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Processo nº 262/10
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A. e é recorrido o Instituto de Gestão de Regimes de Segurança Social, Instituto Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 29 de Maio de 2007.
2. Em 25 de Maio de 2010 foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 78º-A da LTC, pela qual se entendeu negar provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:
“O recorrente pretende que seja apreciada a conformidade constitucional da alínea b) do nº 1 do artigo 24º da Lei Geral Tributária, por violação do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O artigo 24º, nº 1, alínea b), da Lei Geral Tributária tem o seguinte teor:
«Artigo 24.º
(Responsabilidade dos membros de corpos sociais e responsáveis técnicos)
1 - Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) (…)
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento».
Por seu turno, o artigo 32º, nº 2, da CRP dispõe o seguinte:
«2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».
A norma cuja apreciação é requerida tem a ver com a responsabilidade subsidiária, por dívidas tributárias, daqueles que exercem funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados. A contraposição da norma indicada – norma de natureza tributária – à norma constitucional que se considera violada – norma que se insere nas garantias do processo criminal – impõe que se conclua que a questão posta a este Tribunal é manifestamente infundada. Justifica-se, por isso, a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)”.
3. Notificado desta decisão, o recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1.- O douto despacho reclamado estriba-se na tese de que a norma indicada é de natureza fiscal e de que a norma constitucional que se considera violada se insere nas garantia do processo criminal.
2.- Tinha o recorrente alegado sobre essa matéria, noutro processo de igual teor que corre com as mesmas partes, o que se vê dos artigos 23 e seguintes das alegações que para maior facilidade se transcrevem abaixo desta reclamação, pelo que aqui se dão por transcritas.
3.- Todavia a douta decisão reclamada não curou de rebater (nem por remissão) quaisquer dos argumentos.
3.- Que a lei chama tributária à disposição em causa, disso não há dúvidas, mas não é líquido que uma norma fiscal não possa ser de natureza criminal, resvalando por isso mesmo para dentro das garantias do processo criminal sob pena de deixar-se na mão do legislador comum uma forma sub-reptícia de se não submeter aos imperativos constitucionais.
4.- Salvo o devido respeito, o que o julgador terá de apreciar é se, na sua essência a norma é ou não de natureza penal. À primeira vista pareceria tratar-se de uma espécie de responsabilidade objectiva, estranha forma de vincular que o nosso legislador consagrou, em direito civil, para casos excepcionais de protecção de certos ofendidos.
O pano de fundo desta responsabilidade é porém a ilicitude (artigo 499 do Código Civil) e tem um limite e, pode dizer-se com alguma segurança (se é que alguma existe no Império do Pensamento Humano) que a responsabilidade subsidiária da norma visada não cabe neste instituto de responsabilidade objectiva.
5.- Um acórdão da 3.ª- Secção deste Venerando Tribunal (129/2009) remeteu para a transmissão da responsabilidade subsidiária civil extra-contratual este tipo de obrigações, considerando também constitucional uma norma fiscal como a que aqui se debate, ainda que abarque a transmissão de responsabilidade contra-ordenacional da empresa para o gerente, o que torna ainda mais duvidosa a solução encontrada, obrigando o STA a decidir através do instituto da execução fiscal (Processo 031/08 de 1 de Julho de 2009) conseguindo com esse artifício anular a reversão (em causa naquele e neste processo). Quer dizer, encontrou-se uma solução justa por ínvios caminhos processuais mas fugindo à questão principal: a da natureza punitiva do instituto contra o que se recorre (talvez sem grande habilidade processual mas com profunda convicção material).
6.- Há 50 anos, as pessoas colectivas não podiam, na nossa Ordem Jurídica, ser objecto de punição penal (pelo menos em toda a extensão das penalidades previstas), hoje, a doutrina e a legislação avançou nesse campo erguendo o edifício modernista (ou talvez mesmo de arte jurídica abstracta, vai lá saber-se) do artigo 11 do Código Penal.
7.- A novidade, abriu portas e janelas em que o direito penal é (ou era) muito avaro, pelo menos desde a Revolução Francesa, e compreende-se que as areias movediças ou o chão ainda pouco sólido, onde se movimentam os tribunais em tal matéria, conduza a soluções que seriam impensáveis há bem pouco tempo e que são mesmo incompreensíveis num período de garantias individuais reforçadas após 1974.
8.- As normas constantes do aludido artigo 11 nem disfarçam o parentesco com a norma cuja inconstitucionalidade se esgrime neste recurso. O ADN é o mesmo. E o produto também.
