epistemologia contemporânea, que sublinham precisamente o carácter não absoluto do conhecimento científico (cfr. Karl Popper, 'La Logica della scoperta scientifica', Torino, 1970, pág. 5, e 'Congetture e confutazioni. Lo sviluppo della conoscenza scientifica', Bologna, 1972, pág. 369 e ss, e T.H. Khun, 'La strutura delle rivoluzioni scientifiche', Torino, 1978, pág. 22 e ss.).
Num plano mais centradamente jurídico, uma relevante corrente doutrinal
(de inspiração germânica) tende a fundamentar a exclusão de um tal controlo jurisdicional 'mais profundo' (incidente sobre os juízos valorativos) com base na dicotomia entre Rechtsfragen (questões de direito) e Ermessenfragen (questões de oportunidade) [cfr. F. LEDDA, op. cit., pág. 432], identificando os juízos técnicos às primeiras, com base no pressuposto de que o reenvio levado a cabo pelo direito para uma norma técnica, ao produzir a juridificação desta, constitui ainda uma espécie dentre os fenómenos interpretativos, e portanto, enquanto aplicação da norma, tais juízos são susceptíveis de um controlo jurisdicional directo (F. LEDDA, op. cit., loc. cit.), se bem que confinado à apreciação da correcção do procedimento cogniscitivo adoptado.
Este entendimento afasta, pois, expressamente os juízos técnicos do fenómeno da discricionariedade administrativa, e nesta medida proscreve o recurso à categoria do 'juízo de mérito administrativo' como fundamento da exclusão de um controlo jurisdicional total dos juízos técnicos. Mas uma vez que o controlo jurisdicional se restringe à verificação da atendibilidade do juízo expresso pelo órgão administrativo, sobre a correcta aplicação das regras técnicas e científicas reclamadas pela norma legal, e uma vez verificada tal atendibilidade e correcção, então estar-se-ia perante uma questão de escolha entre várias soluções possíveis, todas em si mesmas legítimas porque todas apuradas segundo os critérios normativamente preestabelecidos, escolha essa que já não seria meramente 'técnica' mas antes fundada em critérios de
'oportunidade', cuja natureza os exclui do controlo jurisdicional, porque uma decisão do juiz não se pode substituir, em sede de oportunidade, à decisão da Administração (F. LEDDA, op. cit., pág. 434).
Nesta linha de orientação, a discricionariedade e a margem de liberdade de apreciação dos conceitos jurídicos indeterminados por parte da Administração encontram o seu fundamento no próprio princípio da separação de poderes, gerando, assim, uma 'reserva de decisão parcial' da Administração face aos tribunais (SÉRVULO CORREIA, op. cit., pág. 487), estabelecida pelo próprio legislador com base numa norma jurídica que fixa, ela própria, 'um núcleo mínimo incomprimível de pressupostos e de elementos do conteúdo do acto' (idem, ibidem, pág. 486).
Diversamente, outra corrente doutrinária tem vindo a qualificar os juízos técnicos como parte de uma fenomenologia mais vasta, reportável aos denominados
'factos opinativos', que contemplam as hipóteses nas quais a verificação da existência e do relevo dos factos ('accertamento dei fatti') abstractamente previstos numa norma determina uma solução - pela própria natureza dos factos em causa - que resulta inevitavelmente controversa, ou seja, o 'facto opinativo' consiste numa situação real prevista - tipicizada - por uma norma imprecisa [ cfr. C. MARZUOLI, 'Potere amministrativo e valutazioni techniche', Milano, 1985, pág. 151 e ss.].
Neste contexto, a valoração discricionária constitui um facto (em sentido amplo) correlacionado a uma norma elástica, imprecisa, a qual impõe a prossecução de uma finalidade de interesse público e remete à decisão da autoridade administrativa e fixação dos valores e das prioridades no conjunto dos interesses em presença. Esta qualificação operada pela Administração enquanto actividade reservada, ao excluir um controlo jurisdicional pleno e substitutivo, deriva da natureza política da opção que lhe preside: 'a imprecisão, a elasticidade da norma reporta-se à definição de uma ordem de relações sociais, económicas, cuja individualização responde a critérios de oportunidade totalmente opinativos. A subtracção da valoração discricionária a controlo jurisdicional ( fora os casos da jurisdição de mérito), por isso, pode dizer-se que é imposta pelos princípios constitutivos da forma de Estado: o princípio democrático exige que as decisões inerentes à gestão de interesses sejam assumidas por sujeitos representativos da vontade expressa dos titulares desses interesses' [ GIORGIO PELAGATTI, op. cit., pág. 180].
