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Proc. nº 244/90
2ª Secção Rel.: Cons. Sousa e Brito
(Cons. Messias Bento)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. requereu a sua inscrição como advogado, mas, por acórdão de 18 de Março de 1988, o Conselho Superior da Ordem dos Advogados indeferiu tal pretensão, fundando-se em que, sendo o requerente escriturário da B. (B./Empresa Pública), se encontra abrangido pela incompatibilidade da alínea i) do nº 1 do artigo 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Decreto-Lei nº
84/84, de 16 de Março), uma vez que a B. constitui um serviço público.
O requerente interpôs, então, recurso contencioso do referido acórdão, tendo o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por sentença de 17 de Maio de 1989, anulado a dita decisão de recusa de inscrição na Ordem dos Advogados, uma vez que - disse - 'se é lícito, compatível ao funcionário exercer funções de consulta jurídica, por maioria de razão aqueles que não exercem na empresa pública, instituto público, serviço público, etc., funções de consulta jurídica, poderão exercer a advocacia'.
2. A Ordem dos Advogados interpôs, então, recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 24 de Abril de 1990, revogou a sentença recorrida.
Para assim decidir, o Supremo Tribunal Administrativo ponderou que,
'nos termos da alínea d), nº 1, do artigo 156º, com referência à alínea i), e ao nº 2 do artigo 69º do EOA, não podem ser inscritos na Ordem os funcionários ou agentes, não docentes, de serviços públicos de natureza central, regional ou local - institutos públicos - que não exerçam funções exclusivas de mera consulta jurídica'.
Significa isto que o acórdão recorrido aplicou a norma da alínea i) do nº 1 do artigo 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados, referida ao nº 2 do mesmo artigo.
Nas alegações que então produzira, havia o recorrido - A. - sustentado que tal norma (a da alínea i) do nº 1 do artigo 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados), a ser interpretada de modo a incluir a B. no conceito de
'serviço público', não deveria ser aplicada 'por ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e não discriminação consagrado nos artigos
13º, 47º e 50º da Constituição'.
3. É daquele acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que vem o presente recurso, interposto pelo referido A. ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, apresentou alegações o recorrente, que formulou as seguintes conclusões:
a) O acto recorrido fundamenta-se em norma inconstitucional - o artº
69º, nº 1, al. i), do EOA - a apreciar e julgar nas três vertentes seguintes:
1) A inconstitucionalidade global de toda a norma, por violação do princípio da igualdade e não discriminação, constante dos artºs 13º, 47º e 50º da Constituição;
2) A inconstitucionalidade da mesma norma, tal como resultou do Acórdão nº
143/85 - Procº nº 139/84 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República nº 202- 1ª Série, de 3/9/85, quando discrimina todo o funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos ... relativamente àqueles funcionários ou agentes pertencentes à categoria dos docentes, violando flagrantemente o princípio da igualdade e os indicados preceitos da CRP. Aliás, esta forma de encarar a inconstitucionalidade reconduz-se à anterior, já que, afectando a própria regra da norma, restará apenas a excepção, pelo que toda a norma teria de se julgar inconstitucional.
3) A inconstitucionalidade, finalmente, por violação dos indicados preceitos da CRP, quando se pretende interpretar no sentido de incluir na primeira parte da regra, o pessoal das empresas públicas, qualquer que seja o seu tipo, ou, em outro ponto de vista ainda, das empresas públicas de regime geral de gestão privada, como é o caso da empresa onde trabalha o Recorrente, tal como ficou exposto nesta alegação.
b) Em consequência, deverá dar-se provimento ao recurso, com todas as consequências legais, designadamente as previstas no artº 80º da Lei 28/82, de
15 de NOV.
A Ordem dos Advogados concluiu do modo que segue as alegações que aqui produziu:
1 - A B. é uma Empresa Pública com personalidade jurídica de direito público, e por isso dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.
2 - Ora, os empregados da B. são funcionários de um serviço público de natureza central, pelo que o Recorrente está abrangido pela incompatibilidade prevista na alínea i) do nº 1 do artº 69º do E.O.A..
3 - Não existem quaisquer violações às disposições constantes da lei fundamental, nomeadamente aos artºs 13º, 47º e 50º, da C.R.P..
4 - É, justamente, para garantir e promover a dignidade e independência no exercício da profissão, que a Ordem dos Advogados, enquanto associação pública que é, julga as incompatibilidades relativas à profissão.
5 - Através de tais restrições legais impostas pelos interesses que visa defender, dá a Ordem dos Advogados, através do cumprimento do respectivo Estatuto, Dec. Lei nº 84/84, de 16 de Março, plena efectividade ao princípio da igualdade consagrado no artº 13º da C.R.P..
