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Proc. nº 288/91
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. - A., solteiro, -------------, residente na freguesia de -----------------, do concelho e comarca de --------------------, foi detido pela Guarda Nacional Republicana no dia 1 de Maio de 1991, pelo facto de, nesse dia e pelas dezoito horas e dez minutos, ir a conduzir em
------------, lugar daquela freguesia e concelho, o veículo automóvel de matrícula ---------, pertencente a uma sociedade comercial, sem que estivesse habilitado a conduzir viaturas automóveis, não tendo, por isso, licença de condução.
Veio a ser acusado pelo Ministério Público e julgado em processo sumário no tribunal da comarca de Mesão Frio no dia seguinte, tendo-lhe sido nomeado defensor oficioso um escrivão do tribunal. Confessou espontaneamente a contravenção de que vinha acusado, prevista no art.
46º, nº 1, do Código da Estrada e punida pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril.
O Senhor Juiz da comarca de Mesão Frio condenou o arguido pela prática da infracção atrás referida, recusando-se, porém, a aplicar a punição constante do art. 1º do Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, por considerar a correspondente norma ferida de inconstitucionalidade. Em função dessa recusa, veio a condená-lo nos termos previstos na norma punitiva anteriormente vigente, e assim repristinada, o art. 46º, nº 1, do Código de Estrada, na redacção actualizada pelo Decreto-Lei nº 240/89, de 26 de Julho, aplicando-lhe as seguintes penas parcelares: pena de 105.000$00 de multa e pena de 15 dias de prisão, a qual, nos termos do art. 43º do Código Penal, foi substituída por igual tempo de multa à taxa diária de 350$00, tendo como alternativa 10 dias de prisão. Consequentemente, foi-lhe aplicada a pena única de multa no montante de 110.250$00, tendo como alternativa 10 dias de prisão.
Relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada nesta decisão, pode ler-se na mesma:
'O citado artigo 1º do Dec-Lei 123/90 veio aumentar, significativamente, o limite máximo da pena de prisão aplicável, passando para um ano onde antes era de seis meses e de um mês, consoante houvesse, ou não, reincidência.
«Ora a prisão contende com o direito à liberdade, que é um dos 'direitos, liberdades e garantias' dos cidadãos (art. 27º C.R.P.). Sucede que a matéria dos direitos, liberdades e garantias era (e é) também matéria da competência legislativa reservada da A.R.» (nos termos do artigo 168º nº 1 b), da Constituição da República) - Ac. do Tribunal Constitucional de 6.6.84, BMJ
348, pág. 249.
Por isso se diz no Ac. Trib. Const. nº 56/84, D.R. I Série de 9.9.84, que é «da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo ... definir contravenções puníveis com pena de prisão e modificar o quantum desta» e que é «da competência concorrente da Assembleia da República e do Governo ... definir, dentro dos limites gerais do regime geral, contravenções não puníveis com a pena restritiva de liberdade ... e modificar a sua punição» [...].
Assim, deve ter-se por pacífico que estamos perante matéria da reserva da competência da Assembleia da República e que o Governo não podia ocupar-se dela sem autorização legislativa'. (a fls. 4 e vº dos autos)
Fixado este quadro de repartição de competências entre a Assembleia da República e o Governo, o Senhor Juiz de Mesão Frio passou a analisar as circunstâncias em que foi elaborado o Decreto-Lei nº 123/90, ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 31/89, de 23 de Agosto. Começou por notar que esta última lei autorizava o Governo a definir o tipo legal de crime de condução de veículos automóveis por quem não se encontrasse devidamente habilitado, mas que o Governo manteve a qualificação da infracção como contravenção, embora agravando o limite máximo da pena de prisão aplicável, opção esta que não acarretava, só por si, quaisquer consequências em matéria de constitucionalidade, em sua opinião. Simplesmente, o diploma autorizado, apesar de aprovado em Conselho de Ministros dentro do prazo de validade temporal fixado na lei de autorização legislativa, fora publicado no jornal oficial cerca de um mês e meio depois de se ter esgotado o prazo de 180 dias fixado no Lei nº 31/89. Depois de referir a jurisprudência da Comissão Constitucional na matéria, o Senhor Juiz concluiu que o momento relevante, para determinar se o prazo constante da autorização legislativa fora ou não obedecido, tinha de ser o da publicação do diploma no jornal oficial:
'Nos termos do artigo 122º nº 1 c) da Constituição da República, os decretos-leis têm que ser publicados no Diário da República. A falta de publicação implica a sua ineficácia jurídica, artigo 122 - nº 2 CRP.
