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Proc. nº 630/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O Tribunal de Trabalho de Leiria enviou carta precatória ao Tribunal Judicial da comarca de Alcobaça para penhora da executada A., com sede na Rua -----------, em -------------a. Essa carta deu entrada na secretaria deste último tribunal em 28 de Setembro de 1992 e sobre ela recaiu o despacho de fls. 3, através do qual o Tribunal Judicial de Alcobaça se considerou incompetente em razão da matéria e do território para o cumprimento da referida deprecada. Essa decisão sobre a incompetência do tribunal deprecado teve como fundamento a desaplicação, por inconstitucionalidade orgânica, da norma do art. 26º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, na redacção introduzida pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, na linha do decidido pelo Acórdão nº 139/92 da 1ª Secção do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II Série, nº 192, de 21 de Agosto de 1992). Em virtude desta desaplicação, o tribunal deprecado considerou competente para proceder às diligências de penhora de bens o tribunal deprecante, atendendo a que a inconstitucionalidade do referido preceito determinaria a aplicação da anterior redacção do art. 26º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, conjugada com o disposto no Regulamento da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Decreto-Lei nº
214/88, de 17 de Junho).
Notificado deste despacho, dele interpôs o Magistrado do Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art.
70º, nº 1, alínea a), da respectiva Lei Orgânica. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 5.
2 - Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Foram apresentadas alegações pela entidade recorrente, nas quais se sustentou que 'a norma constante do nº 1 do artigo 26º do Código de Processo do Trabalho, na redacção do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, é organicamente inconstitucional por incidir sobre matéria contida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e ter sido editada pelo Governo sem a necessária autorização legislativa (artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição)' (a fls. 14).
3 - O Relator entendeu apresentar o processo à conferência, com dispensa de vistos, nos termos do art. 707º, nº 3, do Código de Processo Civil, disposição aplicável por força do art. 69º da Lei do Tribunal Constitucional.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
II
4 - Na fundamentação da presente decisão, seguir-se-á de perto o que se escreveu no referido Acórdão nº 139/92 deste Tribunal.
5 - A primeira Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais
(Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro) deu execução aos preceitos da Constituição de
1976 (nºs 1 e 2 do art. 212º) que pressupunham que os tribunais de trabalho passassem a integrar-se na ordem dos tribunais judiciais, por não preverem já uma jurisdição especial de trabalho, tal como ocorria na vigência da Constituição de 1933.
O primeiro Código de Processo de Trabalho post-constitucional foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 537/79, de 31 de Dezembro, mas não chegou a entrar em vigor. Nos termos do seu art. 25º, as citações e notificações que não pudessem ou não devessem ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tivessem de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal da causa tivesse a sua sede, seriam solicitadas 'ao tribunal competente em matéria de trabalho na respectiva área ou à autoridade administrativa ou policial territorialmente competente'.
6. - O Código de 1963 só veio a ser substituído em 1 de Janeiro de 1982, em virtude da entrada em vigor nessa data do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 272-A/81, de 30 de Setembro.
Passou então a dispor este Código no seu art. 26º:
'As citações e notificações que não possam ou não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal da causa tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal competente em matéria de trabalho na respectiva área ou
à autoridade administrativa ou policial territorialmente competente'.
A coincidência entre a redacção do art. 25º do Código de 1979 - que, repete-se, não chegou a vigorar - e a do art. 26º do Código de
1981 é total.
Relativamente à vigência desta redacção e da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1977 e seu regulamento, refere Alberto Leite Ferreira o seguinte:
'Na primeira fase [isto é, até à publicação do Decreto-Lei nº 214/88, de 17 de Junho, que regulamentou a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987], duas situações havia ainda a considerar:
a) - na comarca alheia onde a diligência tinha de efectuar-se havia tribunal competente em matéria de trabalho ou
b) - não havia tribunal com competência em matéria de trabalho. Verificada a primeira situação, a citação, notificação ou outra qualquer diligência - penhora, por exemplo - que não pudesse ser feita por via postal, tinha de ser efectuada, a solicitação do juízo da causa,
a) - pelo tribunal com jurisdição na área em matéria laboral ou
b) - pela autoridade administrativa ou policial com competência na mesma área. Se, porém, se verificava a segunda situação na área onde a diligência devia ser cumprida não havia tribunal com competência em matéria de trabalho - o cumprimento da diligência, porque não havia aí tribunal competente em matéria de trabalho e não era legalmente possível fazer intervir tribunal desprovido dessa competência, teria de ser pedido à autoridade administrativa ou policial que, do ponto de vista do território, fosse competente'. (ob. cit, pág. 116)
Na jurisprudência eram sustentadas duas teses divergentes: uma considerava competentes os tribunais de competência genérica, salvo se na sua sede houvesse um tribunal de trabalho; outra defendia a competência do tribunal de trabalho em cuja área de competência territorial se incluísse a comarca onde devia ser realizada a diligência.