Deve, assim, ser negado provimento ao recurso interposto da decisão constante do Acórdão de 24 de Abril de 1990, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, mantendo-se assim a decisão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, de não inscrever o Recorrente como Advogado.
II
4. Importa, em primeiro lugar, delimitar a norma ou normas a que se referem as questões de constitucionalidade invocadas. Essa delimitação determina os poderes de cognição do Tribunal, que tem de verificar que as normas que são objecto das questões de constitucionalidade suscitadas
(arts. 71º, nº 1, e 70º, nº 1, al. b) in fine) são também aplicadas na decisão recorrida (arts. 70º, nº 1, al. b) e 71º, nº 2, da LTC), embora não esteja vinculado aos fundamentos de inconstitucionalidade invocados (art. 71º C LTC).
Questionada pelo recorrente, durante o processo e na interposição do recurso, e aplicada pelo acórdão recorrido foi a norma da alínea i) do nº 1 do art. 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que dispõe:
'1 - O exercício da advocacia é incompatível com as funções e actividades seguintes:
i) Funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, com excepção dos docentes da disciplina de direito.'
Esta mesma norma foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 143/85, publicado no Diário da República, 1ª série, de 3 de Setembro de 1985, 'na parte em que se considera incompatível com o exercício da advocacia e função docente de disciplinas que não sejam de Direito'.
Por outro lado, a regra da alínea i) do nº 1 do art. 69º completa-se ainda com o nº 2 do mesmo artigo segundo o qual:
'2 - As incompatibilidades atrás referidas verificam-se qualquer que seja o tipo de designação, natureza e espécie do provimento e modo de remuneração e, em geral, qualquer que seja o regime jurídico das respectivas funções, e só não compreendem os funcionários e agentes administrativos providos em cargos com funções exclusivas de mera consulta jurídica, previstos expressamente nos quadros orgânicos do correspondente serviço, e os contratados para o mesmo efeito.'
Temos, portanto, que a norma em causa contém a seguinte regra com três excepções:
O exercício de advocacia é incompatível com as funções e actividades de funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizados, qualquer que seja o tipo de designação, natureza e espécie de provimento e modo de remuneração e, em geral, qualquer que seja o regime jurídico das respectivas funções, com excepção dos docentes, dos providos em cargos com funções exclusivas de mera consulta jurídica, previstos expressamente nos quadros orgânicos do correspondente serviço e dos contratados para o mesmo efeito.
O recorrente, como relatado, vem invocar que:
- ou é inconstitucional toda a regra;
- ou é inconstitucional a regra na parte em que inclui o pessoal das empresas públicas, qualquer que seja o seu tipo;
- ou é inconstitucional a regra na parte em que inclui o pessoal das empresas públicas do regime geral de gestão privada.
Ora o Tribunal Constitucional já decidiu 'não declarar a inconstitucionalidade da norma da alínea i) do nº 1 do artigo 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados (na parte ainda subsistente após a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão deste Tribunal nº 143/81), nem a da norma do nº 2 do mesmo artigo 69º' (Acórdão nº
169/90, Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990).
O Tribunal não está obrigado por anterior declaração sua de não inconstitucionalidade, mas é claro que, a manter a sua anterior doutrina, deverá denegar o pedido na sua primeira alternativa.
Em qualquer caso, o Acórdão nº 169/90 não determinou definitivamente o conceito de 'serviço público' relevante para a alínea i) do nº
1 do artigo 69º do EOA.
É claro que o Supremo Tribunal Administrativo pressupôs certa doutrina administrativa (cfr. nomeadamente Marcelo Caetano, Manual do Direito Administrativo I, 10ª ed., 4ª reimp., 1990, pp. 188, 372, 377 ss., Sérvulo Correia, Noções do Direito Administrativo I, 1982, p. 148 s., Freitas do Amaral, Curso do Direito Administrativo I, 1986, pp. 314, 320, 331 ss., 350,
616 ss., 630), segundo a qual as empresas públicas são uma espécie de serviço público com certas características (ser empresa com direcção e capital públicos), embora haja empresas públicas que não sejam serviços públicos
'stricto sensu' (quando não tenham por objecto a exploração de um serviço administrativo encarregado de fazer prestações aos particulares individualmente considerados), mas apenas em sentido amplo (abrangendo todos os serviços de Administração directa, indirecta ou autónoma). Neste esquema conceptual, a segunda e a terceira alternativa do pedido do recorrente implicariam restrições do conceito de serviço público.