Então, terá, necessariamente, que se concluir que o legislador constitucional estabeleceu, como momento conclusivo do processo legislativo, o da sua publicação e que sem esta ainda não se praticou o acto de legislar [...].
Acresce que até ocorrer a publicação pode o Governo, por qualquer motivo, desistir de legislar no sentido que havia feito, voltando atrás em relação à aprovação já realizada em Conselho de Ministros, não chegando assim a publicar o decreto.
Finalmente, há que referir que está sempre em aberto a possibilidade do Presidente da República utilizar o seu direito de veto, do qual pode resultar que o decreto aprovado em Conselho de Ministros nunca chegue a tornar-se em Lei (no sentido amplo), pelo que, de modo algum, se pode considerar esta aprovação em Conselho de Ministros como o momento final do processo legislativo [...].
7º
Aqui chegados, dúvidas não restam quanto à inconstitucionalidade orgânica da pena de prisão prevista no artigo 1º do Dec-Lei 123/90. Mas a questão que agora se coloca é a [de] saber que esse vício existe em todo aquele artigo ou só naquela parte.
Esta norma estabeleceu (também) uma nova punição em termos de pena de multa. Antes daquele diploma a pena de multa com que se punia a «condução sem carta» era fixada em quantia. Com o Dec-Lei 123/90 essa multa passou a estar fixada em dias.
Ora, como resulta do artigo 46º nº 3 C. Penal, às multas fixadas em dias cabe (sempre) pena de prisão em alternativa. Assim, quando um tribunal condena um cidadão numa pena de multa fixada em dias, condena-o também em pena de prisão em alternativa. E, não é por a pena de prisão ter um carácter subsidiário ou alternativo [que] ela deixa de poder vir a ocorrer.
No entanto, tal nunca poderá verificar-se quando a contravenção é punível com pena de multa fixada em quantia. Pois, como é jurisprudência uniforme do S.T.J., a estas penas de multa não cabe prisão alternativa.
Então, conclui-se que esta modificação introduzida na pena de multa implica que com o Dec.-Lei 123/90 se possa vir a cumprir pena de prisão onde antes tal não podia ocorrer'. (fls. 5 vº a 7).
Em função destas considerações, o Senhor Juiz considerou que todo o art. 1º do Decreto-Lei nº 123/90 estava irremediavelmente ferido de inconstitucionalidade orgânica, 'na medida em que o Governo legislou em matéria da exclusiva competência da Assembleia da República, - art. 168º, nº
1 b) com referência ao artigo 27º, ambos da CRP, sem para tal estar devidamente autorizado. Pois, a lei de autorização legislativa nº 31/89 já havia caducado no momento em que é publicado o Dec.-Lei 123/90' (fls. 7 vº).
Desta sentença interpôs o agente do Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art.
70º, nº 1, alínea a), da lei desse Tribunal, o qual foi admitido por despacho de fls. 12. Foi nomeado advogado oficioso ao arguido no mesmo despacho.
2. - Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, tendo apresentado alegações apenas o Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
Formulou as seguintes conclusões nessa peça processual, em que pede que seja dado provimento ao recurso:
'1º Para que uma autorização legislativa seja utilizada dentro do prazo da respectiva duração basta que, antes de o mesmo expirar, o Governo haja aprovado, em Conselho de Ministros, o correspondente decreto-lei, sendo irrelevante que este só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além do termo do prazo;
2º - Assim, o Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, aprovado em Conselho de Ministros de 15 de Fevereiro de 1990, foi-o antes de expirado o prazo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 31/89, de 23 de Agosto.
3º - Não sofre, por isso, de inconstitucionalidade orgânica a norma do artigo 1º desse Decreto-Lei, que pune com prisão até um ano ou multa até 120 dias quem conduzir veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado'.
(fls. 26-27)
3. - Foram corridos os vistos legais.
Por não existir motivo que impeça o conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II
4. - Importará referir em primeiro lugar os termos da autorização legislativa constante da Lei nº 31/89, de 23 de Agosto.
As normas relevantes dispõem o seguinte:
'Artigo 1º - É concedida ao Governo autorização para legislar em matéria de segurança rodoviária.
Art. 2º - No caso da autorização concedida nos termos do artigo anterior, pode o Governo:
----------------------------------------------
c) Definir o tipo legal de crime de condução de veículos automóveis, motociclos, ciclomotores e velocípedes, nas vias públicas ou equiparadas, por quem não se encontre devidamente habilitado para o efeito;
d) Estabelecer sanções acessórias, nos moldes autorizados pela Constituição, para as contravenções previstas no Código da Estrada e respectivas normas regulamentares;
Art. 3º - A presente autorização legislativa visa:
-----------------------------------------
c) Sancionar a condução de quaisquer veículos na via pública ou equiparada por quem se não encontrar devidamente habilitado para o efeito.
Art. 4º - A autorização concedida pela presente lei tem a duração de 180 dias, contados da data da sua entrada em vigor.'
Não constando da lei nenhuma norma sobre a respectiva entrada em vigor, pode sustentar-se que tal entrada ocorreu no quinto dia, a contar da data da publicação, ou seja, após a vacatio legis prevista no art. 2º, nº 1, da Lei nº 6/83, de 29 de Julho. A Lei nº 31/89 entrou, assim, em vigor em 28 de Agosto de 1989, a menos que se sustente que as leis de autorização legislativa não têm vacatio legis, como é, por vezes, defendido na doutrina.
Tendo a autorização legislativa concedida pela mesma lei a duração de 180 dias 'contados da data da sua entrada em vigor', o termo deste prazo veio a ocorrer em 24 de Fevereiro de 1990 (cfr. art. 279º, alínea b), do Código Civil, aplicável por força do art. 296º do mesmo diploma). Para quem sustente que não haveria vacatio legis nesse caso, o prazo viria a terminar em 19 de Fevereiro de 1990.
5. - O Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, foi elaborado pelo Governo, nos termos do art. 201º, nº 1, alíneas a) e b), da Constituição, invocando-se no diploma que tal elaboração foi feita ' no uso da autorização legislativa concedida pelas alíneas c) e d) do artigo 2º da Lei nº
31/89, de 23 de Agosto'.
Da parte final deste decreto-lei constam as seguintes indicações:
- aprovação em Conselho de Ministros de 15 de Fevereiro de 1990;
- promulgação em 2 de Abril de 1990;
- referenda em 5 de Abril de 1990.
Verifica-se, assim, que só a aprovação em Conselho de Ministros ocorreu antes do termo do prazo da autorização legislativa, seja ele o dia 19 ou o dia 24 de Fevereiro de 1990. A promulgação, a referenda e a publicação tiveram lugar após 19 ou 24 de Fevereiro de 1990.
Dispõe o art. 1º do Decreto-Lei nº 123/90:
'Quem conduzir veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado, nos termos do artigo 46º do Código da Estrada, será punido com prisão até um ano ou multa até 120 dias.'
Por outro lado, o art. 12º deste diploma revogou o
'penúltimo parágrafo do nº 1 do artigo 46º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39672, de 20 de Maio de 1954'.