Assim, uma adequada valoração técnica impõe subsequentemente escolhas associadas à valoração do interesse público em presença ( como refere SÉRVULO CORREIA, op. cit., pág. 480, 'no âmbito da margem de autodeterminação que lhe é deixada, o titular do poder tem de comparar e valorar todos os interesses públicos e privados que possam ser satisfeitos pela decisão e hierarquizá-los à luz do interesse público específico em termos de escolher um ou alguns em detrimento dos restantes'), mas tais escolhas são, por natureza, alheias à valoração técnica, porquanto, ao assentarem na imposição ou na prevalência de certos valores face a outros, são, em última análise, reconduzíveis à função de
'direcção política' ('indirizzo politico') formulada pelos órgãos constitucionais e correspondem à crescente dimensão técnica da própria política
[ cfr. C. MAZUORLI, op. cit., pág. 227].
Razão pela qual esta corrente doutrinária entende que a Administração pública, por contraste com as entidades jurisdicionais, representa o sujeito melhor habilitado para formular tais escolhas, já que os 'valores' expressos pela Administração, enquanto 'filtrados e influenciados' pelos valores do
'indirizzo politico', surgem como mais representativos e daí que a possibilidade de um poder reservado de valoração técnica encontre o seu fundamento no princípio democrático e de representatividade [cfr., neste sentido, C. MAZUORLI, op. cit., loc. cit., GIORGIO PELAGATTI, op. cit., pág. 183; em sentido contrário
- no da prevalência do juízo jurisdicional, V. OTTAVIANO, 'Giudice ordinario e giudice amministrativo di fronte agli apprezzamenti tecnici dell' amministrazzione' in 'Studi in Onore di V. Bachelet', II, Milano, 1987, pág.
439, nota 25; ainda numa perspectiva crítica quanto a este entendimento, face aos riscos da 'politização da Administração' e da autonomização dos aparelhos administrativos face às insuficiências das instâncias de controlo político, ver G. PELAGATTI, op. cit., pág. 189-190].
Do exposto resulta que, independentemente do fundamento teórico que se adopte, questão que em si mesma não releva neste momento, existem argumentos ancorados em princípios básicos do nosso ordenamento constitucional que se mostram suficientemente relevantes para poder concluir que a existência de domínios de discricionariedade e de valoração técnica excluídos de um controlo jurisdicional pleno (no sentido de 'controlo substitutivo') não constitui, em sede de recurso contencioso de ilegalidade, atentado à garantia constitucional constante do nº 3, do artigo 268º, da Constituição.
15. Mas em face do entendimento atrás acolhido, e conforme também já se sublinhou, a norma em causa, com o alcance perfilhado, há-de necessariamente comportar uma interpretação conforme à Constituição que se projecta no âmbito dos poderes de cognição dos tribunais, interpretação essa que resulta não apenas da garantia constitucional do recurso contencioso mas antes da conjugação desse parâmetro constitucional com o próprio princípio da legalidade tributária.
Ora, vistas as coisas neste enfoque, resultante da aludida conjugação dos dois parâmetros constitucionais, tem-se por seguro que a norma em crise não foi interpretada e aplicada no processo com o alcance atrás apurado.
Com efeito, é verdade que a norma em crise, ao recorrer a conceitos indeterminados enquanto conceitos jurídicos de enquadramento , cujo preenchimento vai depender da própria operação aplicativa ao caso por parte da Administração, à luz da concreta experiência e conhecimentos do aplicador, só não se há-se ter por violadora do princípio da legalidade tributária em virtude de a sua densificação normativa se poder considerar suficiente enquanto critério orientador, por um lado, da possível acção da Administração quando vistas as coisas na óptica dos particulares destinatários da norma, e por outro, dos próprios tribunais quando chamados a controlar o uso de tais conceitos pelo aplicador. Mas este entendimento pressupõe que a existência e a amplitude deste tipo de controlo jurisdicional deva ser tal que, por assim dizer, minimize os riscos que advêm para as posições jurídicas subjectivas do uso de conceitos indeterminados cujo preenchimento vai repousar na própria actuação da Administração.
Neste contexto, a indissociabilidade da garantia decorrente do princípio da legalidade tributária e da garantia do recurso contencioso traduz-se em que aos tribunais compete não somente a verificação dos pressupostos de aplicação da norma ao caso, mas também a correcção da interpretação da norma e a observância do princípio da proporcionalidade nessa aplicação, expressa não apenas no respeito do fim da norma mas também na correcção da adequação do meio ao resultado, ou seja, do 'iter' lógico seguido pela Administração na valoração dos elementos da situação concreta e da correcção interna dos raciocínios lógico-discursivos que presidiram à sua aplicação ao caso. Este, pois, será o sentido da norma que se mostra conforme com a Constituição.