9.- Isto para se dizer que a questão debatida neste recurso não é simples nem poderá ser resolvida sumariamente. Não é fácil, pelo menos quando se trabalha há muitas décadas no maravilhoso mundo do Direito, aceitar sem crítica pacotes legislativos e jurisprudenciais, como quem aceita cláusulas contratuais gerais sem ter um decreto lei 446/85 de 25 de Outubro (…) para o defender. Já nasce condenado desde o momento da posse o gestor que gere, mesmo sem culpa formada…
10.- Na essência da reversão está a punição dum certo “não fazer” que cabe perfeitamente na noção de crime quer nos acobertemos com os estudos de JESCHECK quer nos dos seus discípulos nacionais. E, quer queiramos quer não, a legislação fiscal inventada pelo Estado para desencadear a reversão e não deixar fugir dos seus cofres determinadas verbas tem natureza essencialmente penal.
11.- Pune-se a omissão duma acção adequada a evitar a fuga aos impostos, equivalente à ordem expressa dada por um gestor aos seus subordinados para não pagarem tais impostos ou as contribuições para a Segurança Social.
12.- A doutrina, muito angustiada com estas aventuras do legislador na selva escura de Dante mas agora com incursões nas esferas jurídicas de cada um, proclama angustiada: “…um alargamento desmesurado das fontes donde deriva ou onde se ancora a posição de garante poria em sério risco as exigências de segurança das pessoas e de determinalidade dos tipos incriminadores, que constitucionalmente se ligam ao princípio da legalidade em direito penal” e ampliando o grito, afirma “…a lei, o contrato, a ingerência, não devem constituir fontes do dever de garantia, mas só planos em que aquele se deve reflectir, por homenagem às exigências que acabo de referir…” tudo isto fruto duma “muito mais afinada sensibilidade que hoje se possui para os valores e experiências do solidarismo e da comunidade de vida”, (Figueiredo Dias), mas o que fica por esclarecer é se não estarão postas irremediavelmente em causa as exigências do Estado de Direito!
13.- Não parece pois ser uma questão simples, apesar de estudada e decidida vezes sem conta, não devendo ser despicienda qualquer contribuição ainda que modesta e periférica para uma discussão que parece estar muito longe de ser líquida.
14.- Poderia citar-se Heidegger, Carnelutti e o direito comparado, eventualmente algum direito comunitário mas, para o caso, talvez fosse suficiente brandir a Constituição e estender a todos os possíveis responsáveis as garantias penais por serem as mais seguras e as que dão mais segura certeza de estamos defendidos contra arbitrariedades do legislador ou seja de quem for.
Razões pelas quais deve esta reclamação ser atendida e julgado o recurso pelo menos com um fundamento menos simplificado e taxativo e mais explicitado, assim se fazendo
JUSTIÇA».
4. Notificado, o recorrido concluiu pela improcedência do recurso no que se refere à invocada inconstitucionalidade da alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Mediante decisão sumária, proferida ao abrigo do artigo 78º-A da LTC, foi negado provimento ao recurso interposto. Concluiu-se que a questão posta a este Tribunal é manifestamente infundada. Este juízo louvou-se no conteúdo da norma, de natureza tributária, cuja apreciação foi requerida – alínea b) do nº 1 do artigo 24º da Lei Geral Tributária (LGT) – por contraposição à norma constitucional que o recorrente considera violada – o artigo 32º, nº 2, da Constituição, que se insere nas garantias do processo criminal.
O reclamante discorda que a questão de constitucionalidade posta a este Tribunal seja simples, podendo ser resolvida sumariamente, sustentando, fundamentalmente, que “não é líquido que uma norma fiscal não possa ser de natureza criminal”. Concretamente em relação à norma que é objecto do recurso interposto, defende que “na essência da reversão está a punição dum certo ‘não fazer’ que cabe perfeitamente na noção de crime”.
Importa começar por afirmar que a norma em causa (a alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT) não tem, de todo, a estrutura típica das normas de natureza criminal, designadamente a que é ditada pelas exigências do princípio da legalidade em matéria criminal (artigo 29º da Constituição) quer quanto à “norma de comportamento” quer no que se refere à “norma de sanção”.
Por outro lado, a natureza tributária daquela norma não é questionada nem pela doutrina nem pela jurisprudência (entre outros, cf. Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2006, p. 278 e ss., Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2007, p. 270 e ss., e Jónatas Machado/Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, 2009, p. 97 e ss.).
Face à natureza tributária da norma cuja apreciação foi requerida é de concluir, pois, que não é convocável, como parâmetro de aferição da constitucionalidade da mesma, norma que integra as garantias de processo criminal. Isto é, a garantia constitucionalmente reconhecida a todo o arguido de que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. Ainda que se sustente que a responsabilidade subsidiária por dívidas tributárias, prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT, tem “um carácter marcadamente sancionatório” (assim Saldanha Sanches, ob. cit., p. 270), o que é facto é que o processo de execução por reversão em que se efectiva este tipo de responsabilidade em nada é equiparável a um qualquer processo sancionatório em que se justifique uma extensão das garantias típicas do processo criminal.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Julho de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão