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Processo n.º 58/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O recorrente A., condenado a uma pena de 150 dias de multa pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal da Relação do Porto que conhecera da alegada extinção do procedimento criminal de forma que lhe fora desfavorável, tendo, a concluir a respectiva motivação, para o que ora releva, afirmado:
“[…] atendendo não somente ao conteúdo literal do artigo 113° da Lei 64-A/2008, de 29 de Dezembro, mas também e fundamentalmente ao pensamento legislativo e à unidade do sistema jurídico (nos termos do disposto no artigo 9° n.°s 1 e 2 do C. Civil), deve concluir-se que a alteração introduzida pelo artigo 113° se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, recorrendo-se desta forma a uma interpretação extensiva da dita disposição legal.
24. A decisão recorrida, ao limitar-se a uma interpretação literal do artigo 113° da Lei 64-A/2008, concluindo pela sua não aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social e assim decidindo indeferir a requerida extinção do procedimento criminal por despenalização, violou o referido artigo 113° da Lei 64-A/2008.
25. Violou também o artigo 18°, n.° 2 da CRP, que contém o critério jurídico-constitucional da definição material do bem jurídico-penal, critério esse que vincula o legislador ordinário na sua tarefa de determinação concreta dos bens jurídico-penais, através da criminalização de determinadas condutas.
26. E viola ainda o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado (artigo 13° CRP), porquanto estabelece uma diferenciação jurídica sem um fundamento razoável […]”.
2. Por acórdão daquele Supremo Tribunal, de 17 de Dezembro de 2009, foi negado provimento ao recurso. É desta decisão que vem interposto o presente recurso, através de requerimento que, no essencial, diz o seguinte:
“[...] notificado do acórdão proferido, e não se conformando com o seu teor, vem junto de V. Ex., ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1 do art. 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL.
Pelo presente pretende o recorrente a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 113º da Lei 64-A/2008, de 29 de Dezembro, quando interpretado no sentido de que a alteração aí prevista ao artigo 105º da Lei 15/2001 de 05/06 não se aplica extensivamente ao artigo 107º do mesmo diploma legal, por violação dos artigos 18º n.º 2 e 13º da Constituição da República Portuguesa.
Tal inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação de 03/06/2009”.
3. Determinada a produção de alegações, o recorrente reiterou no essencial o que já havia dito na motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal tendo concluído, para o que ora importa, do seguinte modo:
“[...] 13. Uma interpretação literal do artigo 113º da Lei 64-A/2008 que leva a que se conclua, como no acórdão recorrido, pela sua não aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo que um tal resultado interpretativo viola o artigo 18º, n.º 2 da CRP, que contém o critério jurídico-constitucional da definição material do bem jurídico-penal - critério esse que vincula o legislador ordinário na sua tarefa de determinação concreta dos bens jurídico-penais, através da criminalização de determinadas condutas.
14. Viola ainda o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado (artigo 13º CRP), porquanto estabelece uma diferenciação jurídica sem um fundamento razoável. Ou seja, sem qualquer fundamento sério, considera despenalizada a não entrega, parcial ou total, à administração fiscal de prestação inferior ou igual a 7.500€, deduzida nos termos da lei e relativamente à qual existe obrigação legal de entrega e considera não despenalizada a não entrega, parcial ou total, pelas entidades empregadoras às instituições de segurança social das contribuições deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais por estes legalmente devidas[...]”
4. O Ministério Público, contra-alegando, levantou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso com fundamento, em primeiro lugar, no facto de o recorrente ter questionado o “processo normativo” e, em segundo lugar, em virtude de o mesmo não ter suscitado uma questão de constitucionalidade normativa mas ter antes questionado a constitucionalidade da decisão do Tribunal da Relação do Porto. No que toca ao mérito do recurso, o Ministério Público sustenta, em síntese, que a norma contida no artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008 não contende com os princípios da proporcionalidade e da igualdade.
5. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio o recorrente sustentar a sua improcedência.
II – Fundamentação
6. Suscitada a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, há que começar por resolver essa questão. Vejamos.
Nos termos do artigo 72º, nº 2, da LTC, o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma respeita à constitucionalidade de normas jurídicas e só pode ser interposto “pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade […] de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida […]”. Quer isto dizer, em síntese, que a admissibilidade do recurso ali previsto depende, designadamente, de vir adequadamente colocada pelo recorrente uma questão de constitucionalidade normativa e de o mesmo ter confrontado o tribunal a quo, antes de ter sido proferida a decisão recorrida, com a questão da inconstitucionalidade da norma – ou, se for o caso, da interpretação normativa – que, nos termos do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pretende ver apreciada. Ora, nos presentes autos, é manifesto que tal se não verifica, como sumariamente se demonstrará já de seguida.
É desde logo evidente que a forma como o recorrente suscitou a questão de constitucionalidade ao tribunal “a quo” não corresponde à formulação de qualquer questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, o que o recorrente questiona do ponto de vista da sua constitucionalidade não é, manifestamente, uma norma, mas os termos como, no seu caso, foi efectivamente interpretado e aplicado o artigo 113° da Lei n.º 64-A/2008, de 29 de Dezembro. Isso mesmo resulta evidente da forma como surge concretizada na motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, acima transcrita, a alegada inconstitucionalidade que pretende ver apreciada: “A decisão recorrida … violou o referido artigo 113° da Lei 64-A/2008”; “Violou também o artigo 18°, n.° 2 da CRP”; “E viola ainda o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado (artigo 13° CRP)”. É nítido que o recorrente reportou sempre à decisão judicial obtida a infracção de princípios constitucionais. Nunca o fez em relação à norma ou a sentidos ou interpretações normativas extraídas do artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008 pelo tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Ora, não tendo a questão de constitucionalidade normativa sido colocada, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, não está aberta via de recurso para este Tribunal, não podendo a ausência de tal pressuposto de admissibilidade do recurso ser substituído por qualquer exercício linguístico, efectuado no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade ou nas alegações produzidas neste Tribunal, tendente a transformar a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade da decisão judicial na suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Em face do exposto, torna-se evidente que não estão preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso para este Tribunal, pelo que dele se não pode conhecer.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Julho de 2010. – Gil Galvão – Maria João Antunes – José Borges Soeiro – Rui Manuel Moura Ramos.