7. - A segunda Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais publicada em 1987 (Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro) só entrou em vigor em 1988, salvo o caso de certos artigos que entraram imediatamente em vigor (art. 108º, nº 5). Essa entrada em vigor coincidiu com a publicação do seu regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 214/88, de 17 de Junho. Os tribunais de trabalho continuaram a ser caracterizados como tribunais judiciais de competência especializada (arts. 64º a 67º). O Decreto-Lei nº 214/88 veio, porém, a conferir maior autonomia aos tribunais de trabalho, os quais passaram a funcionar 'como tribunais de competência especializada em todo o país e com uma área de jurisdição tendencialmente idêntica à do respectivo círculo judicial, à excepção da Região Autónoma dos Açores, cuja especificidade geográfica não aconselhou a autonomização destes tribunais' (preâmbulo desse diploma).
A partir desta solução legislativa, Alberto Leite Ferreira sustentou que os tribunais judiciais de competência genérica deixavam de poder executar cartas precatórias emitidas pelos tribunais de trabalho ou praticar outras diligências, a solicitação destes. Tal posição permitia a este comentador afirmar o seguinte:
'Em face destas novas realidades, o problema das notificações ou realização de outras diligências, a que se refere o art. 26º em nota, sofre, naturalmente, algumas alterações.
E isto porque na interpretação daquele preceito, as expressões 'quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal da causa tem a sua sede' devem ser entendidas como se dissessem
'quando tenham de ser efectuadas em área de jurisdição diferente daquela em que o tribunal da causa tem a sua sede'; e, depois, porque as expressões 'tribunal competente em matéria de trabalho' devem tomar-se no seu sentido restrito de
'tribunal de trabalho' propriamente dito ou stricto sensu.
Desta maneira, a autonomização dos tribunais de trabalho como tribunais de competência especializada em todo o país e a coincidência tendencial das áreas dos tribunais de trabalho e dos círculos judiciais encontram plena satisfação.
Tudo se passará, agora, como se o art. 26º em nota tivesse a seguinte redacção:
'As citações e notificações que não possam ou não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em área de jurisdição diferente daquela em que o tribunal da causa tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal de trabalho na respectiva área ou à autoridade administrativa ou policial territorialmente competente.'
Assim sendo, se uma qualquer diligência das previstas no preceito em nota tiver de ser efectuada em área alheia à jurisdição do tribunal da causa, a sua realização terá de ser feita, a solicitação deste juízo,
a) pelo tribunal do trabalho com jurisdição sobre essa área;
b) pela autoridade administrativa ou policial territorialmente competente.
Embora de aplaudir, a nova orientação ainda não é aquela que melhor pode corresponder às exigências da justiça e ao respeito pelo acesso dos trabalhadores aos tribunais e ao direito do trabalho' (ob. cit., pág. 117)
Daí que este autor preconizasse 'uma medida legislativa urgente que ponha termo a tais situações [referência a casos em que a sede do tribunal de trabalho está situada a distância considerável do lugar onde deve ser praticada a diligência requerida por outro tribunal de trabalho], o que poderá conseguir-se se aos tribunais de trabalho for atribuída competência para solicitar aos tribunais da comarca, o cumprimento, em determinadas circunstâncias, de diligências de citação e notificação. O que poderá conseguir-se se ao artigo 26º em anotação se der uma redacção semelhante à do correspondente artigo 34º do Código de 1963' (ob cit, pág. 118).
8. - O legislador foi sensível a este apelo, vindo a dar nova redacção ao art. 26º do Código de Processo de Trabalho, através do art.
1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro.
Do seu preâmbulo resulta que se aproveitou a oportunidade de fazer alterações pontuais a este diploma 'para esclarecer as dúvidas que têm surgido relativamente à questão da competência para o cumprimento de deprecadas, cujas diligências devem ter lugar em comarcas onde não haja tribunais de trabalho'.
A norma desaplicada no acórdão recorrido é a que consta do nº 1 da nova redacção daquele artigo. Passa aí a dispor-se:
'As citações e notificações que não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal do trabalho sediado naquela comarca, se o houver, e, não o havendo, ao tribunal de competência genérica com sede naquela comarca ou ainda, em qualquer destes casos, à autoridade administrativa ou policial territorial competente'.
9. - O Decreto-Lei nº 315/89 foi publicado pelo Governo no uso da competência legislativa atribuída pela alínea a) do nº 1 do art. 201º da Constituição, isto é, no uso da competência de elaboração de
'decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República'. Porém, deve ter-se em conta que cabe na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a elaboração de leis sobre 'organização e competência dos tribunais' (1ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 168º da Constituição).