6. - Anteriormente, dispunha o art. 46º, nº 1, do Código da Estrada, com as alterações de valores de multas introduzidas pelo art.
2º, alínea g), do Decreto-Lei nº 240/89, de 27 de Julho, sob a epígrafe
'habilitação legal para conduzir:
'Só poderão conduzir veículos automóveis nas vias públicas:
a) Os titulares das cartas de condução a que se refere o artigo seguinte, bem como das que forem passadas pelos serviços competentes das regiões autónomas e do território de Macau.
b) [...]
c) [...]
d) [...]
e) [...]
f) [...]
g) [...]
h) [...]
-----------------------------------------
A contravenção do disposto neste número será punida com a multa de
100.000$00 a 500.000$00 e prisão até um mês. A reincidência será punida com multa de 200.000$00 a 1.000.000$00 e prisão até seis meses [...]'
Na sentença recorrida, o Senhor Juiz recusou-se a aplicar o art. 1º do Decreto-Lei nº 123/90, repristinando a parte sancionatória do art. 46º nº 1, do Código de Estrada (penúltimo parágrafo), a qual fora expressamente revogada pelo art. 12º do mesmo diploma.
7. - É tempo de analisar a questão de inconstitucionalidade suscitada.
Liminarmente, afastar-se-á a questão suscitada na sentença recorrida sobre a impossibilidade de o Governo - sem dispor de válida autorização legislativa em vigor - cominar com uma multa variável até um limite máximo de dias a prática de uma contravenção.
De facto, tal questão só tem sentido, se se concluir - como o Senhor Juiz recorrido fez nesta sentença - que a autorização legislativa já tinha caducado no momento constitucionalmente relevante no processo de elaboração do decreto-lei em causa.
Mas, independentemente dessa conclusão, não parece adequado qualificar, a partir de 1990, a condução sem licença de veículos ligeiros ou pesados como uma contravenção. Crê-se que tal infracção passou a ser um crime, a partir da entrada em vigor do art.1º do Decreto-Lei nº 123/90. Por um lado, a autorização legislativa habilitou o Governo a criminalizar a conduta. Por outro lado, o Governo invocou expressamente a alínea c) do art. 2º da Lei nº
31/89, no preâmbulo do diploma, a par da alínea d) desse artigo (alínea esta que concedeu autorização ao Governo para estabelecer sanções acessórias para as contravenções previstas no Código da Estrada e respectivas normas regulamentares
e que foi utilizada nos arts. 2º, 4º, nº 2, in fine e 6º do citado Decreto-Lei nº 123/90).
A circunstância de não se qualificar expressamente como crime o comportamento ilícito previsto e punido pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 123/90 não é suficiente para que se conclua que tal comportamento deve ser qualificado como contravenção. Nesse sentido, pode invocar-se o lugar paralelo do crime de condução de motociclos e velocípedes, como tal expressamente qualificado pelo art. 46º do Decreto-Lei nº 117/90, de 5 de Abril, pois como bem notou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nas suas alegações, 'lógico é - por argumento de maioria de razão (atenta a maior complexidade e perigosidade dos veículos automóveis) e de unidade do sistema - que se atribua a mesma natureza criminal à infracção contemplada no artigo 1º do Decreto-Lei nº 123/90' (a fls.
17 dos autos). No mesmo sentido, se pronunciou a Relação de Coimbra, em acórdão de 26 de Abril de 1991 (in Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, tomo 2º, págs. 115-116), considerando tratar-se de um crime doloso.
8. - O Senhor Juiz recorrido citou, em abono da tese por si sustentada quanto à questão de constitucionalidade, diferentes decisões da Comissão Constitucional sobre a relevância da publicação dos diplomas legislativos.
Deve, porém, desde já notar-se que a invocação dessa jurisprudência não se reveste de especial relevância no caso sub judicio, podendo mesmo dizer-se que assenta numa solução normativa que foi alterada.