Mas a mesma doutrina já referida conhece o conceito mais restrito de 'serviço público personalizado', que exclui as empresas públicas. Se a alínea i) houvesse de interpretar-se no sentido de que, além destes serviços, só os serviços públicos não personalizados da Administração estariam abrangidos, a exclusão das empresas públicas já não seria uma restrição do conceito de serviço 'publico'. Não importa aqui optar por um esquema conceptual, mas decidir se uma certa interpretação do conceito, e consequentemente da norma, viola a Constituição.
Não se diga que a decisão recorrida subsumiu um escriturário da B. no conceito de 'funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local, ainda que personalizado', e que essa subsunção não é sindicável por este Tribunal, que só pode pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de normas. É que, para fazer essa subsunção, o tribunal recorrido teve de incluir certas empresas públicas no conceito de serviço público, efectuando assim uma prévia interpretação da norma sindicada por este Tribunal. Há que distinguir a subsunção de um caso concreto na classe dos casos de um conceito, como seja a subsunção do requerente na classe dos
'escriturários da B.' ou na classe dos 'funcionários ou agentes de serviços públicos', da inclusão da classe dos casos de um conceito na classe dos casos de um conceito mais extenso, como sejam a inclusão dos da classe de
'escriturários da B.' na classe dos 'funcionários ou agentes de serviços públicos'. O Tribunal Constitucional está sujeito às subsunções feitas, explícita ou implicitamente na sentença recorrida, mas não está vinculado à escolha dos conceitos relevantes para a subsunção sob a norma aplicada na decisão recorrida, sendo igualmente livre de determinar as relações dos conceitos legais com quaisquer outros conceitos. Estas escolhas competem-lhe na medida em que é livre na interpretação do direito (assim, por exemplo, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 2/84, de 26.4.84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 2º, p. 198, e 105/88, de 28.4.88, Diário da República, II Série, 1.9.88, p. 8004). Nada impede, portanto, o Tribunal de interpretar a al. i) do nº 1 do art. 69º do EOA no sentido de o conceito de 'funcionário ou agente de serviços públicos' não poder abranger certas classes de pessoas, como sejam, por exemplo, a classe dos 'trabalhadores de empresas públicas' não sujeitos ao regime geral da função pública'. Tudo depende, naturalmente, de as razões que justificam a incompatibilidade estabelecida na norma desse preceito não valerem para a classe de pessoas em questão. Então se dirá que a interpretação contrária viola o princípio da igualdade, por tratar igualmente o que é desigual (há pessoas a que não se aplicam as razões da incompatibilidade e que são tratadas como aquelas a que tais razões se aplicam) e, por consequência, tratar desigualmente o que é igual (discrimina, por exemplo, o pessoal, ou parte dele, das empresas públicas relativamente ao das empresas privadas, quando para nenhum valem as razões da incompatibilidade).
6. Vejamos então, na esteira do Acórdão nº 169/90, quais as razões que justificam a proibição de advogar que, em geral, atinge os funcionários e agentes de Administração, em confronto com a possibilidade do exercício da advocacia por parte dos trabalhadores por conta de outrem. São as seguintes, segundo o citado acórdão:
'É que a distinção estabelecida pode justificar-se, desde logo, pela necessidade de preservar a independência da profissão de advogado.
Os funcionários públicos estão, na verdade, adstritos aos deveres de isenção, imparcialidade e dedicação exclusiva ao interesse público; os trabalhadores por conta de outrem, esses, encontram-se vinculados por um dever de lealdade para com a respectiva entidade patronal.
Ora, há-de convir-se que os deveres a que se acham adstritos os funcionários públicos são bastante mais limitativos da independência que se exige no exercício da advocacia - uma independência estatutária em relação aos
'poderes', mais propriamente do que uma independência subjectiva de cada advogado - do que o dever de lealdade para com a entidade patronal que vincula os trabalhadores por conta de outrem. E são-no em termos de conferir fundamento material bastante à proibição de advogar imposta aos funcionários em geral.
Por outro lado o funcionário público, 'no exercício das suas funções', acha-se 'exclusivamente ao serviço do interesse público' (cf. o artigo
269º,nº1 da Constituição) e deve, no desempenho das mesmas, actuar sempre 'com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade' (cf. o artigo 266º, nº 2) e com respeito, bem assim, pelos
'direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos' (cf. o artigo 266º, nº 1), pelo que não será difícil concluir que uma tal opção do legislador não pode haver-se por arbitrária ou sem fundamento material ou racional.