Ora, não tendo sido este o entendimento acolhido na decisão recorrida, que se quedou pela mera verificação da existência dos pressupostos de facto de aplicação da norma, e tendo sido expressamente excluída a sindicabilidade dos demais elementos atrás referidos, tem-se tal interpretação do § 2º do artigo
114º do Código da Contribuição Industrial por atentatória da Lei Fundamental, especificamente por violação conjugada dos preceitos constantes do artigo 106º, nº 3 (princípio da legalidade tributária ) e 268º, nº 3 ( garantia do recurso contencioso) da Constituição, na redacção decorrente da revisão constitucional de 1982.
16. Importa agora curar da segunda questão de constitucionalidade colocada pela recorrente e que se tem por compreendida no objecto do presente recurso: a da conformidade constitucional do § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial na parte respeitante à notificação aos interessados dos actos em causa.
A recorrente entende, como já atrás se referiu, que o § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, ao mandar notificar o contribuinte da nova matéria colectável, sem exigir a notificação da fundamentação da respectiva decisão, corresponde à aplicação de um normativo inconstitucional, porque contrário ao disposto no nº 2 do artigo 268º da Constituição [ na redacção decorrente da revisão constitucional de 1982, actualmente nº 3 do mesmo preceito, com alterações de redacção decorrentes da revisão constitucional de
1989 ].
O parâmetro constitucional em causa dispõe que 'os actos administrativos de eficácia externa estão sujeitos a notificação aos interessados, quando não tenham de ser oficialmente publicados, e carecem de fundamentação expressa quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos'.
Só que este preceito constitucional foi introduzido no nosso ordenamento apenas na revisão constitucional de 1982, aprovada pela Lei Constitucional nº
1/82, de 30 de Setembro, pelo que, tendo o acto de notificação em causa operado em 15 de Julho de 1982 e sendo esse o momento relevante para apreciar os condicionalismos de aplicação da norma impugnada na parte em que se projecta sobre o regime de notificação e fundamentação dos actos fiscais, evidente se torna que a aludida exigência constitucional quanto à fundamentação dos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos não poderia ter-se como impendendo sobre o referido acto de notificação à data da sua prática.
Não se podendo retirar do texto do artigo 268º da Constituição, na sua redacção originária, uma tal exigência quanto à fundamentação dos actos e não sendo a redacção do preceito emergente da revisão constitucional de 1982 aplicável ao caso em apreço, só se pode, portanto, concluir pela inexistência de violação da Constituição pela norma impugnada quando reportada a uma acto de notificação praticado em 15 de Julho de 1982.
III
Nestes termos o Tribunal Constitucional decide:
a) julgar inconstitucional a norma do § 2º do artigo 114º do Código da Contribuição Industrial, por violação das disposições conjugadas do nº 3 do artigo 106º e do nº 3 do artigo 268º da Constituição, na redacção decorrente da Lei Constitucional nº 1/82, e consequentemente,
b) conceder provimento parcial ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente julgamento de inconstitucionalidade.
Lisboa, 10 de Março de 1994
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida (com declaração)
José Manuel Cardoso da Costa (com declaração de voto)
Procº nº 238/89
1ª Secção Rel.Consº António Vitorino
DECLARAÇÃO DE VOTO
Afastei-me da fundamentação do acórdão essencialmente na parte em que se procedeu à 'delimitação' dos poderes de cognição do tribunal recorrido, ao estabelecer a interpretação confinada à Constituição da norma em causa numa dimensão tal que, em meu entender, pode afectar os efectivos poderes de cognição do tribunal 'a quo' enquanto tem de operar como conceitos indeterminados.
Efectivamente, a fls. 29 do acórdão, refere-se expressamente que 'forçoso
é reconhecer que ao estarmos perante um caso que incide sobre a delimitação dos poderes de cognição dos tribunais administrativos', logo aí se advertindo para as inerentes dificuldades de separação entre 'vícios imputáveis a normas jurídicas e vícios reportáveis às próprias decisões', reconhecendo-se a existência de 'zonas de sobreposição e de penumbra entre o que constitui estatuição normativa fornecida ao intérprete (e portanto susceptível de apreciação nesta sede de controlo de constitucionalidade), e que comporta uma determinada dinâmica interpretativa-aplicativa em si mesma também fiscalizável, e o que já representa valoração própria do órgão julgador exclusivamente imputável à latitude da própria conformação interna da decisão judicial'.