O diploma de 1989, na parte em que altera o art. 26º, assume confessadamente natureza interpretativa, pretendendo determinar autenticamente o sentido da versão anterior do art. 26º do Código de Processo de Trabalho de 1981. Simplesmente, tal interpretação autêntica só poderia ser empreendida pela Assembleia da República ou pelo Governo autorizado por esta, se a matéria de competência dos tribunais constituir, toda ela, reserva relativa daquele órgão parlamentar. É que, como se escreveu no acórdão nº 32/87 deste Tribunal:
'Basta considerar que, seja qual for a índole da lei interpretativa em causa, a interpretação autêntica, isto é, a fixação obrigatória (para todos os operadores jurídicos) do sentido de uma norma, feita pelo «legislador» - é algo que integra o próprio exercício da função normativa, e portanto, tratando-se de leis em sentido formal, da função legislativa (era neste sentido que nos velhos diplomas constitucionais portugueses se definia esta função como a de «fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las»). Assim, só tem legitimidade para tal interpretação - ou seja, para impor a injunção nesta contida - o próprio autor da norma interpretada, isto é, o órgão que detém competência para, ab initio, produzi-la. O que significa - necessária e obviamente - que, em se tratando de normas que versem sobre matéria da competência reservada da Assembleia da República, só esta ou o Governo por ela autorizado podem interpretá-las autenticamente'. (in Diário da República, II Série, nº 81, de 7 de Abril de 1987; a mesma doutrina foi reafirmada nos Acórdãos nºs 157/88 e
372/91, ambos publicados na 1ª Série do jornal oficial, nºs 171, de 26 de Julho de 1988, e nº 256, de 7 de Novembro de 1991, respectivamente).
Assim sendo, terá de se averiguar se as soluções inovatórias em matéria de competência dos tribunais cabem ou não na competência reservada da Assembleia da República, visto que, em caso de interpretação autêntica, existe por natureza inovação, uma vez que o legislador pretende ultrapassar, em regra, divergências interpretativas, fixando, em qualquer caso, sentido normativo que deve valer desde o início da vigência da norma interpretada (cfr. art. 13º, nº 1, do Código Civil). Tal carácter inovatório é, aliás, acentuado nas alegações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto:
'Embora a norma em causa se arrogue a natureza de norma interpretativa, é irrecusável que a solução legislativa nela consagrada envolve alteração quer da competência material dos tribunais comuns quer da competência territorial dos tribunais de trabalho.
Enquanto, por força do art. 26º do Código de Processo de Trabalho, na sua versão originária, o tribunal competente para o cumprimento de deprecadas emanadas de processos do foro laboral era o tribunal competente em matéria de trabalho com jurisdição na área onde devesse ser praticado o acto deprecado, o nº 1 do artigo 26º do mesmo diploma, na redacção do Decreto-Lei nº
315/89, veio atribuir competência para o cumprimento de deprecadas do tribunal de competência genérica sediado na comarca onde tiver de praticar-se o acto, excepto se nessa comarca estiver sediado um tribunal de trabalho' (a fls. 30 e
31 dos autos).
10. - Importa, por isso, ver qual o âmbito coberto pela reserva relativa da Assembleia da República, em matéria de competência dos tribunais (al. q) do nº 1 do art. 168º da Constituição).
Decorre da formulação utilizada por esta alínea do nº
1 do art. 168º da Constituição - quando confrontada com outras alíneas do mesmo número e artigo, nomeadamente com as alíneas d), e), f ou g) - que cabe na competência reservada da Assembleia toda a matéria de organização e competência dos tribunais. Nesse sentido se tem pronunciado sempre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora não de forma unânime, a qual não tem aceite a formulação mais restritiva sugerida no Parecer nº 4/81 da Comissão Constitucional, segundo a qual poderia estar 'reservada à Assembleia da República apenas a fixação dos princípios básicos de competência, os grandes quadros de competência que integram a organização judiciária (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, pág. 259). Em numerosos acórdãos do Tribunal Constitucional tem sido acolhida a interpretação dos comentadores Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, Coimbra, 1985 págs. 197 a 199 e 202), de que na reserva relativa cabe toda a matéria de organização e competência dos tribunais (cfr. Acórdãos nºs 25/88, 3/89 e 356/89, publicados no Diário da República, II Série, nº 106, de 7 de Maio de 1988, nº 85, de 12 de Abril de 1989, e I Série, nº
118, de 23 de Maio do mesmo ano, respectivamente), só não cabendo na reserva as modificações de competência judiciária que decorrem da adopção de uma certa forma processual (Acórdão nº 404/87, in Diário da República, II Série, nº 202, de 21 de Dezembro de 1987, solução adoptada subsequentemente em múltiplos arestos tirados em matéria de colonia).
Seja como for, e mesmo nesta questão tão restrita de execução de cartas precatórias para citações ou notificações e outros actos processuais, sempre se há-de considerar relevante que a norma desaplicada pelo tribunal recorrido modifique regras de competência em razão da matéria, afectando tribunais de competência genérica e tribunais especializados, do mesmo passo que é também modificada a área territorial de competência dos próprios tribunais de trabalho, fixada anteriormente à modificação de 1989 pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987 e seu Regulamento.
Daí a conclusão de que o art. 1º do Decreto-Lei nº
315/89, de 21 de Setembro, na parte em que alterou a redacção do art. 26º do Código de Processo de Trabalho, é organicamente inconstitucional, por violação da alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição.
II
11. - Nestes termos e pelas razões expostas, decide-se negar provimento do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa, 26 de Novembro de 1992
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida (vencido nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão nº 139/92, deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 21.08.1992)
José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração junta ao Acórdão nº 139/92).
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920374.html ]