Desejam-se, na verdade 'funcionários' inteiramente dedicados à sua função e que a exerçam com absoluta isenção e imparcialidade, dando-lhe todo o seu esforço nos períodos de trabalho fixados pelo respectivo horário. Daí que - como se viu já - o pessoal dirigente exerça as suas funções em regime de exclusividade, só se lhe autorizando o exercício de funções privadas no caso de, entre o mais, ele não ser 'susceptível de comprometer ou interferir com a isenção exigida para o exercício' do respectivo cargo (cf. o artigo 9º, nºs 1 e
2, do Decreto-Lei nº 323/89, de 26 de Setembro). E daí também - como atrás se assinalou igualmente - que os demais 'funcionários' só possam acumular o exercício de actividades privadas com a função pública se, além do mais, 'os horários a praticar não forem total ou parcialmente coincidentes', 'se não ficarem comprometidas a isenção e a imparcialidade do funcionário no desempenho de funções' e 'se não houver prejuízo para o interesse público e para os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos' [cf. artigo 32º, nºs
1 e 3, alíneas b), c) e d), do Decreto-Lei nº 427/89, de 27 de Dezembro].
É que - repete-se - 'o exercício de funções públicas é norteado pelo princípio da exclusividade' (cf. o artigo 12º, nº 1, do citado Decreto-Lei nº 184/89).
A defesa dos apontados valores ou interesses, que são valores ou interesses próprios da função pública - defesa que, como se viu (cf. supra, nº
7), o legislador pode assumir quando modela o estatuto da profissão de advogado, e não apenas quando legisla sobre o estatuto da função pública -, também, por sua parte, conferem justificação racional ou fundamentação material à distinção estabelecida entre os 'funcionários públicos' e os profissionais de actividades privadas, proibindo àqueles, em geral (e não a estes) o exercício da advocacia.'
É certo que o peso destas razões pode ser discutido, em confronto com razões em sentido contrário. Mas entende-se que o legislador tem um espaço de liberdade para ponderar as diversas razões concorrentes, desde que sejam razões válidas. Parece, pois, razoável, admitir que a incompatibilidade estabelecida se funda em razões do género das referidas no citado acórdão. Ora, o denominador comum dessas razões, como consta das palavras citadas que as exprimem, é que elas só valem para os funcionários ou agentes de serviços públicos que estejam sujeitos ao regime geral da função pública, isto é, para os funcionários públicos.
Tanto basta para concluir que a razão de ser da incompatibilidade sub judice não abrange os trabalhadores das empresas públicas não sujeitos ao regime geral da função pública.
7. A B., que é actualmente, desde o Decreto-Lei nº 7/91 de 8 de Janeiro, uma empresa privada, era ao tempo da decisão recorrida uma empresa pública, sujeita ao regime geral das empresas públicas estabelecido pelo Decreto-Lei nº 260/76 de 8 de Abril (com as alterações da legislação posterior), e ao regime particular do Decreto-Lei nº 502/76, de 30 de Junho que contém o Estatuto da 'B. - Empresa Pública, abreviadamente B.' (art. 1º, do Estatuto, revisto pelo Decreto-Lei nº 427/82 de 21 de Outubro). É o que resulta, nomeadamente, dos artigos 1º, nº 1 e 2º do Estatuto.
Segundo o artigo 13º do Decreto-Lei nº 502/76:
'As relações de trabalho entre a B. e os trabalhadores serão reguladas pela legislação aplicável ao trabalho prestado nas empresas de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, bem como pelas convenções colectivas de trabalho às quais têm estado vinculadas aquelas empresas e o seu pessoal, sem prejuízo da uniformização escalonada dos direitos e obrigações dos trabalhadores.'
É, pois, claro que os trabalhadores da B. e, portanto, o recorrente como escriturário daquela empresa - ponto que é insindicável por ter sido estabelecido pela subsunção operada pelo acórdão recorrido - não estão sujeitos ao regime geral da função pública, mas ao direito do trabalho aplicável nas empresas privadas.
8. O recorrente invoca ainda, como fundamento da inconstitucionalidade, a violação dos arts. 47º e 50º da Constituição. Mas, pelas razões já invocadas no acórdão nº 143/85 (lug. cit., p. 160-161) não tem cabimento a invocação do art. 47º, tanto mais que ela é incompatível com a do princípio de igualdade: este pressupõe que algumas incompatibilidades terá de haver, para haver diferenças de tratamento em matéria das restrições legais à liberdade de escolha de profissão, referidas naquele artigo.
Também o art. 50º não é aplicável, porque a advocacia não é cargo público.
III
Pelo exposto,
a) julga-se inconstitucional, por violação do art. 13º da Constituição da República Portuguesa, a norma da alínea i) do artigo 69º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março), quando interpretada no sentido de abranger os trabalhadores das empresas públicas não sujeitos ao regime geral da função pública.
b) concede-se provimento ao recurso, ordenando-se que o processo seja remetido ao Supremo Tribunal Administrativo, a fim de este reformar o acórdão recorrido em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.