De facto, no domínio da versão originária da Constituição de 1976, o art. 122º, nº 4, da Lei Fundamental determinava que a falta de publicidade dos actos legislativos implicava a respectiva inexistência jurídica. A partir da primeira revisão constitucional, o nº 2 do art. 122º passou a estabelecer que a falta de publicidade dos actos de conteúdo genérico dos órgãos de soberania previstos no artigo anterior - entre os quais, se contam as leis e os decretos-leis - implica a sua ineficácia jurídica. Ora, esta alteração tem especial importância nesta matéria e, por isso, a doutrina que considerava, face ao texto de 1976, atendível o momento da publicação passou a admitir que não seria exigível que a publicação do diploma autorizado ocorresse durante a vigência da lei de autorização (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1ª ed., 1978, pág. 336, e 2ª ed., vol. 2º, da mesma obra, pág. 205).
A invocação da jurisprudência da Comissão Constitucional tem de ser feita, aliás, com cuidado. Como refere nas suas alegações o Senhor Procurador-Geral Adjunto, num primeiro momento a Comissão Constitucional considerou que a publicação dum diploma legislativo era simultaneamente o elemento constitutivo e o elemento conclusivo do respectivo processo de formação, visto que só no momento em que ocorria a publicação o acto passava a existir juridicamente. Mas a partir do acórdão nº 212, a mesma Comissão começou a chamar a atenção para que não se devia confundir 'a natureza da sanção cominada para a falta de publicação (inexistência jurídica) com a natureza ou carácter (constitutivo) da mesma publicação' (veja-se o acórdão in Apêndice ao Diário da República, de 16 de Abril de 1981, pág. 21; sobre esta matéria consultem-se o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 44/84, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 345, págs. 90 e segs. e, ainda, os Acórdãos nºs 37/84, 58/84 e 60/84 do Tribunal Constitucional, publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., págs. 95 e segs.,
309 e segs. e 317 e segs., respectivamente).
O Tribunal Constitucional, por seu turno, teve ocasião de acentuar, no Acórdão nº 400/89, que não considerava relevante o momento da publicação de um diploma autorizado para aferir da sua constitucionalidade, quando nesse momento já houvesse caducado a respectiva autorização legislativa:
'Seja qual for a resposta que deva dar-se à questão de saber qual o momento relevante para se poder conclui que a autorização legislativa foi atempadamente utilizada - se o da aprovação em Conselho de Ministros do diploma autorizado, se antes o do seu envio para promulgação pelo Presidente da República, se o da data em que a promulgação teve lugar, se, ainda, o da referenda - a verdade é que a publicação não é, seguramente, elemento constitutivo do acto legislativo [...].
O entendimento de que a publicação não é elemento constitutivo do acto legislativo pode hoje considerar-se pacífico, uma vez que o artigo 122º, nº 2, da Constituição revista prescreve que a falta de publicidade dos actos normativos apenas «implica a sua ineficácia jurídica» (não a sua inexistência)'.
(in Boletim do Min. Justiça, nº 387, pág. 220; também publicado no Diário da República, II Série, nº 212, de 14 de Setembro de 1989).
9. - No caso sub judicio, a situação é mais complexa do que a analisada pelo referido Acórdão nº 400/89; é que, dos momentos relevantes em abstracto para fazer tal aferição, só a aprovação em Conselho de Ministros ocorreu seguramente dentro do prazo de vigência da autorização legislativa, desconhecendo-se - por não ter publicidade no texto do diploma - o momento do envio para promulgação pelo Presidente da República, e tendo a promulgação e a referenda ocorrido após o termo do prazo de vigência da lei de autorização.
Na doutrina constitucionalista, os autores dividem-se sobre o momento relevante para se saber se o diploma autorizado foi elaborado durante a vigência da lei de autorização.