Porém, tomando como referência esta posição, acabou por se decidir algo que, também em meu entender, 'caminhou' através das referidas 'zonas de penumbra' e de sobreposição, atingindo o próprio âmbito de competência do tribunal recorrido, admitindo que seja legítimo o uso de conceitos indeterminados e a valorização da 'discricionariedade técnica' no julgamento de matérias administrativas e fiscais.
Com efeito, o recurso vem interposto de um acórdão do Pleno da Secção Tributária do STA que reconheceu que os tribunais tributários (neles incluída a
2ª secção, para tal efeito), declaram o âmbito da sua actividade cogniscitiva e decisória, para o que são competentes.
Não me parece que possa ser posta em causa, em sede de recurso de constitucionalidade esta decisão, sob pena de estar a modificar o sentido último conferido à actividade de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Como esta incide sobre 'normas' e não sobre decisões dos tribunais ou meros actos administrativos, parece-me evidente que ao tribunal que julga e aplica o direito ordinário há-de competir não só a verificação dos pressupostos de aplicação da norma ao caso, mas também a interpretação da mesma norma - aspectos estes submetidos manifestamente ao âmbito de controlo de constitucionalidade deste Tribunal.
Porém, no caso em apreço, tendo-se avançado no sentido de que a norma em causa era susceptível de uma interpretação conforme à Constituição, o Tribunal Constitucional decidiu que o tribunal recorrido só faria tal interpretação conforme à Constituição desde que averiguasse do 'iter' lógico seguido pela Administração na valoração dos elementos da situação concreta e da correcção interna dos raciocínios lógico-discursivos que presidiram à sua aplicação ao caso', fixando-se, assim, por forma inalterável que era este o sentido da norma conforme à Constituição.
Ora, do que afinal se trata é de saber se o tribunal recorrido colocado perante um recurso de um acto administrativo que decidiu reclassificar a recorrente, passando-a do Grupo A para o Grupo B da Contribuição Industrial, com fundamento em 'impossibilidade de controlar a matéria colectável, por dúvidas fundadas' podia e devia ir analisar a factualidade subjacente à aplicação deste
'conceito indeterminado', 'da impossibilidade de controlo da matéria colectável' por dúvidas fundadas.
Entendo que, o Tribunal que aplica o direito ordinário colocado perante a utilização pela Administração de conceitos indeterminados ou de matéria incluída no domínio da discricionaridade técnica não pode ver a sua competência de julgamento na utilização de tais conceitos limitada - mesmo por virtude de uma interpretação conforme à Constituição - no seu âmbito de cognição, vendo este pré-determinado pelo Tribunal Constitucional, por uma forma que lhe retira toda e qualquer margem de liberdade de tal apreciação.
Ora, a decisão em causa ao impôr como único sentido conforme à Constituição por parte de determinada norma um sentido tal que retira necessariamente ao Tribunal aplicador do direito ordinário a possibilidade de utilização de conceitos indeterminados ou de utilização de uma margem de
'discricionariedade técnica', está a movimentar-se em terrenos específicos da jurisdição ordinária vedados ao julgador constitucional e, nesta medida, afasto-me da fundamentação do acórdão.
Vítor Nunes de Almeida
Proc. nº 238/89
Declaração de voto
Propendi a pensar que não estavam reunidos, no caso, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto para este Tribunal, e isso por duas razões: - quer por não me parecer que a inconstitucionalidade da norma do artigo 114º, § 2º, do Código da Constituição Industrial haja sido arguida, eo nomine, 'durante o processo'; - quer por se me afigurar, face ao contexto global das diferentes intervenções processuais da recorrente, que esta, mais do que o conteúdo duma 'norma legal', impugnou fundamentalmente, sim, a 'decisão' ou
'decisões' judiciais com que foi confrontada.
Superada, todavia, esta 'questão prévia', e no tocante ao fundo, sinto dificuldade em acompanhar o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal. Por seguro, tenho que seria inconstitucional uma interpretação da norma em apreço (ou desta combinada com outras, do mesmo diploma, relativas às garantias processuais de defesa do contribuinte) que excluísse do âmbito do recurso contencioso, sem mais, a possibilidade de controlo da verificação dos pressupostos da tributação dos contribuintes do Grupo A da antiga Contribuição Industrial pelo respectivo Grupo B; mas já se me afigura duvidoso que, reconhecida, nesses genéricos termos, tal possibilidade, seja necessário acrescentar algo mais, para que fique salvaguardada a garantia do artigo 268º, nº 4 (antes, nº 3), da Constituição. José Manuel Cardoso da Costa