Lisboa, 19 de Março de 1992
José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito Fernando Alves Correia Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)
Declaração de voto:
As razões da minha discordância com a posição que fez vencimento são as seguintes:
1. Não questiono, obviamente, que, sendo este Tribunal livre na interpretação do direito, possa ele interpretar as normas legais, submetidas a controlo de constitucionalidade, de modo diferente daquele em que elas foram interpretadas pelas decisões recorridas.
Simplesmente, o tribunal recorrido, para decidir se o recorrente se achava ou não abrangido pela incompatibilidade da alínea i) do nº
1 do artigo 69º - que este Tribunal teve por não desconforme com a Constituição, no seu Acórdão nº 169/90 - o que fez foi averiguar se, à luz do Estatuto da B.
(isto é, interpretando esse Estatuto) ele era (ou não) um 'funcionário ou agente' de qualquer serviço público 'de natureza central, regional ou local, ainda que personalizado', havendo concluído que sim.
Lê-se, de facto, no acórdão recorrido:
'A B. é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial', como determina o nº 2 do art. 1º do DL 502/76, de 30 de Junho, diploma que criou a referida empresa e cujo Estatuto foi revisto pelo DL 427/82, de 21 de Outubro, tendo por objecto principal 'o estabelecimento e a exploração do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica no território do continente, para promover e satisfazer as exigências de desenvolvimento social e económico de toda a população' - nº 1 do art. 2º do citado diploma - serviço público esse explorado em regime de exclusivo, por tempo indeterminado - nº 3 do referido art.2º - e cuja regulamentação, embora a seu cargo, 'será estabelecida, com audiência prévia da empresa, em decreto assinado pelo Ministro da Indústria e Tecnologia e pelos demais Ministros competentes em razão da matéria' - nº 1 do art. 3º do mesmo diploma - sendo os bens necessários às actividades a seu cargo, do domínio público - art. 6º ainda do mesmo Decreto-Lei.
A B. é, assim, uma empresa pública com personalidade jurídica de direito público, a quem, por lei, é confiada a administração de uma parcela do poder público central, - estabelecimento e exploração do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, o que afasta a interpretação que o recorrido faz à alínea i), nº 1, do art. 69º do EOA - prosseguindo o seu objecto através de poderes de autoridade que se reflectem, por exemplo, na cobrança de taxas, na fiscalização das instalações, na aplicação de multas, no corte de ligações, etc. Trata-se, pois, de uma empresa pública em sentido estrito, ou propriamente dito, porquanto é dotada de personalidade jurídica de direito público com prerrogativas de autoridade, como vimos, tendo por escopo a satisfação de necessidades colectivas, e não de uma empresa pública com personalidade jurídica de direito privado, propriedade do Estado, que só é pública por a este pertencer, como acontece, por exemplo, com as empresas bancárias nacionalizadas. Só aquelas e não estas fazem parte da Administração Pública - cfr., Dr. João Alfaia, 'Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público', págs. 109 e segs. As empresas públicas em sentido estrito, bem como os serviços personalizados do Estado e das fundações públicas, constituem as três modalidades dos institutos públicos, que, juntamente com as associações públicas, prosseguem a administração estadual indirecta. - Cfr. Freitas do Amaral, Lições de Direito Administrativo, 1983/1984, vol. I, págs. 399 e segs. Consequentemente, os empregados da B. são funcionários de um serviço público de natureza central. Ora, o recorrido, A., sendo funcionário da referida empresa, está abrangido pela incompatibilidade prevista na alínea i), nº 1, do art. 69º do EOA.
O tribunal recorrido, portanto, qualificando, como qualificou, o aqui recorrente como 'funcionário' de 'um serviço público de natureza central' (e para isso partiu da análise e interpretação dos Estatutos da B.), subsumiu essa qualificação à alínea i) do nº 1 do artigo 69º e concluiu achar-se ele abrangido pela incompatibilidade aí prevista.
Ora, as qualificações feitas pela decisão recorrida são insindicáveis pelo Tribunal Constitucional.
2. Assim, tendo a decisão recorrida concluído que o recorrente era funcionário 'de um serviço público de natureza central'; estando, por isso, ele abrangido pela incompatibilidade da alínea i) do nº 1 do artigo
69º; havendo este Tribunal decidido no Acórdão nº169/90 que esta norma não era inconstitucional; e não havendo razões para alterar esta jurisprudência; negaria provimento ao recurso.
José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920106.html ]