A favor da relevância do momento da aprovação em Conselho de Ministros, costuma acentuar-se que, tal como a lei parlamentar se considera aprovada depois de tal aprovação ter ocorrido na Assembleia da República, também os decretos-leis devem ter-se por perfeitos no momento da sua aprovação pelo Governo.
A favor da relevância dos momentos da promulgação e da referenda, invoca-se que, só a partir de ambas, podem os diplomas ser publicados no Diário da República. Quanto ao momento da referenda , em especial, há quem faça notar que se trata de um acto que representa o exercício de poderes partilhadas entre o Presidente da República e o Governo, co-responsabilizando estes dois órgãos de soberania, assumindo, no que toca à promulgação de diplomas legislativos ou regulamentares ou à assinatura de decretos do Governo, uma 'função certificatória da assinatura do Presidente da República e uma função notarial-formal do processo legislativo adoptado' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 739).
Por último, a favor dos momentos do envio ou da recepção para promulgação, pelo Presidente da República, momentos em regra coincidentes no tempo, tem-se dito que se trata de momentos que se revestem de
'maior objectividade', impedindo a prática abusiva de antedatar o momento de aprovação do diploma, isto na medida em que o Governo envia o diploma aprovado para o Presidente da República, assim pondo termo aos actos dele dependentes relativos ao iter legislativo. A solução tem, porém, o inconveniente de não constar tal data do texto do diploma legislativo, exigindo-se uma actividade instrutória do órgão jurisdicional com competência em matéria de constitucionalidade (sobre os diferentes momentos e sua relevância, vejam-se Jorge Miranda, Autorizações Legislativas, in Revista de Direito Público, ano I, nº 2, 1986, pág 18, nota 46; do mesmo autor, Funções, Órgãos e Actos do Estado, policop., Lisboa, 1990, págs 476-477, nota 4; Gomes Canotilho, Direito Constitucional cit., pág. 865; Isaltino Morais, J.M. Ferreira de Almeida e Ricardo L. Leite Pinto, Constituição da República Portuguesa Anotada, Lisboa,
1983, pág. 331; António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa - Texto e Comentários à Lei nº 1/82, Lisboa, 1982, pág.
196; António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, policop., Lisboa, págs. 252 e segs).
Recentemente, teve ocasião a 2ª secção deste Tribunal de abordar a questão de saber se a aprovação pelo Governo do diploma autorizado devia ocorrer dentro do prazo de vigência da lei de autorização legislativa. Pode ler-se nesse acórdão, em que se manifesta concordância com a posição assumida por António Vitorino na sua dissertação acima citada:
'Por um lado, não constituindo a promulgação um acto de competência do Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo para legislar em determinada matéria.
Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação ocorreu na data que deles consta (com admissão da prova em contrário).
Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo de autorização legislativa «existe» para o efeito de se considerar respeitado esse prazo, como «existe» qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas'.
Perfilha-se, por inteiro, a solução acolhida neste Acórdão nº 150/92 (publicado no Diário da República, II Série, nº 172, de 28 de Julho de 1992).
Como nota nas suas alegações o representante do Ministério Público, a data de aprovação dos decretos-leis em Conselho de Ministros é tornada pública com a publicação do diploma, e, 'apesar das suspeitas e receios quanto a eventuais manipulações dessa data, o certo é que, constando de documento oficial, deve, como regra e por princípio, considerar-se exacta, assim possibilitando o controlo de tempestividade do uso da autorização legislativa'.
10. - Ora, tendo o Decreto-Lei nº 123/90, de 14 de Abril, sido aprovado em Conselho de Ministros em 15 de Fevereiro de 1990, dentro do prazo de vigência da autorização legislativa, considera-se - diferentemente do que foi afirmado na sentença recorrida - que o seu art. 1º, norma incriminatória de natureza penal, não sofre de inconstitucionalidade orgânica.
III
11. - Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, a qual deve ser reformada em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
António Vitorino
Maria da Assunção Esteves
José Manuel Cardoso da Costa